“Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal,
à qual nenhum homem vivente pode escapar“
Francisco de Assis, Cântico das Criaturas
Um dos grandes clássicos do cinema, o Sétimo Selo, de Ingmar Bergman (1957), se fez gigante e atemporal por tratar do mais indistinto problema da humanidade ao colocar um cavaleiro recém regressado da guerra em um jogo de muitas variáveis, mas de consequência independente: a morte. Mais de 60 anos depois de lançamento do filme, diante da morte simultânea de milhares e milhões de outros, gradual e cotidianamente do planeta, e inercialmente de si mesmo, o ser humano ressignifica sua relação com o seu dilema da finitude. A pandemia do coronavírus, sem dúvidas, desvelou que a relação da humanidade com a morte não é apenas de medo ou estupor; sino de indiferença e, para alguns, de alívio – emocional e econômico.
A cena da dança da morte que ilustra o topo desta matéria, representa, aos olhos do cavaleiro já perdedor, desde o início, uma morte conduzindo a todos, ao final, sem diferenças de caráter, todos cirandando, cada um em seu próprio ritmo, mas no sentido único. A dança que não distingue seus participantes, inclui também a própria morte. Colocar-se ao lado, e dançar como irmã, é, em parte, a louvação de São Francisco de Assis. O padre dehoniano Antonio Viola critica a relação indiferente e de afasia diante da morte. ”Se não formos capazes de chamá-la de irmã, devemos pelo menos tentar oferecer-lhe hospitalidade para continuar a ter credibilidade em nosso anúncio da ressurreição. Afinal, a grande história da Paixão não é o cenário extraordinário em que todos somos chamados a encontrar nosso lugar diante da morte?”, escreve em artigo publicado pelo IHU.
O teólogo Leonardo Boff explica que para São Francisco a morte nos leva para o abraço misericordioso do Pai. Em entrevista concedida à revista IHU On-Line, Boff afirma: “Ela é irmã que nos leva para a Casa do Pai. Não é uma figura sinistra que nos vem arrebatar a vida. Mas uma irmã que nos conduz ao nosso destino derradeiro. Morrer é ir ao encontro do Pai, sem medo, pois Ele é pura bondade, misericórdia e amor. Morrer é cair em seus braços para o abraço infinito da paz e do amor”.
Boff ainda interpreta que a morte não é o destino derradeiro que Deus tem para nós: “A morte pertence à vida e devemos integrá-la. Nós não sucumbimos à morte, mas nos transfiguramos através da morte, como foi o caso de Jesus. Em outras palavras: a palavra derradeira pronunciada por Deus sobre o nosso destino não é a morte, mas a vida em plenitude, a vida ressuscitada”.
No entanto, vale destacar a diferença entre a morte e o morrer, frisada por Gilberto Gil, em sua música:
Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
O processo que gera a morte, e mortandades, e genocídios, não é fruto de destino ou de realização da humanidade com Deus. Como escreve o filósofo Dirceu Benincá, em artigo publicado pelo IHU, “se misteriosa é a existência e presença de Deus entre nós, igualmente o é a origem, a consistência, a duração, o trépido fim ou a continuidade da nossa vida. E com a morte em eminência, atacando toda a humanidade de muitos modos e há um bom tempo também de forma persistente, aguda, grave, global e insólita por meio no 'novo' (já nem tanto) coronavírus, tais questões emergem ainda mais retumbantes em nós. Neste cenário de morte por atacado, estará a humanidade se acostumando com ela? A pergunta parece mal formulada. Como pode alguém se acostumar ou ficar tranquilo diante da morte, da sua e da dos demais?”.
O sociólogo italiano Marco Marzano também considera que a forma em que milhões de pessoas morreram aliada à emergência sanitária e a obrigatoriedade de distanciamento afetou inclusive a celebração dos rituais fúnebres. “A impossibilidade de dizer adeus aos que morreram 'normalmente', com os gestos e ritos que a tradição nos transmite, representou uma verdadeira ameaça à integração social. A morte foi a protagonista absoluta das crônicas deste annus horribilis, chamou para si todos os holofotes de nossas vidas, mostrou-se com toda a sua potência, empurrando-nos para trás no tempo, para aquelas épocas históricas em que semeava flagelos sem que os seres humanos pudessem fazer nada além de orar e esperar que isso aplacasse a sua violência”, escreveu Marzano em artigo publicado pelo IHU.
O problema na vivência do luto na sociedade pandêmica dialoga com a visão asséptica da morte que a psicóloga Maria Helena Pereira Franco aponta na sociedade ocidental pós-moderna. “O ser humano, nas sociedades ocidentais pós-modernas, busca satisfação imediata de seus desejos, com baixíssima tolerância ao sofrimento que advém em resposta a situações de rupturas, morte e luto. Por esse motivo, entre outros, a morte passa a ser uma inimiga a ser vencida, e não integrante do desenvolvimento humano”, afirmou em entrevista à Revista IHU On-Line. Pereira Franco ainda aponta que “alguns movimentos iniciados no final do século XX têm possibilitado um resgate dessa condição humana da morte para aproximar dela o ser humano, que assim pode construir novos significados para vida e morte”.
A proximidade e o afeto são partes daquilo que Luiz Carlos Susin, teólogo franciscano, explica como trabalho de luto: “Tanto quem está morrendo como quem tem laços com quem morre precisam superar a dor através de um processo que chamamos 'trabalho de luto'. Esta superação não é instantânea e nem automática. Comumente se descreve o processo com quatro ou cinco etapas, mas passa-se de uma para outra através de uma elaboração em que é necessário trabalho, decisão, superação de si mesmo. Passa-se da negação à negociação, da negociação à revolta, da revolta à resignação e da resignação à criatividade extrema. É um doloroso percurso, mas chega a um final integrativo. A maior dificuldade está na essência mesma da morte: a finitude humana, a finitude do que há de mais belo e do único mundo que conhecemos, sobretudo dos laços de amor que nos unem às pessoas queridas neste mundo”, afirmou Susin em entrevista concedida à Revista IHU On-Line.
As muitas mortes da pandemia são consideradas também como "mortes matadas", quando há a ineficácia das políticas públicas em assegurar a prevenção e o tratamento adequado para as pessoas se recuperarem ou até mesmo morrerem, como no caso dos mortos por asfixia devido à negligência na gestão dos tanques de oxigênio. O filósofo camaronês Achille Mbembe nomeia essa prática como "necropolítica". Em artigo publicado pelo IHU, Mbembe afirma que: “No meio da intoxicação geral, é neste rumo dionisíaco, descrito aliás em Brutalisme, que o vírus vem estancar-se sem, no entanto, o interromper definitivamente, mesmo quando tudo fica na mesma. Agora, porém, vive-se a asfixia e a putrefação, amontoamento e cremação de cadáveres, numa palavra, a ressurreição de corpos vestidos, de vez em quando, com a sua mais bela máscara funerária e viral. Para os seres humanos, a Terra estaria prestes a transformar-se numa roda dentada, a Necrópole universal? Até onde terá de chegar a propagação de bactérias de animais selvagens entre os humanos se, na realidade, a cada vinte anos, são cortados quase cem milhões de hectares de floresta tropical (pulmões da Terra)?”.
O jurista Diogo Justino também critica essa a política deliberadamente negligente contra a vida: “Os atuais debates em torno dos termos biopolítica, tanatopolítica e necropolítica nos mostram a centralidade da gestão da vida e da morte no âmbito público. Assim, o uso político da morte não aparece apenas em manifestações contra políticas que provocam o extermínio, como as que foram mencionadas anteriormente, mas nas práticas históricas (e ainda cotidianas) de exercício de poder, sobretudo de poder punitivo. É uma política-de-morte que se utiliza politicamente da morte, o que difere do uso político de uma morte provocada por violência estatal. Ou seja, mata-se primeiro, para depois colher benefícios políticos”,
Para concluir essa pequena ciranda sobre a morte, Massimo Recalcati, psicanalista italiano, destaca o sentido em que a roda gira e como se relacionar com ela: “É a passagem do tempo, o seu devir inexorável que nos fazem apreciar os detalhes aparentemente mais insignificantes da vida. A corrupção das coisas, em vez de gerar desespero, introduz a uma experiência da beleza não separada da experiência da caducidade. O sentido trágico da vida não suprime a vida, nem o seu sentido, mas a enriquece”.