03 Março 2020
“Todos os estudos que parecem dar por assentado que o sexo é suficiente para classificar os indivíduos que estão estudando deveriam ser anulados e reiniciados”. Com a cientista britânica Gina Rippon, professora de Neuroimagem Cognitiva da Universidade de Aston (Birmingham), tudo volta ao início. Já não valem as especulações, nem os preconceitos, nem as manipulações ideológicas.
Rippon, que nesses dias visita a Espanha para divulgar El género y nuestros cerebros (Galaxia Gutenberg), usa sua especialidade, as mais avançadas técnicas de imagem cerebral, para derrubar tópicos e construir “a nova neurociência que rompe o mito do cérebro feminino” (como reza o subtítulo do volume).
“O chamado cérebro feminino aturou que, durante séculos, fosse qualificado como pequeno demais, subdesenvolvido, evolutivamente inferior, desorganizado e, em geral, defeituoso”, destaca Rippon. As mulheres foram ainda mais humilhadas por isso ser considerado a causa de sua inferioridade, vulnerabilidade, instabilidade emocional e inaptidão científica, ou seja, de que são incapazes de assumir qualquer tipo de responsabilidade, poder ou grandeza”.
Rippon, como demonstrou durante sua estadia em nosso país [Espanha] (incluindo a conferência na Fundação Ramón Areces), não conhece rotina. Já está distanciada das salas de aula, mas percorre o mundo participando em laboratórios de ideias, de think tanks, divulgando suas conclusões sobre o cérebro de gênero. Seu objetivo: a educação (é membro do programa britânico Speakers4Schools) e fazer com que as mulheres se interessem pela ciência.
“Os velhos conceitos errôneos continuam aparecendo com novos disfarces. A mensagem fundamental do meu livro é que um mundo sexista produz um cérebro sexista”. Por isso, colabora com a Fawcett Society, que pesquisa os efeitos dos estereótipos de gênero durante os primeiros anos de vida, com a NeuroGenderings Network, uma rede de cientistas que trocam ideias em suas diferentes áreas de pesquisa, e com a Tackling Pseudoscience, uma rede interdisciplinar que pesquisa a desinformação, especialmente nas redes sociais. “Continua existindo ecos de erros e mal-entendidos passados, com os quais devemos ser cautelosos. Sobretudo, ao falar de pesquisa sobre as diferenças sexuais no cérebro”.
A entrevista é de Javier López Rejas, publicada por El Cultural, 26-02-2020. A tradução é do Cepat.
Acredita que a função social e a cooperação moldam o cérebro?
Penso que o cérebro humano evoluiu para sustentar as atividades sociais humanas. As interações entre os processos internos do cérebro e os processos sociais externos são, por si só, transformadores cerebrais.
Existem diferenças no cérebro de acordo com o sexo?
Em média (é importante considerar esse termo), nos cérebros adultos certamente há diferenças relacionadas aos diferentes papéis no processo reprodutivo, por exemplo, na densidade dos locais receptores de hormônios. Muitas pesquisas foram feitas tentando identificar diferenças estruturais (ou mesmo funcionais) entre os cérebros de recém-nascidos ou fetais, mas até agora não surgiram resultados consistentes.
Costumo dizer que atualmente não existe uma estrutura cerebral ou um conjunto de estruturas que identifiquem de maneira consistente e confiável um cérebro como masculino ou feminino. Existem algoritmos de aprendizagem automática que alcançaram uma taxa de sucesso de aproximadamente 85%, mas ainda falam de dados em nível grupal, ou seja, levando em consideração o resultado médio.
O problema é a grande variabilidade dos dados de cérebros femininos ou masculinos, e o fato de haver uma grande quantidade de sobreposição desses dados. As diferenças, em termos gerais, são muito pequenas. Portanto, a pergunta “De que sexo é esse cérebro?” não é pertinente.
Considera que o cérebro é moldado pela sociedade? O que há de inato e o que há de adquirido?
As mudanças em nossos cérebros estão tão entrelaçadas com as experiências externas, desde o momento do nascimento - se não antes -, que não podemos dizer com certeza o que é “inato” e o que é “condicionado”. Se um cérebro em desenvolvimento está exposto a diferentes experiências, se desenvolverá em função dessas experiências. Se as diferenças são determinadas pelos estereótipos de gênero, os cérebros dos meninos ou das meninas podem chegar a se desenvolver de forma diferente.
Qual é a sua opinião sobre a separação de meninos e meninas nas escolas? De que maneira influencia em seu desenvolvimento?
Quem faz isso baseia sua decisão na premissa de que todos os meninos são diferentes das meninas, uma falsa premissa. Isso afetará, sem dúvida, o desenvolvimento social, uma parte muito importante da educação.
Por que considera que Darwin, um cientista capaz de descobrir os fundamentos da vida, tinha tantos preconceitos sobre as mulheres?
Como muitos cientistas da época, Darwin aceitou sem questionar o papel das mulheres na sociedade, ou seja, sua inferioridade, e aplicou seus princípios científicos emergentes para explicá-lo.
Como o cérebro foi moldado pela evolução? Fez distinções entre o masculino e o feminino de alguma maneira?
Essa questão abarca uma enorme área que incorpora biologia e psicologia evolutivas, além de antropologia, sociologia e história. Todas se encarregaram de enfatizar essas diferenças.
A esse respeito, Rippon dedica vários capítulos do livro El género y nuestros cérebros. Também interessantes comentários na parte intitulada Marte, Venus o Tierra? Hemos estado siempre equivocados sobre el sexo?. Para a professora britânica, a busca por diferenças entre o cérebro dos homens e o das mulheres foi incansavelmente perseguida ao longo dos tempos, com todas as técnicas que a ciência dispunha:
“Desde que existe a vida, houve a certeza de que os homens e as mulheres são diferentes. As mulheres, empáticas, cheias de fluência emocional e verbal (sempre se lembram dos aniversários), quase poderiam pertencer a uma tribo diferente da dos homens, sistematizadores, racionais e dotados de habilidade espacial (que lidam bem com os mapas)”.
E ele alerta sobre os estudos lixos [neurolixo’: “Convém não perder de vista a loucura neuronal que caracteriza, em parte, a pior literatura popular sobre assuntos científicos, especialmente no gênero de autoajuda. Os estudos lixos podem desacreditar o trabalho verdadeiramente importante que sai dos laboratórios de neurociência”.
Em seu livro, questiona certos métodos científicos para analisar o cérebro. Avalia que foi mal estudado?
Não, mas se subestimou a influência do contexto político em que se desenvolveram.
O que nos ensinam projetos como os da American Brain Foundation ou Human Brain?
Que a ciência do cérebro ainda tem um longo caminho a percorrer.
Rippon culmina a virada nos estudos sobre o cérebro, questionando-os desde a base: “No século XXI, psicólogos e neurocientistas estão começando a colocar em questão a própria pergunta: Até que ponto homens e mulheres são diferentes, não apenas no comportamento, mas inclusive em algo mais fundamental, em nível cerebral? Dedicamos todos esses esforços para examinar dois grupos separados que, na realidade, não são tão diferentes e que talvez nem sequer são dois grupos?”.
E conclui: “Agora que sabemos que as explicações de todos os tipos de lacunas de gênero são uma mistura de processos baseados no cérebro e processos baseados no ambiente, devemos estar conscientes de que, para resolver o problema, é preciso desfazer cada um dos fios e buscar encontrar uma versão melhor”.
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“Um mundo sexista produz cérebros sexistas”. Entrevista com Gina Rippon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU