29 Novembro 2024
A filósofa e feminista italiana Adriana Cavarero (Bra, 1947) comete um roubo de enredo: sequestra certas figuras femininas que aparecem nos textos de Platão (pelas quais o autor não sente uma simpatia especial), e as ressignifica, dando-lhes uma visão, um significado diferente, tornando-as soberanas de si mesmas, com profundidade (e altura) singulares. O resultado, A pesar de Platón (Galaxia Gutenberg).
A entrevista é de Ester Peñas, publicada por Ctxt, 26-11-2024.
Quando é apropriado contrariar o mandamento divino e roubar, saquear, saquear, roubar, descontextualizar?
É conveniente quando se deseja reinterpretar o texto filosófico a partir de uma perspectiva inesperada, como a do sujeito feminino que a tradição do texto patriarcal expulsou, confinando as mulheres à esfera doméstica e retirando-lhes a voz. Aristóteles diz, por exemplo, que as mulheres falam, mas as suas palavras não têm autoridade. Basicamente, elas conversam.
Mais do que com Platão, não deveríamos confrontar todos aqueles que continuam a manter a desigualdade que encontramos desde o início na maioria dos textos filosóficos?
Claro, Platão é apenas o pai da filosofia e todos os seus filhos, ao longo dos séculos, coletando seu legado, aderem à abordagem misógina de filosofar. Nos meus livros roubo todos os seus textos, é um prazer.
O que acontece com todas aquelas mulheres que se identificam com Platão, na perspectiva que você combate, com Circe, com Penélope, vista do ponto de vista canônico?
É natural que muitas mulheres eruditas continuem a seguir a tradição em que foram educadas. Nas últimas décadas, porém, os Estudos sobre a Mulher e os Estudos de Gênero desenvolveram-se numa grande parte do mundo acadêmico, o que torna mais fácil estar atento à alegada universalidade e neutralidade do ponto de vista canônico, que é na verdade um ponto de vista masculino.
O lugar da mulher a que o homem relegou foi o oikos, a casa e os seus habitantes, o mundo da escuta, dos afetos. Será mais a impossibilidade de abandoná-la do que o próprio lugar atribuído que pesou na desigualdade?
É difícil escapar a todos os papéis estereotipados que a tradição atribuiu às mulheres e que continuam a pesar na sua vida real. Porém, desde Mary Wollstonecraft e toda a história do feminismo até hoje, a crítica à desigualdade e a consciência da liberdade feminina deram passos gigantescos. Pelo menos no mundo ocidental, há uma grande diferença entre a prisão doméstica em que a minha avó viveu e o mundo das mulheres livres e emancipadas em que as mulheres vivem hoje. O feminismo em que me reconheço tem o objetivo preciso de ajudar as mulheres a pensarem-se fora dos papéis tradicionais, mesmo fora de um modelo de igualdade que corre o risco de assimilá-las aos homens e aos valores masculinos, em suma, ajudá-las a pensar livre na sua diferença.
Penso no capítulo reservado a Penélope: o tempo das mulheres é mais introspectivo que o dos homens?
A época de Penélope não é, como a de Ulisses, uma época de aventura e de guerra. Acredito que a especificidade feminina não reside tanto no exercício da introspecção mas numa prática de relações, ou seja, no contraste da cultura masculina do individualismo – do sujeito soberano, autónomo, autossuficiente – com um modelo relacional feito. de cuidados e interdependências. Obviamente, corre-se o risco de cair no estereótipo da mulher altruísta que se sacrifica pelos outros. Mas a personagem Penélope mostra como no centro da cena não está a obediência e o sacrifício, mas sim uma estratégia de cumplicidade com as servas, na artimanha de fazer e desfazer a rede, que mantém em xeque o trono de Ítaca há décadas.
Será o riso do servo trácio (aquele que ri do conhecimento dos homens) o riso com que a mulher de hoje contempla como foi relegada por eles?
O riso hoje é dirigido sobretudo aos homens que continuam a acreditar-se superiores às mulheres por direito natural. Homens que não percebem que o mundo mudou, que acreditam continuar a viver numa sociedade patriarcal firme e indiscutível e que, por isso, parecem ridículos. Portanto, em certo sentido, a empregada também ri dos papéis femininos estereotipados que vivem na mente de certos homens.
Assim como Diotima, o que uma mulher sabe sobre o amor que um homem não sabe?
As mulheres, ao contrário de muitos homens, sabem que o amor não é a posse de outra pessoa, mas sim uma relação sem posse. Os numerosos feminicídios, que infelizmente marcam os noticiários diários, mostram que para muitos homens o amor consiste na posse: você é minha esposa, você é minha, se você me deixar, eu te mato.
O que podemos aprender com a subjetividade feminina personificada por Deméter?
Deméter incorpora o poder de geração do corpo feminino. A mulher gera, o homem não. É um poder imenso e tremendo, mas não uma obrigação. Na verdade, Deméter, quando sua filha é sequestrada, decide não gerar: e então toda a natureza interrompe o processo de regeneração dos vivos. O poder de gerar e o poder de não gerar, amarrados no mesmo nó, constituem o legado simbólico da figura de Deméter.
Em que momento da história essa subjetividade emancipada começa a se configurar, e não como uma proposta masculina?
A emancipação, ou igualdade, é uma conquista das mulheres. Os homens nunca alargaram espontaneamente o princípio da igualdade às mulheres, foram forçados a fazê-lo. Quando os revolucionários do século XVIII declararam que “todos os homens são iguais”, referiam-se a todos os homens e não a todos os seres humanos. Séculos de sufrágio e de lutas feministas tiveram que passar antes que o princípio da igualdade também fosse aplicado às mulheres. A partir de meados do século XX, com o feminismo, deparamo-nos, por um lado, com uma crítica à igualdade entendida como homologação da mulher ao modelo masculino e, por outro, com a afirmação da liberdade feminina ligada à diferença sexual. Daí a tensão entre igualdade e diferença. Como mulher, quero ter os mesmos direitos que os homens, mas não à custa de me comportar como eles, imitando o seu modelo de comportamento e estilo de vida. Pelo contrário, quero expressar livre e generativamente, a um nível simbólico e prático, a diferença sexual que incorporo. Por outras palavras, cabe às mulheres, e não aos homens, definir o que é a liberdade das mulheres. No fim das contas, a liberdade não é uma coisa, é um processo compartilhado. Homens que queiram dialogar e se questionar durante esse processo são bem-vindos.
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“A alegada universalidade e neutralidade do canônico é um ponto de vista masculino”. Entrevista com Adriana Cavarero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU