28 Novembro 2023
"São certamente percentagens amplamente minoritárias, mas que deveriam fazer soar um sinal de alarme, pois expressam modalidades de relação e de gênero que podem acabar legitimando, justamente, a violência, física ou sexual, dos homens contra as mulheres. Uma violência que a grande maioria, quase 80%, da população adulta de ambos os sexos até aos 75 anos considera um fenômeno muito ou bastante difundido, encontrando, aliás, uma confirmação empírica no número altíssimo de mulheres - talvez apenas a ponta do iceberg - que procuram todos os anos os serviços de emergência e os centros contra a violência, conforme documentado pelo Ministério do Interior e pelos dados do ISTAT sobre os centros", escreve a socióloga italiana Chiara Saraceno, membro honorária do Collegio Carlo Alberto de Turim, e professora emérita do Wissenschaftszentrum für Sozialforschung de Berlim e da Universidade de Turim, em artigo publicado por La Stampa, 25-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O último levantamento do ISTAT revela que mesmo os mais jovens partilham modelos assimétricos. E há ainda aqueles que acreditam que as mulheres são responsáveis pelas violências que sofrem.
A violência de gênero tem as suas raízes em modelos de gênero e de relação de casal baseados num controle e dependência mútua, que no homem é mascarada com a opressão. Por sua vez, esses modelos baseiam-se em estereótipos de gênero altamente assimétricos, partilhados também pelos mais jovens, como resulta dos dados provisórios do último levantamento do ISTAT sobre estereótipos de gênero.
10,2% das pessoas com idades compreendidas entre os 18 e os 74 anos consideram aceitável que um homem controle rotineiramente o celular e a atividade nas redes sociais de sua esposa, companheira, namorada. O percentual é maior,16%, entre os jovens até aos 29 anos, permanecendo elevado, acima de 13% entre os 30-44 anos, enquanto cai abaixo de 10% nas faixas etárias mais maduras. A maior facilidade no uso de dispositivos informáticos, inclusive a geolocalização, pelas gerações mais jovens, não parece ser acompanhada por uma maior consciência da igualdade entre homens e mulheres em geral e especificamente nas relações de casal, como também sinalizava ontem Francesca Sforza neste jornal.
Pelo contrário, fornece novas ferramentas/pedidos de controle, novas “provas de amor”. Um comportamento que um levantamento do Ipsos para a Save the Children de alguns anos atrás, também havia detectado entre os adolescentes. Muito mais reduzida - 4,3% - é a percentagem dos que consideram ser aceitável que numa relação de casal “escape um tapa de vez em quando". Aqui são os mais idosos, entre 60 e 74 anos, que o consideram mais aceitável em mais de 5% dos casos, porém seguidos de perto pelos mais jovens. São sempre os mais jovens que consideram aceitável em porcentagem maior, pouco menos de 4%, que um garoto dê um tapa na sua namorada porque "flertou com outro homem".
São certamente percentagens amplamente minoritárias, mas que deveriam fazer soar um sinal de alarme, pois expressam modalidades de relação e de gênero que podem acabar legitimando, justamente, a violência, física ou sexual, dos homens contra as mulheres. Uma violência que a grande maioria, quase 80%, da população adulta de ambos os sexos até aos 75 anos considera um fenômeno muito ou bastante difundido, encontrando, aliás, uma confirmação empírica no número altíssimo de mulheres - talvez apenas a ponta do iceberg - que procuram todos os anos os serviços de emergência e os centros contra a violência, conforme documentado pelo Ministério do Interior e pelos dados do ISTAT sobre os centros. Mas uma minoria consistente, mais homens do que mulheres, acredita que, pelo menos no caso de violência sexual, a culpa seja das próprias mulheres. De fato, 39,3% dos homens pensam que uma mulher tenha condições de evitar uma relação sexual se realmente não quiser. E um em cada cinco homens acredita que as mulheres podem provocar a violência sexual com sua forma de se vestir. Entre as mulheres essas duas opiniões são menos partilhadas - 29,7 e 14,6% respectivamente. Mas, ainda assim, se trata de percentagens significativas. Há também uma convergência entre homens e mulheres na percentagem, entre 10% e 11%, que atribuem a responsabilidade pela violência (sofrida) às mulheres em caso de embriaguez ou uso de drogas ou de aceitar convite de um homem.
Essas opiniões também estão presentes entre os adolescentes, segundo dados de uma pesquisa sobre violência entre pares realizada este ano pela Ipsos para a Action Aid: para 4 em cada 5 uma mulher pode escapar de uma relação sexual se ela realmente não quiser. E para um em cada cinco, as garotas podem provocar a violência sexual se exibirem roupas ou comportamento provocantes.
Assim, a opinião de que as mulheres são responsáveis pelas violências que sofrem, porque não estão em condições, com seu comportamento, de conter a libido masculina, remete à imagem de homens à mercê de seus impulsos, animais em busca de presas, mas também galhos à mercê de suas pulsões. Mesmo sem impor a burca, ou o véu islâmico, pede-se às mulheres que “não coloquem em tentação os homens", porque eles não são capazes de se controlar.
Uma imagem partilhada também por uma parte dos mais novos ao terem as primeiras experiências de casal. Se eu fosse homem, me sentiria ofendido com essa imagem da masculinidade que transparece do desejo de controle sobre as mulheres e da culpabilização de seus comportamentos. E eu me perguntaria o que posso fazer justamente como homem para contrastar o desenvolvimento e consolidação nos processos de formação da identidade de gênero, masculina e feminina. Uma contraposição que deve também dizer respeito a outros aspectos dos estereótipos de gênero, aparentemente menos perigosos, mas que geram assimetrias tanto nas relações de casal como na sociedade, legitimando por sua vez formas de prepotência.
Ainda hoje, 23% dos homens adultos acreditam que seja função do homem prover às necessidades da família e, simetricamente, 24,6% acreditam que os homens sejam menos aptos a cuidar das tarefas domésticas - opiniões partilhadas respetivamente por apenas 11, 5 e 18,3% de mulheres. E 8,7% dos homens (3,9% das mulheres) acreditam que seja o homem quem deve tomar as decisões importantes para a família, sendo que 8,1% (4,9 das mulheres) consideram que uma boa esposa/companheira deve apoiar as ideias do marido/companheiro mesmo que não concorde.
A educação afetiva e às relações deve necessariamente abordar os modelos de gênero e os estereótipos em que se baseiam.
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Do controle das redes sociais às roupas: assim os estereótipos alimentam os abusos. Artigo de Chiara Saraceno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU