27 Novembro 2024
O gênero como instrumento de libertação, mas também como um fantasma que catalisa os medos da contemporaneidade. As muitas formas de violência que continuam a afetar a vida das pessoas LGBTQIA+.
O genocídio em Gaza e o pinkwashing de Israel. Essas são as questões em pauta nessa longa entrevista com Judith Butler, filósofa, feminista, teórica do queer e do gênero.
A entrevista é de Giansandro Merli, publicada por il manifesto, 23-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O “gênero” como categoria foi, e ainda é, um instrumento de libertação. No entanto, em seu último livro, Quem tem medo de gênero?, você escreve que também se tornou “um fantasma com poderes destrutivos, capaz de catalisar e intensificar múltiplas formas de pânico social”. Como isso pôde acontecer?
O gênero teve muitas vidas. É um termo desenvolvido por sexólogos em meados do século XX para enfatizar a dificuldade de atribuir um sexo a bebês com características sexuais mistas. No início, não era uma forma de identidade, masculina ou feminina. Era uma maneira de lidar com o que é difícil e não é óbvio na atribuição do sexo. Se o sexo fosse dado pela natureza, não haveria necessidade de reflexão adicional sobre como as instituições legais e médicas o atribuem. Mas como explicar que isso acontece de forma diferente em culturas diferentes? Tais perguntas são deixadas de lado por aqueles que querem viver em um mundo mais simples, sem estudar a complexidade ou entender a miríade de questões que surgiram sobre sexo, gênero, sexualidade e corpo. O fato de que o sexo atribuído possa ser mudado ou que gays e lésbicas possam se tornar pais desafiou algumas noções conservadoras profundamente arraigadas sobre o que é e o que deveria ser o sexo. Os críticos não apenas se opõem às tendências contemporâneas que nos permitem ter uma compreensão mais ampla do gênero, mas buscam retornar a um ordenamento patriarcal do mundo na qual feministas, queers e trans, bem como migrantes, desaparecerão de cena.
Esta ordem “Deus, pátria, família” realmente existia antes do gênero?
O gênero é uma forma de analisar os campos sociais de poder, incluindo as modalidades de desigualdade e violência, mas também os movimentos de emancipação. Só recentemente foi confundido com “identidade de gênero”. Quando se diz que o “gênero” tem um enorme poder destrutivo, é imaginado como uma “ideologia”, como dizem seus críticos, muito poderosa. De certa forma, é responsabilizado pela instabilidade social e pelas ansiedades resultantes da pobreza, desemprego, dívidas, desastres climáticos e guerras. Em vez de analisar como a precariedade amplia as ansiedades cotidianas dos trabalhadores, por exemplo, os polemistas antigênero argumentam que o gênero desafiou os ensinamentos da igreja e, portanto, a moralidade da família. E que a família heteronormativa é a base da nação. Assim, Meloni compartilha a mesma opinião de Orbán. O nacionalismo exige o patrulhamento do gênero produzindo uma ampla gama de pessoas marginalizadas, privadas de um senso de igual pertencimento. Quando a nação quer se purificar, o mesmo discurso de ódio é dirigido aos migrantes.
Qual a relação entre o “fantasma do gênero” com a violência - física, psicológica, médica - contra as pessoas LGBTQIA+?
As campanhas contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer e intersexuais são, antes de tudo, uma tentativa de anular seus progressos legais e legislativos, novos direitos e liberdades garantidos por muitos regimes jurídicos. Aqueles que se opõem querem reverter esses direitos e deixar as minorias sexuais indefesas na sociedade. Contra quais poderes estão indefesas? Muitos: violência nas ruas, assédio no trabalho, discriminação na moradia, patologização médica e psiquiátrica, perda dos direitos parentais, cancelamento do status jurídico de sexo, falta de acesso a cuidados de saúde que respeitem o gênero, ostracismo social.
Trump e Musk venceram a última eleição nos EUA. O “medo de gênero” desempenhou algum papel nas urnas?
Biden e Harris não aprovam a discriminação das pessoas trans. A campanha de Trump, no entanto, instrumentalizou isso alegando que eles queriam planejar operações de mudança de sexo em migrantes. Trump conseguiu combinar dois medos sociais: cirurgia trans e afluxo de migrantes. Assim, as opiniões de Harris sobre os direitos das minorias sexuais e de gênero e a migração foram transfiguradas em um fantasma assustador. Os eleitores receberam ligações eletrônicas pré-gravadas que defendiam essas falsidades.
Pessoas que lutam entre si por motivos geopolíticos, como Meloni e Putin, ou que defendem uma visão de mundo diferente sobre muitas questões, como o Papa Francisco, compartilham a luta contra a “ideologia do gênero”. Por quê?
Pode-se dizer que as pessoas se opõem ao “gênero” porque é totalitário. Mas, às vezes, as mesmas pessoas afirmam que o “gênero” é hipercapitalista. Outros ainda imaginam que seja como um vírus invasivo e mortal. O papa o comparou à “Juventude hitlerista”, ampliando uma associação nazista. Como muitas pessoas não fizeram cursos de estudos de gênero nem leram livros acessíveis, por exemplo, sobre a história e a teoria do gênero, os polemistas de direita exploram sua ignorância e medo para construir um argumento de que o “gênero” ameaça causar a destruição de todas as instituições mais preciosas da sociedade. Essa hipérbole não só serve para desviar a atenção das causas profundas da instabilidade social, mas também falsifica o gênero como uma ideia ou uma ideologia estranha e perigosa. Na realidade, a maioria das pessoas envolvidas no trabalho de gênero busca fortalecer os ideais democráticos na sociedade, as formas não violentas de transformação social, as propostas de igualdade, o apoio de infraestruturas para a reprodução da vida, a assistência médica para todos, a igualdade, a justiça e a liberdade. Como investigação acadêmica, os estudos de gênero buscam entender as dimensões psicológicas do devir de gênero, o problema da desigualdade de gênero entendido como parte de uma organização machista da sociedade, os ideais de liberdade para todas as pessoas oprimidas.
Os militares israelenses agitaram bandeiras arco-íris sobre as ruínas de Gaza. As fotos foram divulgadas por contas do Estado judeu, apesar de o governo de Tel Aviv ser de extrema direita, apoiado por fundamentalistas religiosos e sustentado por forças antigênero em todo o mundo. Um curto-circuito?
Trata-se de um brutal pinkwashing, usando bandeiras e banners LGBTQIA+ em apoio a uma guerra terrível contra os palestinos. A ideia é que Israel tem um bom equilíbrio sobre as questões LGBT e que os palestinos são contra esses direitos. Essa é uma simplificação grosseira: os haredi em Israel são conhecidos por sua violência antigays, enquanto o ativismo queer palestino, contra a homofobia e o sionismo, é reconhecido no mundo queer. Nem todos os gays e lésbicas se envolvem nos atos hipervisíveis de marcha e celebração que vemos em Tel Aviv, eles ainda assim encontram maneiras de se encontrar, se aliar e manter contato com suas comunidades sob a colonização e em um período em que todos os palestinos vivem com medo da morte. Os queers e os palestinos - inclusive os queers palestinos - conhecem tanto o terror da violência quanto o desejo de uma vida vivível. É essa solidariedade que precisamos aprender a conhecer. Por que os movimentos e coletivos LGBTQIA+ hasteiam a bandeira da Palestina, sendo que o Hamas reprimiu severamente as identidades sexuais divergentes, e não a de Israel, que se apresenta como o bastião dos direitos e das liberdades ocidentais no Oriente Médio? Apoiar a Palestina não é o mesmo que apoiar o Hamas. Há muitos partidos políticos e organizações cívicas na Palestina, inclusive o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que são diferentes do Hamas. Seus objetivos são diferentes, mas tendem a incluir a demanda por autodeterminação política: um direito fundamental que não foi concedido aos palestinos devido à lei israelense, apoiada por seus militares. Outra meta é interromper e inverter a aquisição ilegal de terras por Israel ou descolonizar as instituições e os assentamentos. É preciso pensar além e contra os termos atuais dessa guerra. O que significaria imaginar e começar a formular no campo, um ou dois Estados que garantam direitos políticos iguais a todos os habitantes da Terra? Similar plano, considerado inviável por muitos, levaria tanto à descolonização quanto à convivência. Isso também deveríamos defender para o povo palestino.
Há 13 meses, vemos a destruição de Gaza, os corpos mutilados, a desolação dos sobreviventes. Será que podemos nos acostumar até a um genocídio em streaming ou haverá efeitos sociais de longo prazo?
Os piores efeitos sociais serão para as crianças de Gaza que conseguirão sobreviver. Com que trauma enorme farão isso, tendo visto seus pais, irmãos e amigos serem brutalmente assassinados? Aposto que haverá serviços de atendimento a traumas para os habitantes de Gaza nos próximos anos. Para aqueles de nós que assistem a esse genocídio em tempo real, devemos nos perguntar se veremos e esqueceremos rapidamente as imagens ou se cada uma delas nos imprimirá a responsabilidade de falar contra o genocídio, defender o direito à vida do povo palestino e exigir o fim das ajudas militar dos EUA e do Ocidente. Cada imagem merece uma legenda e deveríamos saber e falar os nomes daqueles que foram mortos. Deveríamos enquadrar as fotografias com a análise do que está acontecendo. Sem as imagens ou os sons, não sabemos com que realidade estamos nos deparando. Mas sem a análise política e a estrutura ética, não seremos capazes de rastrear o fim da violência de Estado e a emancipação dos palestinos como vidas de igual valor, com todos os direitos e desejos de existir em uma sociedade justa, que eles mesmos contribuirão a construir.
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Os usos e abusos do “gênero”. Entrevista com Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU