29 Novembro 2023
"Quanto mais a o desejo da morte se instala entre nós, mais vagam pelas ruas do mundo homens (os mais expostos à erosão dos sentimentos que atinge toda a humanidade) que se apegam à raiva e às ações impulsivas para se libertarem do insuportável vazio psíquico que os habita".
A opinião é do psiquiatra e psicanalista greco-italiano Sarantis Thanopulos, em artigo publicado por Il manifesto, 25-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vivemos a morte de Giulia Cecchettin com a dolorosa consciência de que muitas jovens garotas cheias de vida viveram, vivem e viverão a sua condição de opressão, o seu desejo de ajudar o seu opressor, na esperança de redimi-lo e resgatar o sentimento que tinham dedicado a ele.
Arriscando-se a encontrar não apenas um “stalker” ou um homem violento, mas uma granada prestes a explodir portadora de morte.
Explicar os feminicídios com o ciúme, com o desejo de posse ou com o ódio nos leva a colocá-los no campo da comum violência humana grave. Atribuí-los genericamente ao patriarcado pode nos livrar da responsabilidade junto com o assassino. Existe uma nossa corresponsabilidade individual que tem a ver não só com a subserviência à mentalidade patriarcal, mas também com a dificuldade de reconhecer o insinuar-se da morte nos nossos espaços vitais e a presença entre nós de autômatos que se tornam o seu veículo.
A violência que a mulher sofre não é apenas externa (a milenária prevaricação masculina), mas também interna (a censura a que sujeita preventivamente a sua liberdade erótica). No entanto, a sociedade patriarcal nunca conseguiu subjugá-la, alienar a sua alma rebelde da injustiça. A mulher, embora historicamente oprimida, tem resistido, com a força interior que lhe é própria, à marginalização do seu desejo. Sua capacidade de resistir internamente à submissão do eros à lógica do mais forte manteve viva e desejosa a relação de todos com as coisas do mundo.
A emancipação da mulher de um sistema de poder que, por um lado, reprimiu a profundidade e a intensidade de sua relação erótica com a vida e, por outro, fundou silenciosamente sobre ela sua própria humanização e civilização, estagnou vistosamente. A multiplicidade dos direitos formais concedidos às mulheres de forma “desorgânica” e numa pequena parte do mundo, velou a impressionante restrição do tempo e dos espaços de convívio de que dispõem para desenvolver e viver o seu potencial erótico, mental e afetivo.
Há um ataque generalizado à sexualidade feminina (a matriz de toda experiência humana autêntica) de parte de uma sociedade cada vez mais dessexuada, imersa num agir performático obsessivo, que produz objetos e relações de consumo, que mata afetos e pensamentos e nos esvazia das nossas emoções.
Quanto mais a o desejo da morte se instala entre nós, mais vagam pelas ruas do mundo homens (os mais expostos à erosão dos sentimentos que atinge toda a humanidade) que se apegam à raiva e às ações impulsivas para se libertarem do insuportável vazio psíquico que os habita. São pessoas apagadas por dentro e quando não têm mais onde se segurar, matam na mulher o que mais revela o seu desligamento: a sua capacidade de amar sem cálculos, a sua esperança (confiança na humanidade), que mesmo a partir de uma erva daninha pode nascer uma flor.
É necessária uma aliança dos “amantes” (os sujeitos da sexualidade, da amizade, do convívio) que nos empenhe pessoalmente.
Os homens terão um futuro como sujeitos desejosos cultivando com cuidado o respeito pela liberdade e pelo idioma existencial do seu objeto erótico. Todos nós dependemos da rebelião das mulheres contra a restrição do seu enorme potencial criativo e expressivo enraizado na sensualidade da sua matéria psicocorpórea. Rebelião que reivindica a liberdade de dispor de seu corpo, sufocada no sangue no Irã.
Vamos proteger de todas as maneiras o amor das mulheres pela vida. Vamos isolar os autômatos assassinos (nem “monstros”, nem “bons garotos”), superando a cegueira que nos impede de vê-los. São importantes a prevenção e o cuidado afetivo (assassinos sem ódio e sem emoções não podem ser tratados com tranquilizantes).
Igualmente importante é a sanção que não concede falsos atenuantes, os “turbulentos” estados de espírito.
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Giulia e a morte que mora entre nós. Artigo de Sarantis Thanopulos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU