08 Junho 2024
A Utopia diz respeito ao bem comum, ao viver juntos em um mundo comum compartilhado no amor.
O artigo é de Olgaria Matos, professora titular de filosofia na Unifesp e do Departamento de filosofia da USP. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp), publicado por A Terra é Redonda, 06-06-2024.
Utopia é uma palavra ambivalente, eu-topos e u-topos, um “bom lugar” e “lugar nenhum”. Por seu irrealismo, a Utopia preserva sua potência de sonho, sua realização a dissolveria no real. Diversamente do espaço e do tempo lineares e contínuos, aqueles da Utopia são disruptivos. Liberados da “corveia de serem úteis”, constituem, assim, uma “ideia reguladora” , contrária à alienação da sociedade, tudo que nela há de sofrimento, de injustiça, de mau, temporal. Por isso, “quanto mais distante, mais bela”. Não obstante, é ela o que põe em movimento o mundo.
O pensamento grego, de que somos herdeiros híbridos, e a República utópica de Platão, evocam a solidariedade, dada nossa condição comum de seres expostos, vulneráveis, mortais. Por isso, ela é, na Utopia, o fundamento da vida pública, o aprimoramento da alma e a origem das Leis. Referindo-se ao mito de Cronos, num tempo de abundância e de paz, Platão explicita por que não é aos homens que se deve confiar o poder, mas às Leis, pois ele tem a pulsão de corromper mesmo as melhores almas, correndo-se o risco da desmedida e da injustiça.
Assim, as leis são, utopicamente, um analogon da perfeição do divino. A lei, antes de se inscrever no campo do direito, pertence ao dos sentimentos morais.
Sua forma paradigmática é a idealização ocidental do feminino, do amor incondicional, da generosidade, dos cuidados, reserva utópica da não-agressividade, da receptividade, da não-violência e da compaixão. Neste sentido, a Utopia diz respeito ao bem comum, ao viver juntos em um mundo comum compartilhado no amor.
Não por acaso, o Banquete de Platão é obra sobre Eros. Nela, Sócrates encontra-se fora do registro dos dualismos esquematizantes que opõem masculino e feminino. Sócrates, filho da parteira Fenareta, toma o lugar de sua mãe, fazendo-se parteiro de ideias, à maneira de Hércules – o herói dos trabalhos desmedidos, vencedor de touros selvagens, de dragões e de outras façanhas – que também ele inverte os papéis da convenção.
Apaixonado por Ofale, Hércules – depõe as armas de guerreiro viril e corajoso, comutando-as pelo tear e bordando o vestido de noiva para ela, ao mesmo tempo em que Ofale se traveste com a pele de leão de Hércules. E, nessa utopia do feminino, Sócrates não toma a palavra, mas a cede à personagem lendária de Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia, preferindo ao logos masculino a palavra mântica feminina, aquela que abriga o racional o extra-recional.
Neste horizonte, também Walter Benjamin apõe a “conversação” feminina ao “diálogo” masculino; os homens em geral, usam as palavras como se fossem armas com as quais constroem um mundo lógico e racional. Seu discurso violenta o feminino, exila o sagrado – cuja guardiã é a mulher : “dois homens, um ao lado do outro, são sempre turbulentos […]. As palavras de mesmo sentido se unem e se afirmam em sua atração secreta, gerando uma ambiguidade sem alma, mal dissimulada em sua dialética”.
Entre mulheres, ao contrário, “o silêncio se ergue, majestoso, sobre o seu falar. A linguagem não confina a alma das mulheres […]: ela gira em volta delas, tocando-as […]. As mulheres que falam são possuídas por uma linguagem delirante […] [o delírio amoroso, o entusiasmo, en-theos, o divino que ingressa no humano], elas se calam, e o que ouvem são palavras não pronunciadas. Elas aproximam seus corpos, ousam se olhar […]. O silêncio e a volúpia – eternamente separados no discurso – se uniram e se identificaram […]. A essência se irradia”. Para Walter Benjamin, as mulheres conservam a grandeza dessa experiência banida do mundo moderno pela linguagem lógica e do pensamento técnico e seus desenvolvimentos bélicos.[1]
Lembre-se ainda que o feminino, vinculado à não-violência, encontra-se em Lisístrata ou a greve do sexo, a recusa das mulheres gregas a procriarem, a fim de interromper a lógica masculina da guerra. Como anotou Massimo Cacciari: “Não é de maneira alguma útil fazer a guerra, afirma Lisístrata – aquela que dissolve os exércitos –, uma vez que, em vez disso, se poderia ser feliz. A paz como tempo último, a idade de ouro em que o lobo viverá com o cordeiro e que só os deuses poderiam nos dar, não seria mais uma ideologia de adivinhos enganadores? Não cabe a nós mesmos fazermos a paz e eliminar os horrores da guerra?”.[2]
O amor, e não a violência, foi ainda eternizado na utopia lírica de Safo de Mitilene: “agora traz-me Anactória à lembrança, a que está ausente,/ Seu adorável caminhar quisera ver/e o brilho luminoso de seu rosto,/a ver em combate dos lídios as carruagens e a armada infantaria”.[3] Eis por que o imaginário associado ao feminino como não violência e amor constitui a utopia de uma sociedade andrógina, na reconciliação entre os masculino e o feminino, tornados antagônicos na longa história da civilização de domínio patriarcal.[4] Neste sentido, “ a mulher é o futuro do homem”: “O futuro do homem é a mulher/Ela é a cor de sua alma/Ela é seu rumor e seu sonido”.[5]
Nessa utopia encontram-se, indissociáveis, logos e mito, masculino e feminino confundidos. Pois se “logos é sofista”, Eros é “tecelão de utopias”.
[1] Cf. também Pierre Clastres e suas análises das tribos ditas primitivas, em que as mulheres também se recusaram a ter filhos: “a mulher é um ser-para-a-vida e o homem guerreiro um ser-para-a-morte” (P. Clastres, “Infortúnio do Guerreiro Selvagem”, in Arqueologia da violência e outros ensaios, tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São Paulo: Brasiliense, 1983, p.236). Na história moderna, lembre-se de Simone Weil, que vai à Espanha em apoio aos republicanos na guerra civil, mas recusa-se a pegar em armas, e Joana d’Arc, que troca a espada pela bandeira da França.
[2] Cacciari, Massimo, 2017, Ocidente sem Utopia, trad. Íris Fátima da Silva Uribe/Luis Uribe Miranda/ Flávio Quintale, p 79, ed Ayiné, B/Veneza, 2017, p. 79.
[3] Antologia dos Poetas gregos e latinos, “Ode a Anactória”, trad.Giuliana Raguso, org Paulo Martins, Edusp., SP, 2010.
[4] Herbert Marcuse. Cf. “Marxisme et Féminisme”, in Actuels, trad Jean-Marie Menière ed Alilée, Paris, 1976.
[5] Cf.Aragon, Le Fou d´Elsa, ed Gallimard, Paris, 2002, p. 196.
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A utopia do feminino. Artigo de Olgaria Matos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU