29 Novembro 2024
"Libertar-nos de um olhar patriarcal significa não se opor a esses fenômenos, mas reconhecer as raízes das formas de violência que existem entre nós, sem transferir a responsabilidade para outro lugar".
O artigo é de Fabrizia Giuliani, filósofa da linguagem e ex-deputada do PD, publicado por La Stampa, 28-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O patriarcado não é uma palavra contestada, um rótulo ideológico, um pseudoconceito, para citar Croce. É uma ordem que deu forma ao mundo e que, em parte, continua a dar. Suas fronteiras não são nítidas, não são cortadas a machado, na história e na geografia. Deveríamos ter aprendido, depois do 1900 de Wittgenstein, que as categorias com as quais lemos os fatos humanos não são aquelas de Aristóteles - sim/não, dentro/fora, que as fronteiras existem, mas são borradas. Mas, acima de tudo, deveríamos ter aprendido que a história não tem a dinâmica de um mecanismo digital que marca irrevogavelmente o antes e o depois: é feita de processos e, acima de tudo, de conflitos, porque uma ordem não sucede a outra da noite para o dia e de forma indolor. Sem levar em conta esse contexto, a discussão sobre o patriarcado, independentemente das convicções de cada um e de cada uma, corre o risco de ser ideológica, ou seja, de trair os fatos. De alterá-los, para confirmar hipóteses que fogem à verificação ou deformam seus resultados. Se passamos para o terreno político, mas já estamos nele, de alimentar a propaganda.
Não há nada de acadêmico na discussão sobre o estado em vida do patriarcado: não é preciso ter lido Wallstonecraft ou De Beauvoir, Cavarero ou Carol Pateman, para entender que o patriarcado não está arquivado e que a disputa interpretativa que o acompanha é a evidência mais clara de sua permanência entre nós. Portanto, não estamos falando de uma época histórica, mas de uma ordem, social e simbólica, que traduz um fato - a diferença sexual - em hierarquia e distinção funcional. Essa ordem era lei no sentido forte: direito de família, violência sexual como crime contra a moralidade, mas também sobrenome paterno (ainda em vigor); era o exercício da força: ius corrigendi, delito de honra, punição do adultério feminino. A liberdade que as mulheres conquistaram levou ao cancelamento das normas, mas a ordem que as sustentava ainda está viva e luta para não ser arquivada.
Esse é o cenário do Ocidente hoje, seu maior e mais removido problema político, a menos que se pense seriamente que a vitória de Trump, de Orban ou o fascínio de Putin possam ser reconduzíveis a outra coisa.
O patriarcado sofreu duros golpes, mas luta, e como luta: deveríamos ter bem claro isso, o ponto, toda vez que lemos os dados sobre os abusos, as notícias de homens que empurram as garotas das sacadas e daqueles que planejam cuidadosamente os feminicídios. Mas também quando vemos a diferença entre o número de garotas que se formam e depois não entram no mercado de trabalho; na diferença salarial e na carga do trabalho de cuidados. Mas o dado que talvez o restaure mais é o da diminuição da natalidade: onde as mulheres são livres, na forma e na substância, nascem mais crianças. Onde as mulheres não são livres, não nascem.
É evidente que lembrar esses fatos não significa, de forma alguma, negar a crueldade e a desumanidade dos regimes islâmicos em relação às mulheres ou abster-se de condená-los. Essas mulheres são nossas irmãs e nós sabemos bem isso.
Libertar-nos de um olhar patriarcal significa não se opor a esses fenômenos, mas reconhecer as raízes das formas de violência que existem entre nós, sem transferir a responsabilidade para outro lugar. Os jovens italianos que matam as suas companheiras porque não toleram a rejeição são a expressão mais clara de uma guerra contra a liberdade das mulheres que se desenrola aqui, dentro de nossa cultura e de nossas fronteiras.
Deveríamos combatê-la sem nos dividirmos, seria uma prova de maturidade, mas parece que ainda não estamos capacitados para isso.
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