29 Novembro 2023
"Procurar caminhar com Jesus pelas ruas da Galileia, cruzar com ele fronteiras que pareciam muradas foram para mim e para muitas mulheres e vários homens de fé o redescobrimento de um companheiro de fé e de ressurreição, no sentido daquele 'viver como ressuscitados (e como ressuscitadas!)', que o Evangelho de João anuncia com as palavras do capítulo 11,25: 'Eu sou a ressurreição e o vida'", escreve Cristina Arcidiacono, teóloga batista, pastora em Milão, Itália, e membro do Conselho do IBTS Amsterdam, em artigo publicado por Mosaico di Pace, outubro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Verbo se fez carne e ser carne é típico do ser humano, ser corpo, assim como seu ser sexuado. Que Jesus tenha sido homem parece-me um fato compartilhado e consolidado.
Como afirma a teóloga Simona Segoloni Ruta desde o início de seu livro Jesus, masculino singular: “Não procuramos em Jesus a natureza masculina, que tal como a feminina, não existe, mas a sua vivência sexual, que se vê jogando de acordo com as regras da história; pode-se perceber apenas nas relações que ele vivencia, à luz dos significados então em jogo e das escolhas feitas em com base neles. Como ele entendeu e viveu sua masculinidade é, portanto, o elemento fundamental para os crentes, que depois têm a responsabilidade por vivências que tornem evidente a lógica de Jesus e assim o tornem presente”.
É, portanto, a vivência de Jesus que deve ser investigada, o contexto em que ele nasceu, tal como é narrado pelos Evangelhos, seus gestos e suas palavras numa sociedade patriarcal. Pensar na masculinidade de Jesus como veículo de salvação, em vez disso, leva-nos a um beco sem saída, no qual ser mulher significa então ser excluídas da Graça. Procurar caminhar com Jesus pelas ruas da Galileia, cruzar com ele fronteiras que pareciam muradas foram para mim e para muitas mulheres e vários homens de fé o redescobrimento de um companheiro de fé e de ressurreição, no sentido daquele “viver como ressuscitados (e como ressuscitadas!)", que o Evangelho de João anuncia com as palavras do capítulo 11,25: “Eu sou a ressurreição e o vida". Antes de entrar no sepulcro onde Lázaro jaz morto, acolhe as lamentações de Marta: “Senhor, se você estivesse aqui meu irmão não teria morrido” e se envolve com ela, sua amiga, assim como seu irmão, numa discussão teológica em torno da ressurreição. Na minha experiência de fé a palavra “Eu sou a Ressurreição e a vida” me dá o sentido, a orientação da existência como crente. Olhar para o mundo, viver a vida cotidiana como parte do mundo que Deus quer em Cristo, viver a sua Ressurreição, porque o Ressuscitado nos precede. Esse é, portanto, o quadro em que eu me movo, tentando seguir Jesus, caminhando segundo uma nova lógica, que é a sua lógica, a lógica de Deus: uma realidade na qual estão dispersos os soberbos nos pensamentos de seu coração, destronados os poderosos, reconhecidas como dignas as pessoas marginalizadas, os famintos são alimentados, as estrangeiras acolhidas, como Maria, discípula, canta louvando o Senhor que olha para baixo.
Se procurarmos nos Evangelhos, há vários episódios em que Jesus vai além dos estereótipos patriarcais, que eram o quadro existencial dos tempos e lugares em que viveu, para nos colocar face a face com a pergunta urgente sobre que tipo de testemunho podemos dar hoje a partir das nossas vidas de mulheres e homens, parciais, falíveis, vulneráveis.
Gostaria aqui de procurar as origens desse tipo de vivência masculina e parece que se encontra algo naquele caminho feito de continuidade e descontinuidade que é a história de Deus com seu povo e com toda a humanidade.
Nas Escrituras, a narrativa da fidelidade de Deus ao seu povo é acompanhada pela exigência do povo de encontrar-se depois o exílio, de reconstruir a sua identidade, de escolher uma narrativa de fundação. Aqui estão, então, as leis que proíbem o casamento com mulheres estrangeiras, para não se contaminar e não contaminar a fé, aqui estão as genealogias (Toledot), que narram a continuidade de pai para filho, aqui está a casta sacerdotal para proteger o culto. No entanto, ao lado disso, aqui está o livro de Rute, no qual uma “pequena”, uma moabita, estrangeira e amaldiçoada, ensina ao povo a fé e o sentido de ser companheiros e companheiras; e ainda assim, eis que diante das inadimplências e dos abusos dos filhos do sacerdote Eli, o Senhor escolhe o pequeno Samuel, para que nada seja dado como certo, muito menos o poder.
Já na Bíblia hebraica, portanto, o que ainda hoje um cristianismo que se define conservador (que oximoro, uma ironia que se autodenuncia diante d'Aquele que “faz novas todas as coisas”!) define “natural” é antes uma vocação, chamada a viver na e da lógica de Deus: a fraternidade (pensamos em Caim e Abel), justiça (pensamos em Tamar e Judá em Gênesis 34), o casamento (Rute, mas também o Cântico dos Cânticos, uma canção de amor, fora do casamento, mas não por esse motivo fora da relação com Deus).
Portanto, não é surpreendente que Jesus seja descendente, por parte de pai, de Davi, é claro, de Abraão, mas também de quatro mulheres fora da norma: Tamar, Raabe, a prostituta, Rute, Bate-Seba, vista como mulher de desejo (alheio). Maria é a quinta mulher, aquela que acolheu o chamado do Senhor. E Jesus é filho da promessa graças a um homem, José, que também aceitou o chamado do Senhor, que ouviu a sua voz nos sonhos, que se entregou à Vida sem ter medo perder a sua honra. É José quem oferecerá a Jesus, juntos e graças à ação de Deus na História, um exemplo de masculinidade em descontinuidade com os modelos dominantes. Filho de Deus e filho do homem, Jesus terá a liberdade de viver o seu próprio ser sexuado a partir de um olhar diferente e divergente.
Colocando as crianças no centro, por exemplo. No mundo antigo, as crianças e as mulheres não tinham subjetividade própria, faziam parte das propriedades do chefe da família.
Vistas como recipientes a serem preenchidos (conceito ainda não totalmente superado), as crianças eram percebidas como adultos em formação e a infância como um "mal necessário" para alcançar maturidade. Encontramos isso em Mateus 19,13-15, onde os discípulos se colocam entre as crianças e a sua bênção sobre eles. Jesus abre o círculo dos seus interlocutores e interlocutoras também às meninas e aos meninos, incentivando o mundo adulto a fazer o mesmo, a reconhecer nas crianças também a sua própria vulnerabilidade, seu próprio ser “pequenos”.
Ainda mais, em Mateus 18,3-6, no contexto da disputa sobre “quem é o maior no Reino dos céus”, Jesus coloca uma criança no centro. Uma criança, símbolo de todas e todos os pequenos, daqueles que estão embaixo. Compreender o reino de Deus, então, significa olhar para o mundo a partir da perspectiva das crianças.
Vulnerabilidade não rima com “ser o maior”.
Jesus viverá sua vulnerabilidade até o fim.
Ultrapassando os limites do puro e do impuro, se deixando tocar pela mulher com fluxo de sangue (Mc 4,24-35), conversando sobre teologia com a mulher samaritana (Jo 4,1-42), que então se tornará a evangelizadora da sua aldeia, comendo com os cobradores de impostos, sem julgar aquela que os “homens justos” queriam condenar (Jo 8, 1-11), ensinando os seus discípulos a serem servos uns dos outros, renunciando à própria “boa reputação”, acolhendo o desperdício da mulher que unge o seu corpo. E muito mais.
Na sua vivência de homem, masculina, Jesus dá nova forma e substância à nova masculinidade de um Messias esperado, até ao fim, até à cruz. O Verbo que se fez carne vive o que um homem, e ainda mais um filho de Deus, na mentalidade do contexto em que viveu, e provavelmente também naquele em que vivemos hoje, não deveria ter vivido, sob pena da maldição, da perda de toda credibilidade. Mas este é o mundo de Deus, o seu olhar, a sua lógica: não ter medo de se perder, porque na fé todos e todas encontram relações novas e renovadas, vivem novas formas de ser família, famílias, fundadas em relações renascidas, ressurgidas, que Deus recriou em Jesus.
Caminhar com o Ressuscitado, acompanhando a sua vida entre nós, reconhecer a vulnerabilidade e a importância de relações reconciliadas porque reconhecidas e renovadas é uma urgência que as mulheres viveram e continuam a viver e que cada vez mais os homens desejam levar a sério. Estão em jogo as Igrejas das quais fazemos parte, do nosso ser discípulos e discípulas do Deus vivo.
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Jesus e o masculino. Artigo de Cristina Arcidiacono - Instituto Humanitas Unisinos - IHU