O que resta do amor neste nosso tempo? Uma conversa entre um ensaísta e um teólogo

Foto: Daisuke Tomiyasu | Flickr CC

30 Março 2022

 

Make love, not war - faça amor, não faça guerra - o slogan pacifista que nos anos 1960 incitava à deserção os estadunidenses envolvidos na desastrosa Guerra do Vietnã teve, 2.500 anos antes, um precedente completamente oposto na forma, mas idêntico nos objetivos: Lisístrata, protagonista da peça homônima de Aristófanes de 411 a.C., para obrigar atenienses e espartanos desgastados por uma guerra que se arrastava há vinte anos a fazer a paz, havia convidado as mulheres gregas a proclamar uma "greve de sexo". Inútil dizer que (pelo menos no "mundo de cabeça para baixo" da comédia grega) a greve foi bem sucedida: provados pela contínua frustração do desejo sexual, no final da comédia os homens haviam se rendido à vontade das mulheres, estipulando uma trégua.

 

Para tentar compreender o tempo em que estamos vivendo e também perceber algumas constantes da reflexão sobre a guerra, sobretudo do ponto de vista feminino, precisamente porque a guerra nunca ou quase nunca tem rosto de uma mulher, pode ser muito útil hoje ler La donna che sconfigge la guerra (A mulher que derrota a guerra, em tradução livre) uma "autobiografia" muito agradável de Lisístrata confiada ao brilhante texto de Simone Beta (Carocci, 2022). Palavras que são eficazes também pela ironia que as sustenta, pelo horizonte que elas sabem nos desvendar apesar (ou justamente por causa) da distância temporal sobre a qual esse texto acampa.

 

Acontece então, por outro lado, que certas palavras nos fazem experimentar a força - que elas emanam - de se tornar realidade. Tem-se falado muito de guerra, demais, e até nem tanto tempo atrás nem sempre a propósito. A palavra guerra dominou o relato interminável da pandemia, tornou-se metáfora que assediou nosso imaginário. Combater, agredir, derrotar, foram verbos até mesmo abusados para fotografar a invasão desse mal que ainda não recua por completo. As palavras são importantes: porque nunca são neutras, tornam-se carne e sangue, cavam trincheiras na realidade. Poder da palavra, de sua capacidade de criar.

 

Assim, o relato da pandemia, que via um vírus desconhecido como seu inimigo, deu lugar ao relato de uma guerra verdadeira, na qual a metáfora não existe mais. A guerra da Rússia contra a Ucrânia está aqui, diante de nós, morte que vive cada dia nos rostos de quem golpeia e é golpeado, nas lágrimas de quem foge e de quem fica, nos cadáveres mutilados. Em Kiev, Mariupol, Odessa...

 

Make love, not war - com certeza - mas o que resta do amor neste cenário de destruição e morte? Ainda há espaço para falar de amor em tempo de guerra? O que hoje é o amor? Que amor é o amor de que Putin falou em 18 de março no estádio Lužniki em Moscou? Para discutir sobre isso, "La Lettura" convocou Antonio Prete, ensaísta e narrador, frequentador de Leopardi e Baudelaire, que acaba de publicar Carte d'amore, título não neutro (Bollati Boringhieri), e Severino Dianich, teólogo e biblista que dedicou sua pesquisa ao papel da Igreja e na Igreja, às relações de comunhão e fraternidade.

 

A conversa com Severino Dianich e Antonio Prete é editada por Donatella Puliga, publicada por La Lettura, 27-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a conversa.

 

Antonio Prete – Sobre o amor só se pode falar por aproximações e por fragmentos. Roland Barthes já relevava isso no título de seus Fragmentos de um discurso amoroso. No livro, eu procuro explorar as figuras do amor: a aparição, a perturbação, o fascínio, o segredo, a confidência, o ciúme, a sedução... Para cada figura, poetas e narradores revelam interiores e reverberações.

Vamos pensar na ternura, nesta linguagem suave da paixão, que acolhe sem ímpeto e sem reservas, na sua relação com a delicadeza.

 

Severino Dianich – Essas observações me lembram o Deus do profeta bíblico, que recrimina os homens: "Eu chamei e ninguém respondeu... Fizeram o que é mal aos meus olhos". A princípio parece prometer a punição, mas logo volta à ternura, ao cuidado materno: “Vocês serão amamentados nos braços dela e acalentados em seus joelhos... Assim como uma mãe consola seu filho, também eu os consolarei” (Isaías 66, 12-13).

 

Donatella Puliga – Precisamente hoje, precisamente neste novo tempo europeu de guerra, não podemos deixar de refletir sobre as formas inclusive linguísticas da relação amor/guerra. Uma relação que se alimenta de analogias e oposições profundas: penso no tema da militia amoris da elegia latina, e em toda a tradição literária que, para falar do vínculo do amor, se vale de um léxico bélico (conquista, prisão, dominação...). No entanto, uma distância sideral se interpõe entre o amor (que tem como sonho salvar o corpo amado do declínio) e o conflito (que deseja a aniquilação do corpo do outro): apesar disso, existe também uma contiguidade lexical desses dois âmbitos. Mas hoje, mais do que nunca, deve ser possível minar essa proximidade.

 

Antonio Prete – Essas oposições e analogias entre amor e guerra são frequentes nos clássicos.

As figuras bélicas dominam o discurso do amor. Mas isso é uma forma de transferir para outros planos, neutralizando-os, os impulsos conflitantes: uma inversão, uma passagem para o encontro.

Da trágica gravidade da guerra à leveza da proximidade amorosa. Do tu inimigo ao tu que é o princípio do autoconhecimento: do hostis (inimigo) ao hospes (aquele que acolhe ou que é acolhido). Afinal, na mesma poesia cavalheiresca aparecem figuras em que o amor é oposto ao furor bélico: Angélica e Medoro, em Orlando furiosos, com seu refúgio afastado das disputas, e assim o amor de Hermínia por Tancredi na Jerusalém libertada.

 

Severino Dianich – Isaías nos ajuda novamente (2,4): "Eles converterão suas espadas em arados, e suas lanças em foices". Nos jardins da sede da ONU em Nova York pode-se admirar o imponente bronze de Evgenij Vucetic: representa um homem que empunha um martelo e aponta para baixo a espada, que, ao tocar o chão, se transforma em uma relha de arado. Causa um estranho efeito saber que foi um presente da União Soviética.

 

Estátua de Evgenij Vucetic. (Foto: Wikimedia Commons)

 

Donatella Puliga – Outro binômio fundamental da reflexão sobre o amor é aquele que o retrata em seu pacto com a morte, um evento que a sociedade contemporânea tentou remover e que a Covid e essa nova guerra nos jogaram de volta na cara.

 

Antonio Prete – Dos clássicos à dramaturgia romântica e para além, o diálogo entre Eros e Thanatos, entre Amor e Morte, é constante. Julieta, Romeu, Werther, Jacopo, Otília e mil outros personagens morrem por amor. E a música, com a ópera, remodula de muitas maneiras as variações do nexo entre amor e morte de muitas maneiras: da Lúcia de Lammermoor de Donizetti à Traviata de Verdi à Tosca de Puccini e assim por diante. Mas mesmo no canto de Leopardi intitulado justamente Amor e Morte podemos ler aquela fascinação irreprimível pela vida que lampeja na subtração da vida.

 

Donatella Puliga – Gostaria de interromper a reflexão sobre a passagem de hostis a hospes.

Hospedar na mente e no coração, claro, mas o acolhimento do outro por ser outro, hoje mais do que nunca, torna-se uma questão urgente. Uma pergunta que tem o rosto das mulheres, das crianças que fogem das cidades e das aldeias da Ucrânia, dos idosos emudecidos de dor; assim como o rosto (removido) das vítimas de muitas outras guerras e de muitas outras migrações, de muitas outras fugas cromaticamente diferentes e hoje menos gritadas, mas ainda chagas vivas no corpo do mundo. Portanto o amor/paixão que se torna amor/com-paixão.

 

Severino Dianich – Mesmo na perspectiva bíblica nos sentimos provocados pelo pedido de hospitalidade. Era uma lei antiga em Israel: “Como um natural entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo” (Levítico 19,34). Nos Evangelhos, Jesus se prefigura como aquele que julgará o mundo segundo o critério do acolhimento, identificando a si mesmo com quem foi acolhido, cuidado, hospedado, atendido... Ser hospedado pelos homens torna-se uma condição para que os homens sejam hospedados por ele, no final dos tempos.

 

 

Antonio Prete – O amor tem muitas formas, todas de alguma forma marcadas pela presença e ausência do outro. Entre elas, a compaixão, entendida como proximidade com a dor do outro: um padecer juntos, como juntos estamos na finitude, no limite. Existem formas puras, encantadoras e belas de amor/compaixão, como aquelas descritas por Dostoievski sobre a relação do príncipe Myškin com as duas garotas Aglaia e Nastàsja. Quanto à hospitalidade, na sua raiz nômade e mediterrânea ela é acolhimento na própria tenda de quem está em caminho.

 

Donatella Puliga – Nesta incessante busca que o amor realiza, desdobra-se o tema do desejo, que a literatura e a arte em geral retratam como propulsor do amor. Podemos nos perguntar se seria possível definir um horizonte que abrigue o desejo do transitório e do efêmero, que coloque o amor no leito da duração?

 

Severino Dianich – No ponto mais alto do discurso bíblico sobre o amor, está a afirmação:

Deus é amor; todo aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1 João 4,16). Portanto, o Amor e o Eterno são a mesma coisa. Palavras capazes de marcar profundamente toda uma existência: quem as assume sabe que pelo Amor poderá até a "dar a sua vida" (Jo 15,13). É o Amor com letra maiúscula, naturalmente, não aquele do impulso de uma emoção passageira.

 

Antonio Prete – Nessa tensão do desejo sempre agitado pela falta de pouso, sempre habitado pela ausência, está a vida, com seu tumulto de paixões e relacionamentos. A poesia e as artes são a linguagem que dá forma, imagem e som a este ser aquém do pouso, à distância das estrelas (de-sidera).

 

Donatella Puliga – Os textos clássicos gregos e romanos falaram do amor de formas irrepetidas para o Ocidente. Penso no grandioso manifesto da reflexão sobre o amor constituído pelo Banquete de Platão, mas também na meditação (de Cícero e não só) sobre a amizade, que parece constituir a dimensão mais purificada e mais livre do amor, o espaço em que é guardada não apenas a vivência, mas também a não-vivência.

 

 

Antonio Prete – Sim, o Banquete e o Cântico dos Cânticos são as duas fontes muito ativas do discurso ocidental sobre o amor. A conexão entre amor e amizade também tem raízes antigas, do epos à lírica. Suas perguntas são muitas. Será que o amor talvez seja a amizade que toma forma? Pode o amor existir se não for acompanhado por uma amizade sempre renovada? A amizade é a experiência de uma fraternidade visível e próxima, a imagem de uma sonhada fraternidade universal?

 

Donatella Puliga – Vários abusos podem ser exercidos sobre as palavras do amor e sobre o próprio amor. Assim aconteceu que o versículo do Evangelho de João "Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos", citado por Dianich, pronunciado por Putin diante da multidão moscovita aplaudindo - pelo menos na aparência - soa como uma manipulação sinistra da mensagem do Evangelho.

 

 

Severino Dianich – O amor alimentado por uma fé religiosa tem em si uma energia tão vital que os homens de poder dificilmente renunciam a apropriar-se dele. Então o rio do amor se desvia para o mito de uma pátria e de uma civilização a cujo deus sacrifica vidas humanas. Também Stalin, no momento da invasão alemã, restabeleceu relações com o patriarca de Moscou. Hoje bastaria citar Trump nos Estados Unidos, Orbán na Europa, sem falar de Modi na Índia ou do renascimento, promovido pelo Partido Comunista Chinês, do confucionismo. Palavras blasfemas as de Putin, é claro: são palavras que vagam dentro da imensa blasfêmia que é a guerra.

 

Antonio Prete – O amor tem uma forma vertical - a mística - e uma horizontal – o ágape, que em Agostinho se torna caritas. O caminho místico – vamos pensar na "noite escura" de São João da Cruz ou nas representações de Cristo pela mística franciscana Ângela de Foligno - é ainda uma experiência corporal, física, de paixão; não abstração dos sentidos. O ágape cristão une o amor que passa entre Deus e o homem com um amor que une os homens: não há um sem o outro. Este é o escândalo do cristianismo: unir os dois amores.

 

 

Severino Dianich – A relação indissolúvel entre o amor de Deus e o amor pelos irmãos está na lógica do Evangelho. "Ninguém jamais viu Deus", está escrito no Prólogo do quarto Evangelho, e a Primeira Epístola de João tem um tom peremptório: “Se alguém diz: 'Eu amo Deus' e odeia seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus a quem não vê” (1João 4,20).

 

Há um primado de proximidade para quem acredita na Encarnação. E há um desafio ainda maior que Jesus lança aos seus discípulos: "Amai os vossos inimigos... Se amais os que vos amam... os pagãos fazem o mesmo?" (Mateus 5,44-48). Não que os cristãos devam brilhar por serem diferentes, mas porque toda a mensagem de Jesus foi um desafio ao mundo, para derrubar seus critérios. Na cruz – daqui a poucas semanas é Páscoa - o mundo o desafiará: "Se você é o Filho de Deus, desça da cruz!" (Mateus 27,40). Aqui Mateus se detém, mas Lucas (23,34) parece vislumbrar a resposta de Jesus em sua extrema oração: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que estão fazendo". Se Jesus tivesse respondido com seu poder ao poder daqueles que o crucificaram, ele teria desmentido toda a sua mensagem. Paulo entendeu bem isso: "Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem" (Romanos 12,21). Utopia mística? No entanto, é daqui que o direito penal moderno derivou a recusa da pena de morte. Tampouco a guerra, mesmo que em legítima defesa, deverá ser exaltada como se fosse um valor, ao invés do último instrumento sombrio para salvar a vida e a liberdade de um povo.

 

 

Antonio Prete – Uma belíssima declinação do ágape de grande força persuasiva mesmo para quem não é crente é o Cântico das Criaturas de Francisco de Assis. Todo o visível convocado a um ato de amor: o vivente entre os viventes. Uma voz que chega como um convite, ou uma súplica extrema, para a nossa época que justamente aquele vivente da natureza deturpou, cancelou, tornou inabitável. Aquele amor criatural cantado por Francisco tem o mesmo respiro do verso que encerra a Comédia de Dante: "O amor que move o sol e as outras estrelas".

 

Donatella Puliga – Talvez neste ponto seja mais simples responder à pergunta inicial, talvez encorajados pelas palavras de Antígona, mais uma vez uma mulher, na tragédia de Sófocles: “Nasci não para partilhar o ódio, mas o amor”. Então, o que resta do amor neste tempo de guerra?

 

 

Severino Dianich – A pietas dos que enterram os mortos, curam os feridos, consolam os que choram, animam os desesperados, acolhem os fugitivos. Não ousaria associar os nomes do amor aos que combatem, senão para torná-los também destinatários da pietas. Sim, por outro lado, àqueles que atuam pela paz, para que a invasão russa da Ucrânia não dure mais. Nestas situações, crentes ou não crentes, é difícil libertar-se da sugestão das palavras de Heidegger: "Agora, só um deus poderá nos salvar!" Para mim, cristão, será o Deus de Amor, que se revelou a mim em Jesus Cristo.

Para qualquer um, também deverá ser um deus: a humanidade, se não tiver a audácia de dar um salto qualitativo, de romper o círculo maléfico da guerra de agressão e da defesa armada, em que gira a história do mundo, não encontrará salvação.

 

 

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