02 Dezembro 2023
"O feminicídio de Giulia Cecchettin mais uma vez abriu a cicatriz, que a simplificação tende a curar cedo demais, do fato de que aqueles que matam são homens 'normais', tímidos e silenciosos até, são conhecidos: é mais fácil reconhecer o monstro no outro, mas o quanto é complexo e doloroso dizer a si mesmo: “Isso também me diz respeito, por ser homem”, escreve Cristina Arcidiacono, teóloga batista, pastora em Milão, e membro do Conselho do IBTS Amsterdam, em artigo publicado por Riforma, 01-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Para o teu quarto recolhe-te e cuida dos próprios lavores, roca e tear, que aos homens importa a palavra, mormente a mim, a quem cumpre assumir o comando da casa”. Assim Telêmaco fala com Penélope, sua mãe, no primeiro livro da Odisseia, diante dos pretendentes à sua mão, enquanto Ulisses, seu marido, demora para voltar para casa das peripécias após a Guerra de Troia.
“Prestem atenção! Tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las aqui fora para vocês. Façam com elas o que quiserem. Porém não façam nada com esses homens, pois são meus hóspedes, e eu tenho o dever de protegê-los!” É o que fala Ló, sobrinho de Abraão, em Gênesis 19, numa noite em Sodoma, para acalmar os habitantes da cidade que querem usar de violência contra os seus convidados: oferece-lhes as suas filhas.
O poder da palavra, especialmente da palavra pública e o poder sobre os corpos das mulheres: a construção da cultura ocidental também traz consigo esses alicerces, que se tornarão parte do exercício cotidiano milenar para se tornar homens, se tornarão "normalidade", a ponto de não serem mais nem mesmo vistos, mas considerado “inatos”.
O feminicídio de Giulia Cecchettin mais uma vez abriu a cicatriz, que a simplificação tende a curar cedo demais, do fato de que aqueles que matam são homens "normais", tímidos e silenciosos até, conhecidos: é mais fácil reconhecer o monstro no outro, mas o quanto é complexo e doloroso dizer a si mesmo: “Isso também me diz respeito, por ser homem”.
Stefano Ciccone, presidente da associação Maschile Plurale, que há anos está engajada em promover uma cultura diferente daquela patriarcal, destaca numa entrevista como a violência é fruto dessa ordem, daquela ideia de relação entre homens e mulheres que hoje não oferece mais recursos aos homens para estar no mundo. A mudança do olhar, sobre si mesmo e sobre os outros não é uma ameaça, mas uma possibilidade de ser inteiros, de olhar, acolher, integrar também as próprias fragilidades e desejos.
A reflexão sobre a masculinidade também diz respeito às igrejas, onde corpo e palavra pública têm sido prerrogativa dos homens por séculos e ainda hoje é difícil reconhecer que não é necessária a violência física para difamar, rebaixar, excluir corpos e palavras das mulheres. Nos últimos anos, pastores, pastores em formação, irmãos de igreja, aprendendo com os movimentos de mulheres, estão trabalhando sobre si mesmos e sobre as dinâmicas de poder, individuais e comunitárias, com vistas a buscar a verdade sobre si mesmos e a libertação de uma cultura que quer que você seja “normal”, segundo seus ditames.
Cristo vem para desarticular o poder e os planos dessa cultura. Jesus é filho de Davi, filho de Abraão, na genealogia relatada pelo Evangelho de Mateus, através de José, pai por vocação. Num sonho, José recebe de Deus uma forma alternativa de ser homem. Não valem mais as categorias habituais: uma noiva grávida, misteriosamente, antes do casamento. José distancia-se do mito da virilidade que nunca deve pedir e por isso é chamado de “homem justo”.
Não são os músculos, nem a força, não é a vingança nem a honra: José é um homem justo porque sabe colocar-se à escuta e abrir-se à surpresa que Deus reservou também para ele, para sua vida, para a complexidade, para a relação com Maria e com essa criança, a quem ele próprio poderá dar o nome Jesus: um homem não patriarcal numa sociedade patriarcal será o exemplo de homem para seu filho.
Um novo começo é possível.
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José, homem justo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU