29 Novembro 2024
Bárbara Tardón e María Naredo, especialistas em violências machistas, consideram importante que os relatos sobre violência sexual sejam coletivizados, porque seu reverso é voltar ao silêncio onde muitas mulheres estavam instaladas.
Bárbara Tardón (Madrid, 1976) e María Naredo (Madrid, 1970) são as mães da Lei Orgânica 10/2022, de 6 de setembro, de garantia integral da liberdade sexual, mais conhecida como a Lei do "somente sim é sim". Elas concedem esta entrevista ao El Salto após darem uma conferência no Espaço de Igualdade María de Maeztu em Carabanchel (Madrid), dentro de uma jornada que reuniu as vizinhas do bairro para falar sobre violências. Diante de uma sala cheia, as duas especialistas ofereceram chaves sobre a violência sexual e os avanços contidos nesta lei, que, segundo elas, também foi alvo de violência. Elas sugerem que essa norma é uma conquista de todas e que todas devemos defendê-la para que saia da gaveta onde agora está, afirmam.
Tanto Bárbara Tardón, doutora em Estudos Interdisciplinares de Gênero pela Universidade Autónoma de Madrid e especialista em violências machistas, quanto María Naredo, jurista e pesquisadora especializada em direitos humanos e gênero, consideram importante que os relatos sobre violência sexual sejam coletivizados, porque seu reverso é voltar ao silêncio onde muitas mulheres estavam instaladas. Porém, essa visibilidade, às vezes, demora a acontecer. Elas explicam que operam fatores como a normalização do comportamento, que ocorre quando o agressor é uma pessoa próxima que foge do estereótipo.
A entrevista é de Sara Plaza Casares, publicada por El Salto, 28-11-2024.
Uma das principais características da violência sexual é que as vítimas às vezes demoram para perceber que foram agredidas. Como esse tipo de violência opera?
María Naredo: É muito interessante o dado da Macroencuesta sobre violência de gênero de 2019, anterior à Lei do "somente sim é sim", que diz que apenas 8% das mulheres vítimas de violência sexual denunciam. Mas não é só interessante isso, o interessante é por que 92% não denunciam. E aí existem três motivos principais: vergonha, medo de não serem acreditadas e normalização do comportamento. E na normalização está a explicação de por que demora tanto. Diz-se, por exemplo, "mas como é possível que depois ela tenha ido com ele?". Muitas vezes, a pessoa duvida até de si mesma, quando a sociedade tem padrões nos quais, exceto pelas questões mais graves da violência machista, como feminicídios ou violências físicas, o resto é normalizado e quase compreendido como uma relação. E a partir disso, a denúncia ainda custa mais, porque implica enfrentar um sistema que causa muito medo às mulheres.
Bárbara Tardón: Acho muito importante destacar que convivemos com uma cultura do estupro que normalizou e minimizou o que são as violências sexuais. A cultura do estupro baseia-se em uma série de falsas crenças que, entre outras coisas, fazem com que se represente o que é uma agressão, o que é uma vítima ideal e o que é um agressor. Claro, como não existe uma educação sexual e como fomos educadas desde que nascemos e ao longo dos séculos nessa cultura do estupro, o que é uma agressão sexual ficou desfocado. Por isso, é uma característica muito comum, especialmente entre as mulheres mais jovens, porque sim, é um fator de vulnerabilidade, a dificuldade de identificar essas condutas que são evidentemente agressões sexuais e violências sexuais. Quando se entrevista as sobreviventes, percebe-se a dificuldade, às vezes, de entender até essa dinâmica e essa rede envolvente que o agressor usa para agredir sexualmente.
Quanto tempo pode passar até que uma vítima perceba que foi agredida?
B.T.: Eu acho que isso depende de cada caso. Não há uma resposta única. Depende da biografia dessa sobrevivente ou dessa vítima. Depende do conhecimento que se tem sobre violência sexual, depende da violência sexual que foi exercida. Há meninas que são estupradas por seus pais desde os três anos e a situação de violência se mantém por muitos anos. Em outros casos, são assédios sexuais no trabalho, feitos de maneira muito sutil; em outros, uma agressão sexual pura e simples numa noite saindo com um amigo, e em outros casos, um desconhecido. Sempre depende do tipo de violência, de como essa violência é exercida, de quem a exerce e da sua própria biografia.
M.N.: Sim, existe um elemento normalizador por trás disso, justamente no momento de perceber ou querer sair e contar, e tem muito a ver com a proximidade do agressor e se ele se encaixa ou não no estereótipo. Quanto mais próximo o agressor, mais normalizada está a violência que essa mulher está sofrendo ou mais difícil é ela perceber. E isso ocorre por causa da educação que recebemos. Desde pequenas, somos ensinadas a temer o perigo difuso dos estranhos que nos fazem mal, e, no entanto, não somos educadas para perceber os perigos ou opressões do parceiro, do amigo, do namorado, do pai, do professor. Nos ensinam a nos proteger dos estranhos, mas não das pessoas próximas. Somos educadas a procurar protetores, o homem protetor, e é nessa figura que o patriarcado instala as violências machistas, nesse esquema de protetor-protegida. Fomos educadas para não correr riscos, para não ir a campos abertos, para não andar por ruas escuras. E muitas vezes o que isso faz é nos fazer ficar com o próximo, mas é aí que muitas vezes percebemos que estão as opressões mais graves.
Bem, como você bem diz, isso opera principalmente nos coletivos mais vulneráveis, como a infância e a adolescência. De fato, a lei do "só sim é sim" favorece esses coletivos, pois amplia os casos de agressão, não sendo mais necessário que haja apenas violência ou intimidação para que ocorra uma agressão sexual.
M.N.: Eu acho que é muito importante entender que a lei de liberdade sexual inclui as crianças, como vítimas, porque entende que a violência sexual patriarcal se aproveita desse marco de relações, onde coloca as meninas e os meninos em um lugar no qual seus direitos não importam, suas decisões não importam. A partir daí é que se constrói o conceito de liberdade sexual e o marco da luta contra a violência sexual. Então, claro, as crianças, os meninos e as meninas, por suposto, já estavam amparados pelo Código Penal em relação aos crimes cometidos contra eles, mas agora não é só o Código Penal, é também como se interpreta o consentimento, que vai muito além da submissão, da ferida, da intimidação ou da violência. E antes dos 16 anos, como não há consentimento, porque não há idade de consentimento, então é diretamente agressão.
Houve uma mudança de paradigma cultural, que também está atravessando as experiências dos meninos e das meninas. E isso é essencial tirar do Código Penal, que, claro, deve estar lá, e levá-lo para todas as esferas da vida, e especialmente para a educação. Quando há uma educação sexual feminista sobre o consentimento, os casos onde houve violência emergem.
Além disso, nesses casos, em vez de violência ou intimidação, o que opera é um abuso de poder.
B. T.: Também. Quando há violência sexual, o que existe também é uma relação de poder, e essa é uma das chaves das essências do exercício da violência sexual. O controle do corpo e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que é uma das formas de violência mais originárias da história da humanidade. Porque o controle dos direitos sexuais e reprodutivos é exercido desde quase o início dos tempos, desde o Neolítico.
Estamos em um momento em que as violências estão sendo coletivizadas. Por que isso é importante?
M. N.: Para mim, justamente esse é o caminho. Porque isso é uma violência estrutural, uma violência sistêmica, não é uma violência individual, o que o marco punitivista quer é levar as violências para o âmbito individual, nesse retrato de dois indivíduos, um violentado e outro agressor, no qual o agressor é um migrante, é o outro, e então, claro, não é o "nós". Precisamente coletivizar é dizer que isso é sistêmico e somos as mulheres, justamente, que vivemos as violências machistas. As mulheres, não uma mulher específica. E aí realmente há um enorme potencial de avanço, reivindicação, mudança e transformação. Mas coletivizar também implica interpelar os homens a partir do coletivo e aí é onde, eu acho, que agora há vários desafios sendo abertos, precisamente porque quando as violências machistas são coletivizadas pelas vítimas unidas, vinculadas em determinados processos de relato, de repente surgem os nomes de homens absolutamente normais, porque a violência faz parte da normalidade. Os perpetradores são homens normais.
B.T.: Sobre a coletivização, eu acho fundamental porque o que se propõe ao coletivizar a luta é dar um golpe no centro do patriarcado, que quer nos ver em silêncio, caladas, nos lugares a que querem nos submeter por meio do disciplinamento. E, sem dúvida, a coletivização faz com que a cultura da violação se frature completamente, porque uma das essências da cultura da violação é desacreditar as vítimas e, portanto, o que é o outro lado da moeda, nos levar ao silêncio. Quando coletivizamos, rompemos o silêncio. E por isso, quando se coletiviza, sempre há uma reação contra essas vozes, desacreditando-as e até negando as formas e as ferramentas que elas têm para expressar suas vozes. Todas as fórmulas são igualmente dignas. Como diz uma amiga minha, todas as portas que você puder bater são igualmente dignas para todas as sobreviventes.
Uma reparação pode ser contar sua história em um meio de comunicação?
B.T.: Claro que sim.
M.N.: Eu considero que romper o silêncio pode ser o primeiro passo para um processo de reparação. Não sei se o último, mas certamente pode ser o primeiro. Pode ser um ponto de inflexão na história de recuperação e reparação das mulheres sobreviventes.
São importantes esses processos coletivos em que alguém conta um relato e outras mulheres também tiveram contato com o mesmo agressor ou com outro, mas que de alguma maneira também estão nesse caminho.
B.T.: Isso é muito reparador. A autoridade das suas vozes é delas. Elas são as protagonistas de suas vidas e as que melhor se conhecem. Como vamos tirar delas a autoridade para dizer onde querem falar sobre suas violências, sobre as violências enfrentadas? E falar em meios de comunicação, para algumas, é reparador. Mas é importante que os meios de comunicação que lhes dão voz saibam fazer isso com ética e deontologia, porque elas estão se abrindo precisamente para se reparar. E se contarem em um meio de comunicação o que está acontecendo, o meio de comunicação tem a responsabilidade de acompanhá-las nesse processo em que elas estão expressando o que viveram.
María, você diz que o oposto da impunidade não é o punitivismo, mas a justiça. Essa frase é importante.
M.N.: Justamente porque o punitivismo, no fundo, o que quer é a impunidade. Os discursos punitivistas de terror sexual, de cuidado com os estupradores, com os migrantes... No fundo, o que querem é a impunidade dos homens bons, dos homens considerados normais, a impunidade social. As receitas punitivistas não nos interessam. O que nos interessa é que nossa liberdade sexual, como direito humano, seja garantida da mesma maneira, com verdade, justiça e reparação.
Há uma questão importante que é que a reparação pode chegar sem justiça, mas não sem verdade. Mas a justiça também é essencial para ampliar a verdade, para consolidar a verdade e para que as garantias de não repetição tenham um peso muito maior. Porque estamos falando de mensagens absolutamente estruturais também quando partem da justiça.
Vocês criaram uma lei que elimina a obrigatoriedade de denunciar para poder acessar direitos e proteção. O que vocês sentem quando agora ouvem a ministra da Igualdade dizer que é necessário denunciar?
B.T.: Sinto uma frustração imensa e sinto que é um retrocesso através do túnel para o ano de 2004, ou até antes de 2004, quando foi aprovada a Lei Integral contra a Violência de Gênero. O que sinto, além disso, é que é profundamente doloroso que tenha havido todo esse avanço ao longo dos anos para deixar claro que a denúncia não precisa ser a porta de entrada para reparar o dano sofrido após uma agressão sexual e que chegue uma autoridade tão importante e de uma instituição tão relevante e o que ela diga seja que é necessário fazer a denúncia. Insisto também porque existem outras vias, outras portas igualmente dignas e, em muitos casos, mais preparatórias para as sobreviventes, como uma atenção especializada em um centro de crise ou, como pode ser, ir à sua associação de bairro com suas amigas ou com suas vizinhas para contar o que aconteceu, o que as feministas faziam desde os anos 70 por meio dos grupos de autoconhecimento. E isso é o que se faz em espaços feministas, que é narrar sua experiência e contá-la para que acreditem em você.
M.N.: Eu acho que isso implica dizer às mulheres que vão aonde elas não estão indo, em vez de ir aonde as mulheres estão, que é o que a instituição deve fazer, o "eu sim te acredito" institucional. E também é uma falta de conhecimento, de empatia, de entender por que as mulheres não vão à denúncia. Precisamente, as mulheres devem ter todos os seus direitos garantidos sem denúncia.
Claro que a denúncia é um direito, o acesso à justiça é um direito. Está o Ministério da Igualdade garantindo isso agora com a implementação da lei no momento atual? Não, porque não foi desenvolvida toda a parte da justiça especializada da Lei de Só Sim é Sim. E isso realmente é bastante dramático, porque essa lei contém a obrigação de especializar os tribunais, especializar a Promotoria, garantir justiça gratuita, independentemente da renda, para todas as vítimas de violência sexual...
Vamos terminar a entrevista com o que falta fazer em relação à Lei do só sim é sim. Há muitas coisas que não foram ativadas, entre elas, os centros de crise que deveriam já estar criados em todo o Estado. O que vai acontecer?
B.T.: Até 31 de dezembro, devem estar em funcionamento 52 centros de crise, um por província. O que significa isso? Que devem existir 52 centros de crise com equipes interdisciplinares, com psicóloga, assistente social e jurista, no mínimo, abertos 24 horas por dia, de forma presencial e telefônica. E isso tem que estar aberto sim ou sim até 31 de dezembro. O que acontece? A sua criação faz parte dos fundos Next Generation. Se isso não estiver até 31 de dezembro, arrasta o resto das comunidades que já têm em funcionamento os centros de crise a devolver todos os fundos para a Europa. Isso é gravíssimo, e a realidade até agora é que, se você for estuprada em Jaén ou em Badajoz, não tem um recurso especializado em violência sexual.
M.N.: Os centros de crise são o epicentro do itinerário integral da Lei do só sim, e há onze, e estamos em meados de novembro.
B.T.: E eles têm o dinheiro há três anos.
M.N.: Depois tem o tema das ajudas econômicas para as vítimas, que está sem desenvolvimento, porque, embora exista um regulamento de desenvolvimento desde antes do verão, ainda não houve a articulação através da conferência setorial para estabelecer o procedimento para dar as ajudas de forma efetiva às mulheres.
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"Desde pequenas, nos ensinam a nos proteger dos estranhos, mas não das pessoas próximas". Entrevista com Bárbara Tardón e María Naredo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU