26 Novembro 2024
"Para as mulheres que se assumem feministas, não há separação entre feminismo e religião, pois a fé é uma força propulsora para seguir as lutas contra as adversidades que perpassam suas vidas".
O artigo é de Letícia Rocha.
Letícia Rocha é graduada e mestra em Ciências da Religião. Pós-graduada em Neuropsicologia Educacional e em Pensamento Andino/Feminismo Decolonial. Doutoranda em Ciências Sociais – UNIFESP.
Apesar do sexismo das religiões dominadas pelos homens, as mulheres encontraram em práticas espirituais um lugar de consolo e um santuário – bell hooks
Iniciamos essas reflexões tendo como moldura este enunciado da feminista negra e ativista estadunidense bell hooks para destacar o lugar das religiões na vida das mulheres. As diferentes tradições religiosas – e cada uma a seu modo – exercem fascínio sobre o ser humano, que já nasce com a pré-disposição à dimensão sagrada. Como nos assevera o historiador das religiões, Hans-Jürgen Greschat (2005, p. 23), “onde há seres humanos, a religião está por perto”. Ou seja, as religiões são realidade inerentes à experiência humana. A importância da dimensão religiosa pode ser evidenciada no número expressivo de templos religiosos contabilizados nos primeiros dados acerca das religiões do Censo de 2022, publicados em fevereiro do ano corrente. O Censo aponta que há, no Brasil, 579,7 mil estabelecimentos religiosos. Comparados aos 264,4 mil de ensino e 247,5 mil de saúde, tais número denotam a centralidade do substrato religioso na sociedade brasileira.
No entanto, por ser lugares formados por pessoas humanas possuem ambiguidades e contradições em seu bojo. Isso pode ser verificado na relação entre mulheres e igreja: elas são o número maior que compõe os serviços religiosos. Pesquisa realizada em 2020 aponta que, nas igrejas evangélicas, são 58% de mulheres e 51% na igreja católica. Em ambas as denominações, elas são a maioria, porém, seguem sendo alijadas dos espaços de poder e decisão. O sexismo, machismo, patriarcalismo e o racismo presentes no interior dos espaços religiosos, principalmente cristãos, relegam as mulheres adeptas a lugares de menor importância. Faço duas advertências antes seguirmos com as questões propostas para este ensaio. Primeira – as reflexões são desenvolvidas a partir do cristianismo, mais especificamente em sua versão católica, campo que pesquiso e estudo. Segunda – apresento feminismos no plural, dado o seu caráter diverso e múltiplo em suas expressões.
O feminismo hegemônico originário da Europa, “berço da civilização” (Miñoso, 2016), posteriormente disperso para todo o mundo, inicia-se com fortes e contundentes críticas às religiões, porque entende que, em seu cerne, encontram-se o machismo/patriarcalismo, o sexismo, a opressão, ou seja, elementos que mantêm os corpos e a vida de mulheres aprisionados. Sem mobilidade, elas se mantêm encerradas no ambiente doméstico e no cuidado materno. A criticidade do pensamento elaborado por muitas feministas – e seguido por inúmeras mulheres que se identificaram com tal pensamento – provocou o afastamento do feminismo de alguns temas importantes, nesse caso, aqui, a religião.
Outro dado interessante acerca da emergência do feminismo é que esteve, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres (Carneiro, 2019). Isso fez com que a formação do pensamento feminista contemporâneo tivesse uma perspectiva unidimensional sobre a realidade feminina, que se aproximava muito mais das mulheres brancas, tornando-as aquelas que dominam o discurso feminista (hooks, 2019), invisibilizando mulheres negras, indígenas, quilombolas, trans e outras de seu ideário.
A equação feminismos e religião nunca foi promissora desde os seus inícios, as igrejas tiveram um olhar de suspeita sobre o movimento feminista, o que causou um divórcio entre estes dois domínios. Ademais, afirmamos que em quase nenhuma vertente feminista o tema da religião tem sido parte das discussões e elaborações. O que encontramos são breves acenos, por exemplo, no interior do feminismo negro, esta vertente do feminismo emerge para evidenciar as demandas de mulheres negras, colocando-as no palco da visibilidade. Os escritos de bell hooks (2019, 2020) contribuem para pensar a dimensão religiosa em seus textos – não a religião em si, mas a espiritualidade, que é mais ampla.
Nessa senda, a ausência de diálogo entre feminismos e religião na América Latina, impede o desenvolvimento de cooperação de garantia de direitos para todas as mulheres (Gebara, 2017). É fato que a religião possui uma centralidade na sociedade e na vida de muitas mulheres, reiteramos o que afirmamos acima, são elas, em sua maioria, que fazem a experiência de uma realidade transcendente, são elas em número expressivo nas comunidades religiosas. E muitas dessas mulheres inseridas nesses espaços religiosos se consideram feministas. O que aproxima a experiência de mulheres que se afirmam cristãs e feministas? Aventamos, a partir da nossa experiência e leituras, propor algumas respostas a este questionamento.
A história do cristianismo católico é caracterizada pela subjugação, machismo, patriarcalismo e inferiorização das mulheres. Com base nesse histórico é que a crítica à religião começa a ser feita muito fortemente pela teologia feminista (Rosado, 2017). As teólogas feministas apropriam-se dos pressupostos do feminismo para fazerem uma leitura a partir da teologia, e é desse modo que o feminismo adentra o ambiente católico. A teologia feminista revisa e questiona as imagens patriarcais de Deus-homem/branco/hétero, os textos bíblicos, as questões que dizem respeito à sexualidade humana e outros temas. No que diz respeito a essas imagens, o catolicismo garante privilégios de classe, raça, sexo e gênero. E é danosa para a diversidade de mulheres e grupos LGBTQIA+. O pensamento teológico feminista tem contribuído decisivamente para explicitar, reafirmar e a legitimar o lugar da mulher cristã.
A teologia feminista eclode no seio da América Latina nos anos 1960, alimenta-se dos pressupostos da teologia da libertação. Contudo, avança, evocando discussões e provocando questionamentos a temas que são caros ao cristianismo, como questões referentes à sexualidade, ao corpo, às imagens patriarcais de Deus, gênero, ausência de mulheres nos ministérios ordenados, dentre outros assuntos que foram silenciados em certa medida pela teologia da libertação (Rocha, 2019). Para além da teologia em sua expressão feminista, citamos a teologia negra e queer como teologias descolonizadoras com capacidade de atingir a capilaridade das demandas de grupos de pessoas e comunidades que não foram devidamente consideradas em outras análises teológicas. As referidas teologias em conjunto com a teologia feminista possibilitaram novos deslocamentos à prática de mulheres no interior do cristianismo. Citamos brevemente alguns aspectos das teologias negra e queer para entendermos a importância desses saberes principalmente para a vida e as lutas das mulheres.
A teologia em sua vertente negra visa um fazer teológico a partir das necessidades do povo negro, o que inclui o corpo e o pensamento negro como fonte (Pacheco, 2019). É o resgaste da história e das culturas dos povos afrodiaspóricos – suas lutas por libertação e reconhecimento de sua negritude em países em que, embora possuam maioria da população negra, como no caso o Brasil, ainda permeia fortemente, nas estruturas e nas instituições, o racismo, que adoece, fere e mata. Essa teologia tem sido assumida por um contingente de homens e mulheres na América Latina e Caribe que têm se debruçado sobre o assunto e oferecido abundantes textos. Citamos alguns nomes: Maricel Mena Lopez, Cleusa Caldeira, Silvia Regina e Margarida Sanchez de León, dentre outras/os.
No que se refere à teologia queer, essa tem nas obras da argentina Marcella Althaus-Reid (2005, 2019) sua expressão máxima de rebeldia e denúncia aos sistemas opressores religiosos. A teologia queer nasce na década de 1990 e se coloca como importante movimento para um novo reconhecimento de Deus fora da ideologia heterossexual perpetuada pela teologia cristã (Althaus-Reid, 2019). É uma teologia que centra sua atenção no corpo e no prazer, dimensões ignoradas pelas teologias cristãs existentes, que pouco ou nada discutem sobre o corpo. Em nossos territórios, temos os estudos de Andre Musskopf, Hugo Córdova Quero, Laura Abate, entre outros.
Evocamos tais teologias para mostrar o caminho que possibilitou o acercamento do feminismo à religião pelo menos nesses últimos 60 anos. Mas, também, se faz importante dizer que o próprio feminismo impactou as práticas religiosas, impulsionando mudanças nas práticas e modos de vivenciá-las por parte das mulheres adeptas à religião (Rosado, 2017).
À luz dessa perspectiva, a teóloga feminista Anete Roese busca compreender, em suas pesquisas, o sentido da religião para as mulheres no contexto atual. Para isso, transita pela literatura atinente ao tema e vai a campo observar e ouvir as mulheres inseridas nos espaços religiosos. O que autora descobre é que há um movimento protagônico liderado por mulheres, um novo modo de fazer religião. Para Roese (2015, p.1343), “temos que escutar as mulheres, e os diferentes grupos de mulheres e seus contextos, para que se saiba o que é religião segundo a vivência e os saberes delas”.
Nessa esteira de pensamento, há um modo de experimentar a religião que é peculiar às experiências realizadas por mulheres. Este modo estabelecido por elas está intimamente associado ao cotidiano, às lutas empreendidas em seus bairros por melhorias das ruas, saneamento básico, asfalto, iluminação, creches para seus filhos, educação, postos de saúde, violências diversas que as afligem, maternidade e parto seguro, contraceptivos, interrupção voluntária da gravidez etc. Por isso, para as mulheres que se assumem feministas, não há separação entre feminismo e religião, pois a fé é uma força propulsora para seguir as lutas contra as adversidades que perpassam suas vidas. Enfim, feminismos e religião dialogam harmonicamente no cotidiano de vida das mulheres inseridas nos espaços religiosos.
A experiência de ser feminista e cristã no Brasil, e em outros países latino-americanos, encontra apoio e reconhecimento em ONGs, grupos, coletivos, movimentos de mulheres. Esses grupos são espaços de acolhimento às demandas dessas que se encontram inseridas nos espaços religiosos, ao possibilitar organizar um pensamento crítico em relação à instituição, à hierarquia essencialmente masculina, às relações assimétricas de gênero, à sexualidade humana, aos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Esses grupos colocam em xeque assuntos ignorados pelas igrejas e que são permanentes nos círculos feministas. As dinâmicas provocadas pelas mulheres podem ser fator de mudanças a longo prazo no interior da igreja no que diz respeito à relação entre feminismos e religião.
ALTHAUS-REID, Marcella. La Teologia Indecente: perversiones teológicas em sexo, género y política. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2005.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
GEBARA, Ivone. Mulheres, religião e poder. São Paulo: Terceira Via, 2017.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião. São Paulo: Paulinas, 2005.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 8.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.
MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. De por qué es necesário un feminismo descolonial: diferenciación, dominación constitutiva de la modernidade occidental y el fin de la politica de identidade. Revista Solar, ano 12, v. 12, n. 1, p. 141-171, 2016. Acesse aqui.
PACHECO, Ronilso. Teologia negra: o sopro antirracista do Espírito. São Paulo: Recriar, 2019.
PINHONI, Marina; CROQUER, Gabriel. Brasil tem mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos; Região Norte lidera com 459 para cada 100 mil habitantes. G1 Economia, 2 fev 2024. Acesse aqui.
ROCHA, Letícia A. F. L. Mulheres e CEBs em Montes Claros-MG: descolonialidade e empoderamento. Dissertação (mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2019.
ROESE, Anete. Religião e Feminismo Descolonial: os protagonismos e os novos agenciamentos religiosos das mulheres no século XXI. Horizonte – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, n. 39, p. 1534-1558, 5 out. 2015. Acesse aqui.
ROMANO, Giovanna. Mulheres e negros compõem maioria de evangélicos e católicos. Veja, 13 janeiro 2020. Acesse aqui.
ROSADO, Maria José. Feminismo, gênero e religião – os desafios de um encontro possível. Estudos de Religião, v. 31, n. 2, p. 65-76, maio-ago 2017. Acesse aqui.
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Feminismos e religião em desafios de um encontro promissor. Artigo de Letícia Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU