03 Mai 2013
O prior do Mosteiro de Bose festeja os 70 anos e se confessa: a espiritualidade, as leituras, um amor juvenil e a paixão pelo fogão, entre receitas de Monferrato e a cozinha francesa.
A reportagem é de Bruno Quaranta, publicada no jornal La Stampa, 01-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como o prior de Bose descansa quando descansa? "No fogão, suspenso entre receitas de Monferrato e a cozinha francesa. Primeiro, agnolotti às três carnes. Segundo, coq au vin". Tabaco? "Eu fumava, e não pouco. Eu apaguei o último cigarro há 30 anos atrás". Leituras? "Poesias. O que me apaixona, agora, são os versos de Patrizia Valduga, uma autêntica elegia de amor".
Setenta anos. Como o pai guardião na ópera Forza del destino. Não é por acaso, talvez, que Enzo Bianchi festeja nessa quinta-feira o seu aniversário no foyer do Teatro Regio, com uma olhada, antes de entrar, no elmo barroco de San Lorenzo e no Palazzo Madama, a casa dos séculos gozzaniana. Ele veio de Canavese ainda verde e um pouco herege (entre Dom Bettazzi, o filósofo Piero Martinetti, Adriana Zarri), onde respira – um testemunho conciliar de mais de meio século – a Comunidade de Bose.
O prior desejou muito fortemente – a sua pegada de Alfieri, de Asti, natural como é de Castel Boglione – que o oásis na Serra d'Ivrea nascesse e crescesse. "Ao menos duas vezes eu exerci uma forte violência contra mim mesmo. Abandonando os estudos e a carreira universitária que me foram oferecidos pelo professor Abrate, de modo a derrubar as pontes atrás de mim e não ter nostalgias. Posteriormente, tendo-me tornado monge, não aceitando a ordenação a padre que me foi oferecida pelo cardeal Pellegrino – que, para me convencer, confiou-se até ao bispo ortodoxo Emilianos, amigo de ambos – e, depois, pelo meu bispo de Biella. Eu queria continuar sendo um simples cristão, leigo como são os monges, como foram Pacômio, Bento, Francisco de Assis... Eu sabia por experiência que um simples fiel leigo não tem garantias eclesiásticas, mas eu queria ser monge, isto é, não essencial na Igreja, porque a Igreja pode viver sem os monges. Fascinava-me o ditado de Santo Antônio: 'Nós, monges, temos as Sagradas Escrituras e a liberdade'. Sim, depois veio o diploma honoris causa e eu me tornei, como dizem, 'alguém', mas apesar de mim".
"Sim, quando eu posso, eu volto para Castel Boglione, para as alturas de Zaverio, a colina onde, menino, eu costumava me refugiar. Há uma caverna escavada na rocha. Os livros me acompanhavam – os russos em particular, de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, a Tolstoi, além da Imitação de Cristo – e, às vezes, uma amiga, Carla, o amor juvenil, ou o cavalete e as cores para pintar os meus quadros".
É uma cortiça o rosto de Enzo Bianchi, um ícone afiado, polido, esculpido. Uma sentinela para se perguntar "em que ponto está a noite?", obtendo em resposta a Palavra torneada em silêncio, o unguento que é, depurada de todo incenso e de todo acomodamento ao aqui e agora. Como adverte um "adágio" de Bose: "Em cima de um carvalho, havia uma velha coruja: quanto mais sabia, mais se calava; quanto mais se calava, mais sabia".
Setenta anos. Como perscrutar, Enzo Bianchi, à luz da Bíblia, a sua "ruminação" cotidiana? "Abrindo o Salmo 90: 'A nossa vida chega aos 70 anos / aos 80 se tivermos força: / a maior parte é dor e fadiga / passam depressa e nós rimos disso'. A arte de viver – como entoou o léxico de Pavese – torna-se a arte de morrer. É preciso se dispor ao êxodo. Ir embora amando – não detestando – o que se deixa".
Que tesouro descobrimos que possuímos ao aproximarmo-nos do adeus? "A sabedoria do coração. Ou o coração da sabedoria. Onde de ouro é o desapego amadurecido da vida. Olhamos para ela, a sopesamos, a avaliamos. Da mesma forma que o escultor diante da estátua".
Remonta ao dia 8 de dezembro de 1965, quando terminou o Vaticano II, o brilho inicial de Bose. "Incubado na periferia de Rouen, na comunidade do Abbé Pierre. Dia após dia, ajuntando ferros e trapos, aprendendo – junto com ex-legionários, alcoolizados, errantes diversos – o que significa ser homem: na desgraça, no vício, na delinquência. Decidi, assim, abandonar o compromisso político – eu militava na Democracia Cristã, corrente fanfaniana: uma carreira aberta – pelo caminho evangélico monástico. O meu pároco e um honorável vieram a Bose para me fazer voltar atrás, em vão".
Um Concílio Vaticano III? "Não o considero atual. O desejo é de que o Papa Francisco implemente o seu projeto: modelar uma Igreja dos pobres e mais pobres. Só se for à imagem de Cristo é que a Igreja poderá dar mais passos radicais: por exemplo, rumo à sinodalidade colegial".
Cinquenta anos atrás pulsava o Vaticano II: "São dois os seus pilares: a Palavra de Deus e a Liturgia".
Que Palavra a interpela mais? "O Evangelho de Marcos e o Evangelho de João. Em Marcos, a humanidade de Jesus. Em João, o Jesus vivo, atuante hoje em mim".
A Palavra. E as palavras entre nós, obsoletas. Inferno, diabo, ressurreição. Inferno. "É a ausência de Deus, a impossibilidade dostoievskiana de dar amor. Esquece-se facilmente que o juízo virá. Depois, a misericórdia será oferecida, e talvez até em abundância. Mas como não contemplar um balanço da existência?".
Diabo: "Cada um de nós o experimenta. Quem não sente a tentação de provocar o mal?".
Ressurreição, um horizonte há muito tempo escondido na Igreja, fazendo com que Quinzio imaginasse, invocasse a encíclica “Resurrectio mortuorum”: "A Ressurreição, eixo do meu Credo. A certeza de que seremos novamente, não desmentindo a nossa identidade humana, embora transfigurada".
Em Bose, espera-se Bartolomeu I, Patriarca de Constantinopla. Enzo Bianchi é um dos arquitetos do ecumenismo: "Eu confiava que iria assistir à unificação das Igrejas cristãs. Uma graça que não caberá a mim, por sorte. O percurso é complicado. Para os ortodoxos, o obstáculo principal é o papado. Para os protestantes, com o papado, a ética. Em meados do século XX, e mesmo depois, era um idem sentire ou quase. Agora, vigora uma clara divergência de pontos de vista, principalmente sobre a moral sexual".
O ecumenismo. Barth afirmava que o único problema ecumênico é a relação com os judeus. "Se não é configurada corretamente a relação com os judeus – especifica Enzo Bianchi –, não é possível resolver os problemas entre os cristãos. Sou devedor da minha sensibilidade para os filhos de Sara e de Abraão à mulher que, quando minha mãe morreu, me criou. Durante as funções pascais, quando se rezava 'pro perfidis Judaeis', ela me advertia: 'Os judeus são como nós, não são maus'".
Muito sensível à questão judaica, no rastro do cardeal Bea, era o cardeal Martini, um dos "pneumatóforos", embaixadores do Espírito, que passaram por Bose. "Uma sólida amizademe ligava a Martini. Diferente, filial, era a relação com o padre Pellegrino, que – o prior não hesita – eu coloco no ápice dos pneumatóforos. Ele nos tomou pela mão, quando, no início, a Comunidade atraiu muitas incompreensões. Ele revelaria ser um bispo extraordinário, sem igual no episcopado italiano atual: de uma estatura de Padre da Igreja".
Enzo Bianchi oferece de presente, com a Palavra, as nozes, a geleia de figo, as pêras carameladas, as Rosas de Damasco. Como retribuir, como desejar-lhe um feliz aniversário? Com um versículo de Mateus, adaptado – poder da hermenêutica – para a ocasião: "Setenta vezes sete".
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O segredo do monge Enzo Bianchi em seus 70 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU