22 Março 2022
O poder executivo global e a diplomacia de alto nível são escritos com acento masculino. E a guerra na Ucrânia nos recorda novamente. Joe Biden, Volodimir Zelensky, Vladimir Putin, Emmanuel Macron, Recep Tayyip Erdogan, Olaf Scholz, Josep Borrell, Xi Jinping e Jens Stoltenberg. A guerra na Europa mostra a invisibilização das mulheres na diplomacia internacional. O conflito na Ucrânia tem nome masculino e seu caminho para a paz também.
A reportagem é de María G. Zornoza, publicada por Público, 20-03-2022. A tradução é do Cepat.
Só 4% dos acordos de paz entre 1992 e 2011 foram assinados por mulheres. Elas representam 9% dos negociadores nesses processos. Entre 1990 e 2017, mediaram apenas 2% dos casos de paz. No entanto, diversos estudos revelam que a participação das mulheres na alta diplomacia é fundamental para colocar fim aos conflitos que emergem em todos os cantos do planeta, como evidenciam os exemplos na Libéria, Irlanda do Norte, Balcãs e Filipinas.
“Uma terceira guerra mundial seria nuclear, destrutiva.” “Enviaremos armas e até mesmo aviões para a Ucrânia.” “Putin é um criminoso de guerra.” “Mulheres, orgulhem-se dos soldados russos que estão participando na operação militar especial.” Estas declarações dos últimos dias, pronunciadas por Lavrov, Borrell, Biden e Putin, refletem o que alguns estudiosos classificam como “a política exterior do macho alfa”.
Em paralelo, o contexto global deixa uma radiografia de líderes populistas do Brasil à Polônia ou Rússia que estão revertendo décadas de progresso em igualdade. “A subordinação das mulheres se ajusta à visão desses líderes de que a ordem política natural se baseia na dominação masculina e na segregação de gênero”, avalia o estudo Liderança política e jogos multiníveis de gênero na política externa, publicado pela revista International Affairs. É uma tendência à “remasculinização da política internacional”.
As mulheres são projetadas nas guerras principalmente como vítimas. Em muitos conflitos globais, suas histórias são as de pessoas que fogem ou que são agredidas sexualmente. Desde que estourou a guerra na Ucrânia, as fotografias que inundam as primeiras páginas dos meios de comunicação são as de mães fugindo com seus filhos, cheias de dor e sofrimento e escoltadas pelos militares. Contudo, por trás disso, existem inúmeras mulheres fortes e resilientes. Na frente e na retaguarda.
Recentemente, a Comissão Europeia alertou sobre o risco de que as mulheres que fogem das bombas russas caiam nas mãos de traficantes. Muitas vezes, durante os conflitos, as mulheres ficam presas a um paradoxo: são as vítimas civis mais expostas e, ao mesmo tempo, sua margem para prevenir os enfrentamentos é muito limitada devido à sua ausência generalizada nas mesas de negociação e nos altos postos de influência. “A exclusão geral das mulheres nas posições de tomadas de decisão, antes, durante e depois dos conflitos armados, reforça sua vitimização”, afirma uma resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.
A resolução 1325 da ONU destaca a importância do papel das mulheres na prevenção de conflitos e na manutenção da segurança. Com base na assimetria e infrarrepresentação feminina nas mesas de negociação, a Organização das Nações Unidas solicita aos governos que incentivem sua presença em todos os níveis da esfera diplomática.
Após analisar 40 processos de paz consumados desde a Guerra Fria, o organismo liderado por António Guterres conclui que “nos casos em que as mulheres tiveram forte influência na negociação houve muito mais possibilidades de alcançar um acordo do que naqueles em que não estavam presentes”. E não só isso: a solidez dos acordos dispara. As possibilidades de que a paz seja respeitada e perdure no tempo aumentam em 20% quando há mulheres participando.
Os estudos revelam que os acordos de paz assinados por mulheres na liderança guardam correlação com o êxito de que sejam implementados e mantidos. A análise do Instituto de Genebra sobre Broadening Participation Process deixa claro: nas negociações em que elas estiveram presentes, um acordo de paz era quase sempre alcançável.
Além disso, os especialistas ressaltam a necessidade de contar com elas, com o seu conhecimento e experiências para concretizar planos de reconciliação e reconstrução igualitários. Segundo dados da Organização das Nações Unidas, só 27% dos acordos de paz assinados em 2017 continham políticas com perspectivas de gênero.
Muitos se perguntam por quê. “A participação das mulheres está relacionada a um dilema mais amplo sobre os fins e os meios para o estabelecimento da paz: se o objetivo de um processo de paz é apenas colocar fim à violência, é pouco provável que as mulheres, que raramente são beligerantes, sejam consideradas participantes legítimas”, explica Marie O’Reilly, especialista em segurança e gênero.
Várias pesquisas indicam que a inteligência emocional e a liderança feminina acrescentam um grande valor ao diálogo sobre a resolução de conflitos. “Essa teoria pode ser vista como um corolário da crescente importância do soft power (poder brando) na política externa e da promoção da igualdade de gênero como uma forma de smart power (poder inteligente), afirma a pesquisa da International Affairs. Ao mesmo tempo, uma pesquisa liderada por Michael A. Genovese conclui que as mulheres líderes tendem a agir de forma mais “masculina e agressiva” em temas de política externa para se libertar do histórico rótulo de “fraqueza feminina”.
Desde o início da ofensiva bélica desencadeada por Vladimir Putin contra o seu vizinho, a União Europeia passou da ação à reação. E da diplomacia a uma crescente narrativa beligerante. O bloco comunitário deu um passo sem precedentes em sua história pacifista: enviar pela primeira vez armamento e material bélico a um país em guerra. Os europeus viraram para a página do hard power.
“As forças do mal, as forças que se esforçam para continuar utilizando a violência como forma de resolver os conflitos, seguem vivas e devemos demonstrar uma capacidade de ação mais poderosa, consistente e unida do que foi até agora”, destacava Borrell, recentemente, ao Parlamento Europeu. Anos atrás, quando assumiu o cargo de chefe da diplomacia europeia, o espanhol já apelava para que a União Europeia utilizasse a “linguagem do poder”. E a guerra na Ucrânia abriu o caminho para isso.
A guerra declarada por Vladimir Putin deixa muitas incógnitas. E uma delas é se a saída de Angela Merkel, com quem mantinha uma boa relação, influenciou em seus planos. O legado da chanceler está sendo revisto, nesses dias, por sua política de apaziguamento em relação a Moscou, durante muitos anos.
Em momentos de incerteza e volatilidade como a atual, é impossível vaticinar se a presença da alemã na linha de frente diplomática afetaria o curso da guerra na Ucrânia. Contudo, o mais certo, segundo uma infinidade de pesquisas, é que a presença de vozes femininas na mesa de negociação seria um estímulo à paz.
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A guerra na Ucrânia simboliza a diplomacia do ‘macho alfa’ e a invisibilização das mulheres na linha de frente política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU