09 Março 2024
Diversas formas de violência machista têm entre suas vítimas meninos, meninas e adolescentes. Embora sejam violências distintas, a violência contra as mulheres e a violência contra a infância compartilham a mesma origem. Algumas autoras argumentam sobre um "transbordamento infantil" do sujeito do feminismo.
A reportagem é de Patricia Reguero Ríos, publicada por El Salto, 08-03-2024.
A palavra niñismo ["criancismo"] não está no dicionário. Essa foi a resposta da Real Academia Espanhola de la Lengua ao buscarmos a tradução do termo childism. O childism pode ser entendido como a ideia radical de que meninos e meninas são pessoas, para usar a referência de Angela Davis. Seria para as infâncias o que o feminismo é para as mulheres.
Mas a ideia de um "movimento criancista" parece distante. Assim como é distante – ou anedótica – a aliança entre um movimento das infâncias e os movimentos das mulheres, mesmo que muitas das violências que sofrem tenham a mesma origem e que muitas violências machistas tenham entre suas vítimas crianças, meninas e adolescentes.
Em 1989, a Ponencia de Investigación de Malos Tratos a Mujeres, da Comissão de Direitos Humanos do Senado espanhol, já reconhecia o impacto da violência de gênero em casal sobre os filhos e filhas das vítimas. Mas essa visibilidade foi fugaz e não resultou em medidas concretas, como aponta Paula Reyes Cano em sua tese "Menores y violencia de género: nuevos paradigmas", publicada em 2019.
A Lei Orgânica 1/2004, de 28 de dezembro, de Medidas de Proteção Integral Contra a Violência de Gênero, aprovada por unanimidade no Congresso espanhol e que se tornaria uma lei de referência nos anos seguintes, representou uma mudança de paradigma ao reconhecer que as situações de violência contra a mulher "afetam também os menores que se encontram em seu entorno familiar" e criar algumas medidas de proteção. Essas medidas estão descritas nos artigos 64 ("das medidas de saída do domicílio, afastamento ou suspensão das comunicações"), 65 ("das medidas de suspensão da guarda parental ou a custódia de menores") e 66 ("da medida de suspensão do regime de visitas, permanência, relação ou comunicação com os menores").
No entanto, o texto da lei era herdeiro de um contexto que ainda considerava que crianças e meninas eram uma extensão das mães. Como explica Reyes Cano em sua tese, a terminologia utilizada na época refletia essa ideia. Para se referir a essa realidade, eram utilizados termos como "filhos e filhas de mulheres maltratadas", "filhos e filhas testemunhas" ou "filhos e filhas expostos a violência de gênero", explicitando sua consideração como apêndices ou vítimas secundárias. No entanto, a exposição à violência, como demonstram muitos estudos, tem consequências diretas para crianças e meninas.
Em julho de 2008, o Ministério da Igualdade lançou a campanha "Tolerância Zero ao Abusador". A IX Legislatura havia acabado de começar em abril, com José Luis Rodríguez Zapatero como presidente e o primeiro Ministério da Igualdade como marca registrada – uma marca que foi deixada de lado dois anos depois, em 2010, devido à crise. "Tolerância Zero ao Abusador" propunha uma mudança na sensibilização sobre a violência de gênero no contexto do casal: seu objetivo era promover a rejeição e o isolamento social do agressor. Foi apresentado ao público com três lemas: "Quando você agride uma mulher, deixa de ser um homem", "Nem pense em me tocar, nunca" e "Mamãe, faça isso por nós, aja". Com este último, a campanha introduziu na cena pública as crianças que sofrem violência de gênero no contexto do casal, um detalhe significativo que acompanha a reflexão que estava ocorrendo naquele momento, conforme destacado pelo trabalho da Save The Children em 2006 "Atenção às Crianças Vítimas de Violência de Gênero". Em 2011, a Save The Children publicou o estudo "Na violência de gênero, não há uma única vítima" e aprofundou essa linha, como destacado pela tese de Reyes Cano.
No entanto, foi apenas em 2015 que ocorreu uma mudança legislativa significativa: a Lei 26/2015, de 28 de julho, que modificou o sistema de proteção à infância e adolescência, introduz "como princípio orientador da atuação administrativa a proteção dos menores contra qualquer forma de violência, incluindo aquela ocorrida no ambiente familiar, de gênero". No mesmo ano, foi aprovada a Lei 4/2015, de 27 de abril, que trata do Estatuto da Vítima do Crime, que em sua exposição de motivos "visibiliza os menores que estejam em um ambiente de violência de gênero e doméstica, para garantir-lhes acesso aos serviços de assistência e apoio, bem como a adoção de medidas de proteção, com o objetivo de facilitar sua recuperação integral".
Essas duas mudanças legislativas significaram o reconhecimento de crianças e adolescentes como vítimas diretas da violência de gênero no contexto do casal ou ex-casal. No entanto, como destaca Reyes Cano em sua tese, essa mudança foi apenas complementada por uma tentativa de reforçar as medidas já existentes, que os juízes, na prática, não estavam aplicando. As estatísticas já mostravam naquela época a resistência dos tribunais em aplicar medidas de afastamento dos pais agressores, como ainda acontece hoje em dia.
Entre a apresentação que em 1989 refletia como crianças eram vítimas diretas de uma das formas mais difundidas de violência machista e mais abordadas legislativamente, e seu reconhecimento em 2015 como vítimas diretas, há 26 anos de reflexão, estatísticas e alertas dos movimentos feministas e das sobreviventes. Hoje, é uma obviedade que crianças e adolescentes sofrem diretamente essa forma de violência machista. E algumas acadêmicas propõem não parar por aí na jornada.
Patricia González Prado é doutora em Direito Público e Filosofia Jurídico-Política pela Universidade Autônoma de Barcelona e integrante do grupo de pesquisa Antígona, e argumenta que meninas, meninos e adolescentes, juntamente com as mulheres, devem ser considerados como sujeitos receptores de violências machistas na articulação de políticas públicas. González Prado toma como referência as violências sexuais contra a infância que, ela afirma, devem ser pensadas em termos de violências machistas. Porque, argumenta, o que qualifica uma forma de violência como violência machista não precisa ser apenas o gênero das pessoas que a sofrem com maior incidência ou quem a exerce com preeminência, mas também os mecanismos que são acionados e o impacto que têm.
Nesse sentido, a violência sexual funciona como uma ferramenta de afirmação do poder e do controle patriarcal. "O pater familias do qual se falava anteriormente no direito pode dispor de todos os corpos que tem de alguma forma controlados ou subjugados", aprofunda, fazendo referência ao conceito com o qual na Roma clássica se denominava o homem com poder sobre propriedades e pessoas sob seu domínio, incluindo os filhos, um conceito que o direito moderno herdou. Assim, as violências sexuais contra a infância podem ocorrer porque "construímos a infância como sujeitos degradados em nossas sociedades, e isso é assim porque temos uma organização machista e patriarcal dessa sociedade", sustenta. Isso explica a violência sexual contra meninos e meninas não apenas no âmbito familiar, mas também em outros, onde da mesma forma meninos e meninas são sujeitos hierarquicamente inferiores. "A masculinidade hegemônica é aquela ordem que requer a reafirmação de subordinações permanentes de outro; isso vale para as mulheres, mas também para a infância, e vale tanto dentro de casa quanto na escola, na comunidade e no restante das instituições", diz esta pesquisadora.
Mas são as violências contra a infância sempre violências machistas? "Em termos gerais, poder-se-ia dizer que a violência contra a infância é uma violência patriarcal", reflete Paco Herrero Azorín, educador social e coordenador da La Dinamo Acció Social, que refletiu longamente sobre as violências contra a infância a partir de uma abordagem não adultocêntrica. "A ordem social que não valoriza o reprodutivo, que deprecia o doméstico, que subestima a participação de meninos e meninas em seus contextos vitais e impede uma sociabilidade básica é patriarcal", explica. As violências contra a infância e as violências machistas têm outro ponto tangente, como aponta Herrero: são possíveis graças a uma hierarquia em que meninos e mulheres ocupam lugares subalternos. No entanto, Herrero adverte: "a violência contra a infância é sofrida indistintamente por meninos e meninas, é exercida por homens e mulheres, e é consequência de uma adultocracia que é socialmente consensual".
Violeta Assiego, advogada e ativista de direitos humanos, que foi diretora-geral de direitos da infância e adolescência entre maio de 2021 e janeiro de 2022, concorda com essa abordagem: embora compartilhem uma origem, essas violências são diferentes e é perigoso confundi-las. "As violências machistas não deixam de ser a materialização de uma ordem muito específica, patriarcal, mas são violências diferentes; se não tivermos isso em mente, podemos cair na armadilha da extrema direita e esquecermos como impactam de forma específica e, portanto, como estabelecer linhas específicas para preveni-las", adverte.
Formas de violência machista contra a infância. A palavra "bebês" não aparece na lei da infância, apesar do esforço de algumas organizações para que fosse incluída, com várias propostas apresentadas pelo Instituto de Saúde Mental Perinatal, a associação El Parto es Nuestro, a Iniciativa para a Humanização da Assistência ao Nascimento e à Lactação da Unicef e a Associação Espanhola de Psiquiatria da Criança e do Adolescente (AEPNYA) e a associação La Dinamo Acció Social. Embora isso não chame a atenção de ninguém. Apesar de ter sido excluída da lei de saúde sexual e da lei da infância, o trabalho para visibilizar a violência obstétrica tem sido enorme nos últimos anos. Mas foi quase exclusivamente feito destacando como isso afeta as mulheres e esquecendo as outras vítimas: os bebês. "Parece que se pode falar de violência obstétrica à parte da violência contra a infância, quando diretamente atenta contra seus direitos mais básicos e suas possibilidades vitais, tanto em termos de saúde física quanto psicossocial", aponta Herrero, que além de coordenador da La Dinamo, é membro e formador do Instituto de Saúde Mental Perinatal.
Do ponto de vista perinatal, não é a única forma como as violências machistas impactam meninas e meninos, explica. Em sua abordagem, "tudo o que erode o ecossistema de cuidados é um exercício direto de violência contra a infância", diz antes de descrever um panorama onde a precariedade e a negligência dos serviços de assistência se aliam para serem cúmplices de uma violência estrutural. "A violência machista, quando se expressa diretamente contra a infância, nas famílias, nos parques ou nas escolas, encontra muito poucas barreiras de proteção social devido ao desamparo generalizado e impacta com força, ferindo e normalizando a ferida", assegura.
Violeta Assiego amplia um pouco mais o mapa de como as violências machistas atingem a infância e cita, além da violência de gênero em casal, todas as violências LGBT-fóbicas. "O fato de haver uma violência que tenta preservar a cis-heterossexualidade, em minha opinião, é uma violência precisamente conectada ao machismo; é um tipo de violência em que se está impondo e incentivando a pessoa a acabar sendo um determinado tipo de homem ou mulher", justifica.
E, ao tentar enumerar que tipos de violências machistas afetam meninas e meninos, é necessário mencionar a "violência vicária". A lei catalã sobre violências machistas foi modificada no ano de 2020. A reforma amplia significativamente as formas de violência machista e inclui a "violência vicária", que é definida assim: "Consiste em qualquer tipo de violência exercida contra os filhos com o objetivo de causar dano psicológico à mãe". Também a lei de proteção integral à infância e à adolescência contra a violência reconhece esse tipo de violência através de uma modificação da lei integral de 2004. O conceito de "violência vicária" também foi assumido na estatística de feminicídios que o Ministério da Igualdade lançou em 2022, embora de forma diferente: esta estatística conta, entre outros, os "feminicídios vicários", que são os assassinatos de mulheres adultas por parte de um homem como instrumento para causar prejuízo ou dano a outra mulher por motivo de gênero.
"Violência vicária" é um conceito desenvolvido pela psicóloga Sonia Vaccaro para se referir ao que entende como um tipo de violência "deslocada": é cometida contra uma pessoa para ir contra outra. Em Violência vicária, atingir onde mais dói (2023), ela explica como começou a desenhar o conceito no ano de 2012, quando conheceu uma mãe cujo filho foi assassinado pelo pai biológico. Ela então o definiu como "aquela forma de violência contra a mulher que se apropriava dos filhos como objetos para continuar prejudicando-a, tirando proveito do direito que as leis lhe concediam e que a justiça e as instituições respeitavam estritamente, aproveitando a supremacia de manter sempre contato com eles". Para a autora, seria uma violência secundária, onde a vítima principal é a mulher e que pode adotar várias formas: não pagamento de pensões alimentícias, falta de cuidados, atitudes imprudentes, perturbação do relacionamento dos filhos com a mãe ou degradação do papel da mãe. A forma mais extrema é o assassinato.
Em março de 2023, o Vox promoveu no Congresso, no Senado e em vários parlamentos regionais propostas não vinculativas e moções "em defesa da figura paterna". No texto, argumentava-se que "certas teorias" radicais e extremistas contribuíram para a "demonização da paternidade e, com ela, da família". Uma proposta que reflete bem – como faz a imposição do "pin parental" – o que Violeta Assiego diz: "Quando se fala em infâncias, a extrema direita começa a ficar nervosa" porque "percebem que há um risco para sua retórica". Por isso, Assiego vê nas infâncias um tema estratégico para os feminismos.
"Atualmente, parece que existem duas perspectivas, isso nunca deveria ter sido assim". Quem fala é Noemí Pereda, professora titular na Universidade de Barcelona e integrante do grupo de pesquisa Victimització Infantil i Adolescent (GReVIA). E ela faz isso para fornecer um pouco de contexto histórico: o feminismo é o movimento que iniciou o estudo e a pesquisa sobre abuso sexual infantil no final dos anos 80, depois de detectar como a violência contra as mulheres também ocorria contra meninos e meninas. "A aliança era total", destaca, embora reconheça a abordagem adultocêntrica dessa primeira abordagem, que visava proteger os filhos das mulheres que denunciavam a violência.
Esquecida ou anedótica, essa aliança também se mantém até hoje. Um exemplo são os recentes estudos sobre violência de gênero, nos quais meninas e meninos do Enclave de Avaliação para a Cruz Vermelha têm voz, sob a direção da especialista em infância Marta Martínez, uma referência no tratamento das políticas de infância sob a perspectiva do protagonismo delas. Para Martínez, há um diálogo a ser feito onde é necessário abandonar alguns preconceitos: "Precisamos de muito mais feministas no âmbito das infâncias e mais críticas na área da niñologia no feminismo, embora isso corra o risco de que umas sejam tratadas de forma indulgente e as outras sejam vistas como um risco de infantilizar o movimento". O que ela propõe não é um obstáculo pequeno, já que aponta para o coração de um dos debates feministas mais recorrentes e insolúveis.
Em outubro de 2018, uma intervenção da pesquisadora Sam Fernández desencadeou uma reação em cadeia entre as feministas. A legislatura do primeiro governo de coalizão ainda não havia começado, na qual a lei trans seria debatida e a máquina do feminismo transfóbico e excludente de trans seria ativada. Mas naquela época, suas palavras - "temos que arriscar o sujeito do feminismo" - já geravam debate. Por isso, pensar em uma ampliação para as infâncias pode parecer temerário. "Este é um medo que nos está impedindo de fazer reflexões que já vemos serem necessárias; as infâncias devem ser integradas ao sujeito político dos feminismos", diz Patricia González Prado. "Obviamente faz sentido que tenha se centrado nas mulheres, mas o feminismo deve lutar contra a sociedade patriarcal, seja qual for a vítima", diz Noemí Pereda, que prefere falar em "violências patriarcais", como também fizeram outras pessoas entrevistadas para este artigo.
Pensar em novas alianças e entender a infância como um espaço político é urgente, diz Marta Martínez, e sem dúvida revitalizaria o feminismo. Todas concordam sobre a necessidade de uma troca entre feminismo e "niñologia", uma palavra usada por Martínez. Ela faz outra observação importante que obriga a mudar o último parágrafo deste texto, onde se sugeria a conveniência de avançar para um feminismo infantilista: já existe um conceito, que vem principalmente de experiências do sul global e principalmente de países da América Latina. E "o que tem origem no sul latino deve ter uma denominação latina". Esta especialista prefere falar em "movimento de protagonismo das infâncias". Embora, acrescente, recentemente começou-se a falar também de "perspectiva infantil" no contexto desse processo, que está em andamento. Tome nota. Aponta-se a utilidade de ter um termo mais curto. Um que caiba em uma manchete e que a RAE defina em uma linha. Porque, quem sabe, talvez essa aliança possa surgir e até mesmo o jornalismo possa se tornar menos adultocêntrico. Mais infantil.
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Infâncias, violências machistas e o sentido de um feminismo “criancista" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU