06 Março 2009
Há algumas semanas, a teologia sofreu uma grande perda – uma perda “indecente”, utilizando a própria chave de leitura de Marcella Althaus-Reid, falecida aos 57 anos. Nascida em Rosário, na Argentina, Marcella havia sido a primeira mulher a ter o cargo de professora na Universidade de Edimburgo, capital da Escócia, em seus 160 anos de história, e a única professora mulher em uma universidade escocesa na época.
Em 2000, publicou uma obra revolucionária, intitulada "Teologia Indecente", sem tradução no Brasil, que causou frisson tanto dentro quanto fora dos ambientes teológicos e acadêmicos – e principalmente eclesiásticos. Para ela, decente era o senso comum, aquilo que a ideologia dominante considera como normal. Revelar essas ideologias e promover uma ruptura com o senso comum é totalmente indecente, defendia. Como ela mesmo explicou em diversas ocasiões, se decente é aquilo que as ditaduras definem como tal – sejam elas políticas, como a que sofreu na Argentina, ou religiosas –, então ela preferia ser o oposto: ser indecente “graças a Deus”, como dizia.
Deus marginal, Deus queer (no inglês, esquisito, estranho, cujo uso foi aceito como nomenclatura de gays, lésbicas, transgêneros, dentre outras denominações), Bi-Cristo ou Cristo bissexual são apenas os primeiros conceitos indecentes pensados por Marcella. Mas sua teologia não se resume a isso. Sua crítica à Teologia da Libertação e a todas as estruturas “decentes” de pensamento foram uma contribuição valiosa não apenas para a teologia, mas também para todas as áreas do pensamento no que se refere à compreensão do diferente.
Para o teólogo argentino Ivan Petrella, pode-se dizer, sem exageros, que existem duas Teologias da Libertação: uma pré e outra pós-Marcella Althaus-Reid. E talvez isso já resume muito bem a importância de Marcella e do grandioso legado que ela deixa para as próximas gerações de teólogos, indecentes ou não. Amigo de Marcella e seu colega em algumas obras teológicas, Petrella conversou por telefone com IHU On-Line e afirmou que Marcella, a “estrela de rock da teologia”, aproveitou os fundamentos da Teologia da Libertação, juntamente com as Teologias Queer e Feminista, para provocar uma continuação e uma ruptura por meio de “uma análise muito mais profunda” das possibilidades de orientações sexuais.
Ivan Petrella é sociólogo e teólogo da libertação. Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade de Miami, na Flórida, e diretor co-executivo da série de livros "Reclaiming Liberation Theology", publicados pela editora inglesa SCN Press. Formado pela Universidade de Georgetown, fez seu mestrado e doutorado na Universidade de Harvard. É especialista em teologia e filosofia modernas, teoria social e a relação entre religião e política. É autor de "The Future of Liberation Theology: an Argument and Manifesto" [O futuro da Teologia da Libertação: debate e manifesto], "Beyond Liberation Theology: a Polemic" [Além da Teologia da Libertação: uma polêmica], e, juntamente com Marcella, é editor de "Theology for Another Possible World" ´[Teologia para outro mundo possível].
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual foi o legado teológico mais importante que Marcella Althaus-Reid nos deixou?
Ivan Petrella – O legado teológico mais importante de Marcella é a incorporação de novos paradigmas analíticos para a Teologia da Libertação. Marcella é, realmente, a primeira teóloga da libertação latino-americana a incorporar os elementos não só da Teologia Feminista, que já existia, mas também o tema do que em inglês se chamaria de "queer theory" e teorias de bissexualidade. Então, Marcella, com isso, basicamente faz com que a Teologia da Libertação possa abranger campos completamente novos que antes nem sequer haviam sido não apenas tocados, mas também considerados como campos da Teologia da Libertação.
"Nos EUA, ela era uma espécie de estrela de rock da teologia, com um impacto que foi muito além dos ambientes acadêmicos estritos"
IHU On-Line – Quais são as idéias chave do pensamento teológico de Marcella?
Ivan Petrella – Para mim, a idéia chave de Marcella é como uma espécie de refinamento ou de pensar de maneira mais precisa todo o tema da corporalidade dentro da Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação clássica, digamos, pré-Marcella, tem todo esse tema da pobreza, que obviamente está ligado ao corpo do pobre, que passa fome, que sofre de sede, que não tem um teto etc. Marcella agrega a isso algo que os teólogos da libertação não haviam pensado: o tema da sexualidade. Ou seja, é uma análise da corporalidade, mas muito mais específica do que se encontrava na Teologia da Libertação. O corpo que sofre fome e sede também é um corpo que tem certa orientação sexual, que a Teologia da Libertação não havia considerado, por causa dos tabus que, obviamente, ainda existem na Igreja Católica nas Igrejas cristãs, em muitos casos.
IHU On-Line – Em resumo, qual é o Deus de Marcella?
Ivan Petrella – Em minha opinião, Marcella não nos entrega uma teologia sistemática. E, no fundo, não faz isso porque não o quer fazer. Se Marcella quisesse ter nos entregado uma teologia sistemática, teria feito. Mas, no fundo, o projeto da teologia sistemática, uma concepção de Deus etc. passa a ser a teologia decente – e ela disse isso em vários ensaios. É parte do processo de fazer a ruptura da Teologia da Libertação da tradição teológica ocidental, européia. Quando se começa a fazer as teologias sistemáticas é quando elas começam a se tornar mais européias. Deixam de ser indecentes e passam ser teologias decentes. E em uma das notas de rodapé do livro sobre a Teologia Indecente ["Indecent Theology", lançado no ano 2000 no Reino Unido, sem tradução no Brasil], ela dá o exemplo do texto, que está em latim, "Mysterium Liberationis", escrito pelos “grandes padres da Teologia da Libertação”, digamos, que escrevem textos sistemáticos sobre alguns conceitos chaves, Deus, Reino de Deus etc. Ela ressalta o fato de ser uma obra de sistematização da teologia da libertação, o que a torna, no fundo, decente, em vez de ser esse processo de ruptura com as tradições européias da teologia.
"Sua teologia é tão criativa porque combina as teologias latino-americana, feminista e queer de tal maneira que faz com que cada uma delas tenha que pensar mais além de suas capacidades"
IHU On-Line – Como a "Teologia Indecente" de Marcella se expressou na Teologia em geral? Em quais linhas específicas essa perspectiva foi mais aceita e estudada?
Ivan Petrella – Dou um exemplo pessoal. Nos Estados Unidos, o congresso de religião e teologia mais importante, a chamada American Academy of Religion [Academia Norte-Americana das Religiões], que é realizado todos os anos em uma cidade diferente, tem um público de mais de 10 mil pessoas, com a presença de todos os professores das universidades que tem programas de graduação e pós-graduação em teologia ou religiões dos EUA, uma quantidade enorme de alunos de doutorado. É um evento importantíssimo. Nos painéis em que Marcella falava, nunca havia menos do que 300, 400 pessoas, que em geral vão ver Marcella. Lá, ela era uma espécie de estrela de rock da teologia, com um impacto que foi muito além dos ambientes acadêmicos estritos. Ela era uma teóloga lida, comentada e citada por acadêmicos, mas lida também em nível de base, por movimentos nos EUA e grupos religiosos bissexuais, de lésbicas, ou queer etc. Era uma figura que transcendeu a academia em muito.
Já o Fórum [de Teologia e Libertação] de Belém pecou muito em relação ao tema da sexualidade desde a perspectiva de Marcella, o enfoque da ambiguidade de gênero. Porque, dentro da teologia da libertação latino-americana – pode ser que eu esteja errado –, Marcella é quase a única teóloga que tem o domínio para usar de maneira criativa toda uma lista de teóricos que foram ignorados, por exemplo Judith Butler, que é uma figura importantíssima nos EUA e na Europa enquanto teoria política e teoria de gênero. Na América Latina, em âmbitos teológicos, ele quase não é usado.
IHU On-Line – A proposta de Marcella é muito polêmica. Quais são os maiores desafios que ela buscou responder? Qual contexto é necessário ter para compreender sua posição?
Ivan Petrella – Há dois contextos para mim, um dos quais – creio que Marcella diria – é ver a realidade como ela é. Ou seja, os pobres, dos quais a Teologia da Libertação trata, são pobres com corpos sexuais, e esses corpos sexuais têm orientações diferentes. E essa é uma temática que a Teologia da Libertação não pode deixar de tratar e não pode seguir ignorando. Há uma tentativa, em Marcella, de aprofundar a análise do corpo, que foi fundamental para a Teologia da Libertação, porque, uma vez que se enfoca o problema da pobreza, o problema do cuidado do corpo é fundamental.
or outro lado, há um contexto – na verdade é um marco teórico que Marcella usa – que é pouco estudado na América Latina. Há um grupo que estudou todo o tema das identidades e de como se constrói a sexualidade como uma categoria conceitual e cultural, não a vendo como algo necessariamente dado pela genética, mas sim criado. As Igrejas e as religiões criam e ao mesmo tempo marginalizam pessoas por sua orientação sexual.
"A Teologia da Libertação, depois de Marcella, não pode seguir sendo a mesma. Há uma continuação óbvia, mas, ao mesmo tempo, chega um momento em que o caminho muda"
IHU On-Line – Qual é a relação do pensamento de Marcella com a Teologia da Libertação, a Teologia Feminista e a Teologia Queer?
Ivan Petrella – Com relação à Teologia da Libertação, o que Marcella faz é aprofundar o aspecto corporal da teologia, de tal maneira que chegamos quase a uma ruptura. Ou seja, a Teologia da Libertação, depois de Marcella, não pode seguir sendo a mesma teologia que antes de Marcella. Se alguém segue o caminho de Marcella – e para mim é o caminho adequado –, toma o que pessoas como Gustavo Gutiérrez, [Jon] Sobrino, [Juan Luis] Segundo etc. escreveram e aprofunda isso de tal maneira que já se torna algo que é muito diferente do que havia antes. É quase paradoxal. Há uma continuação óbvia, mas, ao mesmo tempo, chega um momento em que o caminho muda.
Quanto à Teologia Feminista ou Queer, há uma combinação sumamente original que ninguém havia feito antes – e para mim é por isso que ela é uma estrela de rock nos EUA. A Teologia Feminista nos EUA, muitas vezes e quase sempre, não era, no fundo, uma teologia da libertação. Não enfocava o tema da orientação sexual, porque o contraponto era o homem – se supunha, quase, que a mulher era heterossexual. E aí há uma diferença marcante com Marcella, uma análise muito mais profunda do que são as possibilidades de orientações sexuais. Já a Teologia Queer, por um lado, rompe com a teologia heterossexual masculina e feminina, porque rompe também com o feminismo quando este não reconhece as distintas orientações sexuais. E aqui temos Marcella combinando isso com a Teologia da Libertação, com um enfoque também na pobreza e nas práticas populares dos grupos mais pobres, que, em muitos casos, não estão presentes, por exemplo, na Teologia Queer européia ou norte-americana, que tendem a ser batalhas culturais enquanto identidade, emancipação sexual, casamento gay. São debates claramente importantes, mas não são debates que estão marcados pelo tema da pobreza, algo que Marcella nunca esqueceu. No fundo, sua teologia é tão criativa porque combina esses três tipos de teologia – latino-americana, feminista e queer – de tal maneira que faz com que cada uma delas tenha que pensar mais além de suas capacidades, de maneira individual.
Em Marcella, há todo um aprofundamento da análise de gênero e de toda a análise da orientação sexual. A teologia de Marcella não esquece – e muitas vezes isso acontece nas teologias européias e norte-americanas, porque obviamente são produzidas em um contexto muito diferente do que o latino-americano – todo o tema da pobreza.
"Os pobres têm corpos sexuais, e esses corpos sexuais têm orientações diferentes. Essa é uma temática que a Teologia da Libertação não pode seguir ignorando"
Marcella tinha um grande apreço e uma grande dívida com a Teologia da Libertação mais clássica, digamos. Por outro lado, queria tentar liderar um processo de renovação da Teologia da Libertação. Diz-se com frequência que a Teologia da Libertação está em crise, que está em um impasse, que não sabe para onde ir. E Marcella queria renovar os marcos conceituais dentro dos quais se pensava a Teologia da Libertação. Um dos projetos com os quais ela contribuiu muito – e o fizemos juntos – foi uma série de livros, que se chama em inglês "Reclaiming Liberation Theology", com a editora SCM Press, de Londres, que trata dessa temática de pensar a Teologia da Libertação dentro de um contexto de globalização, em geral de democracias, mesmo que formais, na América Latina e o que significa ser teólogo da libertação em um contexto muito diferente dos anos 70.
(Reportagem de Moisés Sbardelotto)
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"Depois de Marcella Althaus-Reid, a Teologia da Libertação não pode continuar sendo a mesma". Entrevista especial com Ivan Petrella - Instituto Humanitas Unisinos - IHU