"Até o momento em que escrevo, Kiev não sucumbiu. Macron acaba de fazer um novo e valoroso esforço com Putin, sem resultado. Tudo é incerto, tudo é perigoso. A solução de compromisso aceitável por todos seria uma Ucrânia neutra e federalizada, tendo em vista sua diversidade étnica e religiosa. Essa diversidade é atualmente inacessível".
O artigo é de Edgar Morin, sociólogo francês. A tradução é de Edgard de Assis Carvalho com a revisão de Fagner França.
Segundo ele, "um dos aspectos da tragédia é que não podemos fazer uso da fraqueza nem da força separadamente e que estamos obrigados a navegar entre as duas de maneira incerta".
Sempre lúcido, Morin destaca que "o acidente de uma guerra que ultrapassaria em horror as duas precedentes Guerras Mundiais não constitui uma impossibilidade".
No momento em que escrevo este texto, relembro a angústia que me atingiu durante a crise dos mísseis russos em Cuba, em 1962. Estava hospitalizado em Nova Iorque e meu amigo Stanley Plastrik me informava todos os dias que a cidade corria o risco de ser destruída por uma bomba atômica. Posteriormente, a conciliação venceu e Khrushchov retirou os mísseis. De outra forma, vejo hoje que estamos à beira de um abismo, mergulhados na total incerteza do amanhã.
De modo claro, tentemos ver o que é simples e, ao mesmo tempo, complexo. A simplicidade reside no fato de que o agressor é uma grande potência e o agredido uma nação pacífica. A complexidade é que o problema ucraniano é não apenas trágico e perturbador, mas comporta múltiplas implicações entrelaçadas e outras tantas totalmente desconhecidas.
Tentemos ver qual poderia ser uma solução de paz que não fosse a paz do cemitério.
Lembremos que no final do século 18 a Ucrânia foi dividida entre a Polônia (que também será dividida), o Império russo e o Império austríaco. A Ucrânia tornou-se independente durante as guerras posteriores à Revolução de 1917, mas foi vencida em 1920 e integrada à União Soviética. Seu campesinato sofreu muito cruelmente os efeitos da colcozificação e da grande fome de 1931. Os ucranianos tiveram por um momento a ilusão de serem libertados pela Wehrmacht, as forças armadas da Alemanha Nazista; em 1941, o independentista e colaboracionista Stepan Bandera proclamou durante a ocupação alemã uma pseudo-república independente. Os Ucranianos, porém, participaram ativamente da resistência ao nazismo. Foi no período da decomposição da URSS que a Ucrânia e a Bielorrússia se tornaram independentes mediante um acordo com a Rússia então presidida por Boris Iéltsin.
A situação da Ucrânia agravou-se paralelamente à deterioração das relações entre a Rússia e os Estados Unidos. A Ucrânia não é apenas um enclave geopolítico importante para a Rússia e a América, ela é um imenso alvo da cobiça econômica. É a principal reserva europeia de urânio, a segunda em titânio, manganês, ferro, mercúrio. Tem a maior superfície de terras aráveis da Europa, 25% da extremamente fértil terra preta do planeta, produz e exporta cevada, milho e outros produtos agrícolas.
Depois de uma revolução democrática, a Ucrânia foi submetida a uma crescente pressão da Rússia e, em 2017, pretendeu ingressar na União Europeia. Vladimir Putin anexou a Crimeia, estimulou o levante e depois a autonomia da região russófona do Donbass, a sudeste da Ucrânia. É preciso reconhecer que a península da Crimeia é uma região tártara russificada mas não ucraniana. E que a manutenção do Donbass na Crimeia exigiria uma solução federal. Putin justificou sua ação reiterando em 18 de março de 2014 que “eles nos mentiram várias vezes, tomaram decisões sem nos consultar, colocando-nos diante do fato consumado. Tudo isso tem a ver com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN] no Leste, e com o envio de infraestruturas militares para nossas fronteiras.”
Na verdade, uma guerra tinha começado em Donbass, a despeito dos acordos de Minsk, e nunca mais parou. Em artigo no Le Monde, de 3 de maio de 2015, eu havia previsto o perigo: “No que diz respeito à Europa, infelizmente a impotência do Oeste não é apenas de caráter militar nem de vontade, mas sim de pensamento político e de pensamento como um todo. Seria desejável que François Hollande, Laurent Fabius e Manuel Walls tomassem consciência do impiedoso aumento dos perigos e propusessem um plano de paz coerente de uma Ucrânia federalista, traço de união entre Oeste e Leste. Não estamos mais no tempo de buscar o melhor, estamos no tempo em que se torna necessário evitar o pior.”
Desde 2014, o infernal processo das retroações conflituais se agravou e o pior aconteceu em março de 2022.
Esse processo foi provocado ao mesmo tempo pela crescente ambição de Putin de integrar a parte eslava do Império em seu território, e pela concomitante ampliação da área de influência da OTAN em torno da Rússia. O processo também foi amplamente determinado pelos conflitos de interesses que se intensificaram entre as duas superpotências após o período de aliança Bush-Putin de 2001.
Houve a reconstrução da Rússia como superpotência militar, estabelecendo suas zonas de influência na Síria e na África, além da sangrenta reintegração da Chechênia por duas guerras (1994-1996 e 1999-2001). Ocorreu também a intervenção militar na Geórgia (2008), depois a pressão crescente sobre a Ucrânia. Houve simultaneamente, sem aprovação da ONU, uma segunda invasão na guerra do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, algo catastrófico para todo o Oriente Médio, seguida de guerras internas pelo menos até 2009, e a invasão da Líbia em 2011. Por fim, os Estados Unidos se envolveram numa guerra no Afeganistão de 2001 a 2021.
Ainda que em 1991 o presidente americano houvesse prometido verbalmente a Gorbatchov que a OTAN não seria ampliada pela inclusão das antigas democracias populares, a Organização integrou em 1999, a pedido, a Polônia, a República Tcheca, a Hungria, depois as repúblicas bálticas seguidas pela Romênia, Eslovênia (2004), Albânia e Croácia em 2004, criando de fato um cerco em torno da Rússia (com duas brechas constituídas pela Geórgia e pela Ucrânia).
Esse cerco faz lembrar os tempos do Kremlin e o isolamento da URSS pelos países capitalistas entre as duas Guerras Mundiais e o confinamento da Guerra Fria. De modo mais subjetivo, daí decorre a psicologia obsessiva de Putin e o endurecimento de seu regime autoritário. Sob pretexto da guerra contra o Afeganistão os Estados Unidos instalaram bases militares nas ex-repúblicas soviéticas do Sul, Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão, fechando de fato o cerco na Sibéria.
Não poderíamos encobrir a crescente oposição entre duas superpotências para ampliar ou salvaguardar sua zona de influência, nem o cerco da OTAN. O acontecimento significativo é que, desde a retirada do Afeganistão, os Estados Unidos estão doravante empenhados em evitar qualquer guerra longínqua e o governo ucraniano aspira ser protegido pela União Europeia e pela OTAN.
É preciso considerar que Putin sente cada vez mais fortemente que aquilo que é tolerado pelos EUA, principalmente as ingerências militares nos países soberanos, para a Rússia é algo condenado. Mas ele não tolerará que a Ucrânia passe para o Oeste. Putin sabe que os Estados Unidos não intervirão militarmente se ele invadir a Ucrânia. Talvez pense numa invasão rápida e já organizou reservas em caso de sanções econômicas, cujo alcance a longo prazo ele subestima, mas talvez imagine mesmo que tudo será resolvido a curto prazo. Sem pretender psicologizar, posso imaginar que esse espírito autoritário, para quem as democracias ocidentais são decadentes, que cada vez mais endurece seu regime policial-militar na Rússia, acreditou em 2001, juntamente com Bush, que os Estados Unidos tratariam dignamente seu grande país. Ele tende a ocultar o fato de que suas guerras na Chechênia, suas intervenções na Geórgia e, finalmente, na Ucrânia em 2014 puseram os Estados Unidos e a Europa em estado de alerta. A princípio prudente e ardiloso, Putin tornou-se audacioso em 2014 e, doravante, é impelido por uma terrível raiva.
É necessário ressaltar também que, quando as tropas russas se concentraram na fronteira da Ucrânia, em 1º. de março de 2022, Joe Biden fez um discurso de tom intransigente, no qual se encontra uma pequena frase essencial: “nós não faremos a guerra”, que, mesmo sendo legítima, desequilibrou os Estados Unidos na correlação de forças. Nenhum povo, nenhum governo na Europa considerou fazer a guerra na Ucrânia invadida, apesar dos constantes apelos do presidente Zelenski e das inúmeras tentativas de negociação de Macron com Putin.
Não resta dúvida de que a heroica resistência do presidente Zelenski, de seu governo, do povo ucraniano surpreendeu Putin e provocou nossa admiração. Fez com que Putin abandonasse a mentira da desnazificação e passasse agora a falar de nacionalistas ucranianos. Sem dúvida, a resistência contribuiu para unificar a Ucrânia democrática e nacional.
Além disso, pelo menos por um tempo, a guerra de Putin unifica a Europa, em sua reprovação e reação. O Ocidente tenta fazer de tudo, exceto compreender o que constituiria a essência da própria guerra. Uma guerra como esta seria uma catástrofe generalizada que mergulharia a Ucrânia, a Europa e a América numa terrificante nova Guerra Mundial. Em decorrência disso, efetiva-se uma reação apenas econômica de sanções múltiplas e generalizadas (pessoalmente, sou contrário a sanções que atinjam a cultura, a música, o teatro, as artes); depois, a reação se amplia por uma ajuda econômica, pelo envio de material militar à Ucrânia, pela organização de um centro de acolhimento para refugiados. E também pela formação de uma legião de voluntários para combater na Ucrânia. Um dos aspectos da tragédia é que não podemos fazer uso da fraqueza nem da força separadamente e que estamos obrigados a navegar entre as duas de maneira incerta.
Dito isso, lembremos que as sanções também atingem os que as executam. A Europa corre o risco de ter falta de gás e outros produtos. Pode até ser que a guerra econômica fosse eficaz a longo prazo, mas até lá a Ucrânia teria sido absorvida. A guerra poderia ter efeitos mais amplos na Rússia, empobrecer a população, provocar uma forte oposição (informações verídicas já chegam às cidades russas por múltiplos canais privados) que poderia reforçar ou reverter o poder autoritário de Putin.
Qual é e onde se encontra a fronteira entre a guerra econômica, a ajuda armamentista, a intervenção de voluntários e a própria guerra? Os bombardeios, as ruínas, os mortos que, longe de nós, atingiram a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão batem às nossas portas.
Aqui irrompe a ameaça tantas vezes repetida de Putin do uso de arma implacável contra os que ameaçassem a Rússia. “Vocês seriam todos bombardeados”. Num excesso de raiva, seria ele capaz de passar à ação? De qualquer forma, o acidente de uma guerra que ultrapassaria em horror as duas precedentes Guerras Mundiais não constitui uma impossibilidade.
Uma regulamentação pacífica da guerra permitiria negociações mais amplas entre a Rússia, os Estados Unidos e a Europa. Não sei se a Unidade adquirida durante a crise pela União Europeia se manterá; haverá um elemento novo: o rearmamento alemão, que dará à Alemanha uma hegemonia que não será mais unicamente econômica.
Na expectativa de uma hipotética solução, o perigo permanente continua. Como encontrar a via entre a fraqueza culpável e a intervenção irresponsável? De qualquer maneira, como vimos com muita frequência, as intervenções caminham no sentido inverso das intenções e das decisões, tanto no Leste quanto no Oeste.