03 Agosto 2024
A intelectual pós-estruturalista, uma das vozes mais importantes no campo dos estudos de gênero, fala sobre o nosso tempo nesta entrevista exclusiva: "Espero ansiosamente pelo dia em que será fácil ter conversas abertas sobre temas difíceis, até mesmo assustadores".
A reportagem é de Sofia Mattioli, publicada por Domani, 17-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Pintar os migrantes que desembarcam no litoral europeu como uma ameaça à família, à nação e ao futuro do continente é uma representação errada. Por trás de alguns dos fantasmas que alimentam os fascismos de nossa época estão os medos".
Judith Butler, no alma mater studiorum, em Bolonha, algum tempo atrás fez um apelo para que a linguagem fosse uma moldura de significado político e um instrumento para reconhecer e se opor às correntes autoabsolutivas de matriz reacionárias e aos extremismos de direita que estão se alastrando na Europa e ameaçam a liberdade dos corpos (das mulheres e das pessoas não binárias em primeiro lugar) corroendo direitos reprodutivos e de autodeterminação.
Como criar formas não violentas de resistência? Na origem do corpo coletivo existe uma abstração, uma hipótese de totalidade. É nessa promessa de aliança e coesão que se gera o pensamento de Judith Butler, condensado em seu livro Corpos em aliança e a política das ruas.
Uma das vozes que trouxeram contribuições fundamentais nos campos do pensamento feminista e pós-estruturalista, da teoria queer, da filosofia política e da ética, entre as mais relevantes de nosso tempo, Butler, professora na Graduate School, e que já lecionou no Departamento de Literatura Comparada e no Programa de Teoria Crítica da Universidade da Califórnia (Berkeley), vem investigando há décadas a relação entre indivíduo/coletividade na proteção dos direitos humanos.
Em seu mais recente livro, Who Is Afraid of Gender? Butler questiona como os estudos de gênero foram instrumentalizados pela extrema-direita para políticas que colocam em discussão a justiça reprodutiva e privam as pessoas transgênero de seu direito de viver sem o medo de violência. Ela analisa a instrumentalização dos estudos de gênero para se perguntar quais facções ou partidos políticos os transfiguraram, fizeram deles um baluarte, um espectro contra o qual lançar a raiva e em torno do qual construir ad hoc manifestos eleitorais.
Como os retrocessos na questão dos direitos reprodutivos (acesso ao aborto seguro) e da autodeterminação dos corpos perpetrados pela extrema-direita são o resultado de uma forma de controle político?
Atualmente, a extrema-direita tem o poder do Estado do seu lado, o que significa que tem o poder de cortar o financiamento destinados a políticas que combatem a discriminação contra mulheres, gays, lésbicas e pessoas trans. A extrema-direita tem o poder de corroer direitos fundamentais, como aquele à assistência médica e ao reconhecimento legal das pessoas trans. Essa erosão é, em minha opinião, uma situação muito perigosa. Uma vez anulados os direitos de uma comunidade, abre-se o precedente para a negação dos direitos de outras. Basta pensar na situação preocupante dos migrantes na Europa, cujos direitos internacionais são anulados em demasia por políticas locais inerentes a cada estado.
O rito performativo coletivo de protesto não violento é uma resposta para as crises políticas que estamos vivendo atualmente? Que perguntas precisam ser feitas para radicar-se nos ambientes e sistemas de interdependência?
Precisamos ter certeza de que nossos métodos refletem nossos princípios e prefiguram o tipo de mundo que queremos construir juntos.
Qual é o papel do corpo nas manifestações de rua como uma forma de contestação e oposição não violenta ao poder?
As manifestações em que os cidadãos se reúnem para expressar um ponto de vista compartilhado implicam aparecer em público juntos. Vemos os corpos individuais, mas também um conjunto de corpos, o espaço público é ocupado por um grupo e isso já é um ato político, uma expressão de consenso coletivo. Em outras palavras, a pessoa expõe seu corpo ao público, mas também aos outros membros do corpo coletivo, o que significa que nos tornamos vulneráveis no ato de constituir um poder compartilhado. Como vimos nas manifestações estudantis, isso também implica expor-se ao poder, inclusive à violência da polícia. O corpo está em jogo, em risco. O que acontece com um corpo também acontece com um outro. A vulnerabilidade, a palavra e o poder são compartilhados. A filósofa Adriana Cavarero reitera isso em seu livro Surging Democracy: Notes on Hannah Arendt's Political Thought.
"Não existe uma ideologia de gênero propriamente dita. É o fantoche usado pelos reacionários para atacar os feminismos, os movimentos LGBTQ+ e os direitos de liberdade e igualdade." Citando um seu recente livro quem os teme? Quem instrumentaliza os estudos de gênero? Em sua opinião, por quê?
É verdade que não existe "ideologia de gênero". É uma expressão criada e usada por grupos de direita para condensar uma ampla gama de questões que, na realidade, são diferentes e nem sempre correlacionadas. Dependendo do ponto de vista, a expressão "ideologia de gênero" é usada para rotular as vozes das feministas e para etiquetar as pessoas não binárias, inclusive as pessoas transgêneros. E também para rotular as políticas que pedem igualdade econômica para as mulheres, educação sexual, genitorialidade de solteiros, genitorialidade de gays e lésbicas, estudos de gênero nas universidades, orgulho gay, direitos das pessoas transgêneros à autodeterminação e à assistência em saúde, por exemplo. Tornam-se populares afirmações errôneas segundo às quais a "ideologia de gênero" é terrivelmente perigosa e que tirará às pessoas o status de mãe ou pai, mas ninguém defende isso. Se uma pessoa trans pode obter o reconhecimento legal de quem é, isso não tira os direitos de ninguém mais. A ideologia de gênero é um exemplo de histeria da direita e não tem nenhuma relação com o que existe na realidade.
Sua pesquisa também abordou os temas da censura, da intimidação e da incitação à violência contra as minorias. Qual é a cara da censura hoje?
Existem pelo menos duas formas de censura: a explícita e a implícita. Pierre Bourdieu identificou essa distinção anos atrás e ainda me parece muito útil. Há pontos de vista, nos dizem, que não temos permissão de expressar em público, mas há outros que, se expressos, poderiam comportar processos de marginalização e estigmatização. O primeiro exemplo pode provocar uma censura legal ou institucional, mas o segundo é mais ambíguo. Ambos instilam o medo coletivo. É possível discordar e condenar sem censura. Uma vez fortalecidos os poderes de censura do Estado, não temos como saber se nossa própria palavra poderia um dia ser seu alvo. É por isso que a censura muitas vezes me preocupa.
O que pensa dos protestos nas universidades e das passeatas em solidariedade ao povo palestino?
Penso que são justos e necessários. "Genocídio" é um termo que pressupõe a destruição de vidas e de infraestruturas da vida. Os especialistas em direito internacional que insistem no fato que Israel esteja cometendo um genocídio contra os palestinos em Gaza apresentaram o caso muito bem. A acusação deve ser levada a sério.
Qual é o papel das universidades na formação da consciência coletiva e da liberdade individual?
Na minha opinião, as universidades deveriam apoiar um debate aberto, defender o direito dos estudantes e do pessoal acadêmico de se reunir e discutir. Acredito que o valor mais importante que as universidades deveriam ter é o da liberdade de expressão e associação. Os acadêmicos também deveriam estar dispostos a se manter constantemente informados sobre a história da Palestina e abertos a novas perspectivas sobre o assunto.
E a rede e os ambientes on-line? Que papel desempenham? A Internet pode ser um lugar mais democrático, uma praça?
É difícil conceber a Internet como um espaço de liberdade, considerando a forma como funcionam os algoritmos, os sistemas de vigilância global, a coleta de dados e os episódios de cyberbullying. Talvez precisemos transformar a Internet em um espaço de liberdade antes de tentar responder essa pergunta. É óbvio que podemos obter recursos e informações valiosos da rede, mas é preocupante quando é identificada como a única esfera pública que temos. Precisamos de muitas outras.
Citando o título de um artigo a seu respeito publicado no New Yorker, na sua opinião quem tem medo de Judith Butler?
No meu último livro Who's Afraid of Gender? tento manter um tom pacato na formulação para que todos possam entender. As pessoas são livres para discordar de mim e têm discordado. Tenho apenas pontos de vista a oferecer e não tento impô-los a ninguém. Espero sinceramente que chegue o dia em que seja fácil ter conversas abertas sobre temas difíceis, até mesmo assustadores.
Quando será? Nesse meio tempo, como podemos lutar para que as alternativas ao binarismo de gênero sejam reconhecidas?
Podemos incluir o reconhecimento da identidade de gênero e orientações sexuais na educação escolar, na assistência em saúde e no sistema jurídico. Para que isso aconteça com uma voz forte e coerente, o debate deve ocorrer com um espírito empenhado e um olhar aberto.
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Quem tem medo do gênero? Entrevista com Judith Butler: "A direita no poder está corroendo nossos direitos" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU