"Em Babij Jar não há nada para conservar. Não há nada além das cinzas e ossos dos milhares de vítimas enterradas sob metros e metros de terra, estradas e condomínios; com eles também a memória, provavelmente destinada a evaporar junto com os vapores do sensacionalismo tecnológico", escreve Enrico Mottinelli, filósofo e autor de Il silenzio di Auschwitz. Reticenze, negazioni e abusi della memoria [O silêncio de Auschwitz. Reticências, negações e abusos de memória (em tradução livre), San Paolo 2018], em artigo publicado por Settimana News, 10-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Causou grande sensação a notícia divulgada na quinta-feira, 1 de março, do bombardeio que atingiu o local do memorial de Babij Jar. No quinto dia da guerra de invasão travada pela Rússia de Vladimir Putin contra a vizinha Ucrânia que, segundo o presidente russo, seria governada por "um bando de drogados e nazistas" (ANSA, 25 de fevereiro de 2022), teve-se que adicionar à lista dos efeitos colaterais também essa afronta.
Parece, de fato, que o memorial não fosse o alvo do fogo de artilharia que visava a torre de televisão de Kiev, que foi depois efetivamente atingida. Mas o alvo da torre expôs toda a área aos golpes e quem pagou a conta, justamente, foi o memorial, a poucas centenas de metros de distância.
Para além da real extensão dos danos, o valor simbólico do fato foi imediatamente entendido. Embora "involuntárias", ao que parece, essas bombas violaram de fato a intangibilidade de um lugar que, por sua própria existência, deveria impedir a repetição de novas atrocidades, como se dissesse que aquelas do passado, das quais se conserva a memória, são suficientes e, portanto, nunca mais!
Mas, ao invés disso, se ainda fosse necessário demonstrar que a história, como dizia Gramsci, é geralmente uma professora sem alunos, eis que justamente naquela mesma terra se volta a destruir e a matar. Inclusive crianças.
Babij Jar é tristemente conhecido porque ali ocorreu um dos massacres mais chocantes do extermínio dos judeus da Europa durante a Segunda Guerra Mundial.
Estamos em setembro de 1941. As tropas alemãs entraram em Kiev no dia 19, uma sexta-feira. A ocupação faz parte da operação Barbarossa que começou em junho anterior, quando Hitler, quebrando o pacto de não agressão assinado dois anos antes, declara guerra à União Soviética.
Desde o início, episódios de violência gratuita e feroz contra a população judaica se multiplicaram nas ruas da cidade. Três dias depois, segunda-feira 22, avisos são afixados nos muros da cidade alertando para o fato de que "judeus, comunistas, comissários e membros da resistência serão eliminados", para que não haja dúvida. A delação é encorajada recompensando a denúncia de um comunista ou de um membro da resistência com 200 rublos (Vasilij Grossman e Il'ja Erenburg, Il libro nero, Mondadori, Milan 2001, pp. 23-24). Os judeus são mortos diretamente na rua e muitas vezes jogados no rio Dnieper, que atravessa a cidade e carrega os cadáveres inchados de idosos e crianças.
O clima é muito pesado, como um círculo do inferno, como está acontecendo em quase todo o território soviético ocupado pouco a pouco pelo avanço alemão. Os comandos do Einsatzgruppe semeiam o terror, matando dezenas de milhares de civis num ritmo alucinante. É o chamado "Holocausto com as balas", que antecede a solução final da questão judaica na Europa consumada nos campos de extermínio e que resultará na morte de cerca de um milhão e meio de judeus nos territórios soviéticos invadidos pelos Exército alemão.
No dia 24, começa uma operação organizada há tempo pela resistência e pelos serviços soviéticos: o centro de Kiev, o Kreščatik, é literalmente explodido. A primeira explosão ocorre entre três e quatro da tarde, e faz desabar o prédio que se tornou a sede do comando alemão. Depois, em uma sucessão regular, mas imprevisível, minas explodem espalhadas pelos prédios ao redor.
As explosões continuam durante toda a noite, e continuam até o dia 28, causando um incêndio colossal que durará pelo menos duas semanas. Ainda em dezembro poderá se ver fumaça de alguns focos da área devastada. "Nenhuma capital europeia", observa Anatolij Kuznecov em seu relato dos eventos de Babij Jar, "tinha recebido Hitler como o recebeu Kiev" (Babij Jar, Adelphi, Milan 2019, p. 87).
Os alemães, que sofrem graves perdas e sobretudo têm muita dificuldade em recuperar o controle da cidade, tornam-se "sombrios e raivosos" (ibid., p. 90), e preparam a represália, que, porém, curiosamente, tem como alvo os judeus. Não se trata de um efeito colateral, porque os judeus são declaradamente postos na mira, mas eles não são os responsáveis pela destruição do Kreščatik. Ou talvez sim. Porque, no fundo, de acordo com os nazistas, não há nenhuma distinção entre bolchevismo e judaísmo.
Nos dias 27 e 28, novos avisos aparecem nas ruas da cidade. Desta vez são feitos de papel jornal e trazem, em letras grandes e em três idiomas, russo, ucraniano e, na parte inferior, em corpo menor, em alemão, as seguintes disposições: "É obrigatório para todos os judeus da cidade de Kiev e de os seus arredores se apresentarem na segunda-feira, 29 de setembro de 1941, às 8h da manhã, na esquina das ruas Mel'nikovskaja e Dochturovskaja (perto do cemitério). Trazer documentos, dinheiro, objetos de valor e também agasalhos, roupas de baixo, etc. Os judeus que não cumprirem essas disposições e forem encontrados em outro lugar serão fuzilados [...]” (ibid., p. 93).
O comunicado não está assinado e parece ter sido redigido às pressas, mal traduzido, porque as ruas indicadas estão grafadas de forma errada e aqueles nomes simplesmente não existem em Kiev, mas todos entendem de que lugar se trata: perto do cemitério russo e daquele judaico, mas sobretudo perto de uma estação ferroviária, circunstância que sugere que os alemães queiram transferir os judeus deportando-os para campos de concetração.
Em vez disso, aquela convocação é de fato uma condenação à morte para os mais de 60.000/70.000 judeus que ainda vivem na cidade. Eles são os que não conseguiram, não puderam ou não quiseram sair quando a guerra começou: cerca de um terço da população judaica que Kiev contava entre seus cidadãos.
O que acontece entre a manhã de segunda-feira 29 e terça-feira 30 é algo inimaginável. Os judeus, que talvez tenham entendido, mas não param de ter esperança, se reúnem em massa. Um rio interminável de pessoas com as poucas coisas que conseguem carregar flui pelas ruas da capital até o lugar estabelecido. E aqui inicia a meticulosa operação de extermínio.
Obrigados a abandonar todos os seus pertences, os judeus são forçados a despir-se e, acossados pelos gritos, por pauladas ou pás e pelos cães aguçados contra eles, dirigem-se ao gigantesco fosso de Babij Jar, um desfiladeiro natural, "uma ravina enorme […] profunda e larga como um desfiladeiro de montanha […]. As paredes íngremes, escarpadas, em alguns pontos até verticais” (ibid., p. 25). O local foi cuidadosamente preparado.
É completamente cercado e inacessível para pessoas estranhas. Aqui, separados "por soldados alemães com proteções no peito, e também homens da polícia auxiliar ucraniana alistados pela SS, os chamados ‘polizei’, de uniforme preto com proteções cinza" (ibid., p. 102), em grupos sucessivos os judeus são enfileirados à beira da ravina e abatidos a tiros de armas de fogo. Os corpos caem e se empilham no fundo do desfiladeiro. Para economizar munição, as crianças menores são jogadas para o fundo ainda vivas. Um massacre indescritível. Durante aquelas quarenta e oito horas, 33.771 judeus foram mortos dessa maneira.
O sucesso da operação e a praticidade do local tranquilizaram os alemães, que nos dois anos seguintes acumularão os corpos de cerca outras 100.000/150.000 pessoas naquele desfiladeiro, entre judeus, prisioneiros militares soviéticos, membros da resistência ucranianos, ciganos e sinti, tornando Babij Jar a maior vala comum já vista na Europa.
O envolvimento de homens ucranianos nos massacres não é um fato isolado, e não se limita aos fuzilamentos “ao ar livre”, pois muitas vezes também serão encontrados em serviço em campos de concentração e extermínio. A invectiva de Putin contra a atual classe dirigente ucraniana também se refere instrumentalmente a essa circunstância e aos grupos de inspiração nazista ativos nas áreas do sul do país e agridem os pró-russos. Na realidade, em todos os territórios soviéticos ocupados existem milhares de voluntários que se alinham com os nazistas invasores para combater o inimigo bolchevique comum e, ao mesmo tempo, desafogar seu ódio contra a população judaica.
Também acontece na Europa Ocidental, onde belgas, dinamarqueses, finlandeses, franceses, ingleses, irlandeses, italianos, noruegueses, holandeses, espanhóis se juntam às SS. Será o próprio Himmler a organizar seu recrutamento nas fileiras da SS, criando contingentes "de auxiliares de polícia não alemães - os Schutzmannschaften (comumente conhecido como Schuma)".
Permanecendo no lado oriental da Europa, entre 1939 e 1945 “as SS absorveram mais de um milhão de homens pertencentes às Ostruppen (tropas do Leste) soviéticas, muitos dos quais muçulmanos. Indianos, árabes, albaneses, croatas, ossetas, tadjiques, uzbeques, bósnios, ucranianos, azeris e até mongóis budistas” (Christopher Hale, I carnefici stranieri di Hitler, Garzanti, Milão 2012, pp. 28-29).
Estima-se que, no final de abril de 1945, quando Hitler cometeu suicídio no bunker em Berlim, "pelo menos 10.000 ucranianos nas fileiras das SS marchavam para o oeste na esperança de se render aos aliados e escapar da captura pelos vingativos batalhões soviéticos do NKVD [Comissariado do Povo para Assuntos Internos]' (ibid, p. 29).
Mapa do Holocausto na Europa (Fonte: Holocaust-Europe | Wikimedia Commons)
Mas voltemos a Babij Jar. No final de setembro de 1941, após o massacre, a história deste lugar encharcado de sangue ainda está apenas no começo. Em agosto de 1943, a partir do dia 18, para ser exato, de acordo com as diretrizes da chamada Aktion 1005, 300 prisioneiros do campo de concentração adjacente ao desfiladeiro foram obrigados a exumar os corpos enterrados e queimá-los.
Trata-se de apagar as provas dos massacres, porque o Exército Vermelho está contra-atacando e avança, reconquistando os territórios ocupados pelos alemães que devem se preparar para a retirada. Babij Jar torna-se assim um gigantesco canteiro de obras, Baustelle, "canteiro de obras", como os alemães também o chamam, equipado com escavadeiras e tratores, que recuperam aos pedaços os cadáveres desenterrados para depois os queimar nos fornos. Um trabalho imenso, que não é levado a termo definitivamente, até porque as cinzas e os ossos calcificados são em tal quantidade e penetram no solo a ponto de continuarem a aflorar durante anos.
Estranho dizer, mas serão os soviéticos que depois continuarão os trabalhos de ocultação.
A razão pela qual as autoridades de Moscou queriam cancelar Babij Jar não é fácil de entender. É preciso entrar nas contorções da ideologia paranoica staliniana. Nada deve ser dito ou feito que possa ofuscar mesmo remotamente o brilho do sábio líder do partido e da nação, ou seja, Stalin.
Nada deve incutir a dúvida de que a União Soviética não seja a perfeição na terra. E, acima de tudo, não deve haver identidades étnicas que possam se distinguir da identidade soviética comum; todo individualismo, seja pessoal ou de grupos, deve ser anulado na indistinção da massa. É por isso que qualquer pessoa que tente lembrar os eventos de Babij Jar ou pedir que um memorial seja colocado em memória das vítimas é censurado.
Sim, porque só para começo de conversa, de quais vítimas se deveria falar? Não dos judeus, por exemplo. Após a guerra, uma poderosa onda de antissemitismo explode na URSS. “Mais de uma vez”, recorda Kuznecov, “ouvi os comunistas de Kiev fazerem discursos deste tipo: 'Qual Babij Jar? Aquele onde atiraram nos judeus? E por que deveríamos colocar um monumento para aqueles sarnentos?” (ibid., p. 449).
Militares soviéticos e patriotas ucranianos também foram mortos, sim, mas quantos? Mais ou menos que os judeus? E quantos a mais ou quantos a menos? Em que percentagens? E uma vez estabelecida a porcentagem, declará-la prejudicaria ou não a imagem imaculada do povo soviético? Então, para cortar o assunto de uma vez, o comitê central do partido na Ucrânia decidiu remover completamente a questão. E esse esquecimento permaneceu intacto mesmo após a morte de Stalin.
“Não há monumento a Babij Jar…” escreve Evgenij Evtušenko no início de seu famoso poema, que em 1962 Dmítrij Šostakóvič transpôs em música compondo a Sinfonia n. 13 em Si bemol menor op. 113. "Babij Jar não existe mais", escreve Kuznecov. “De acordo com alguns líderes políticos [soviéticos], nunca existiu. A ravina foi aterrada, a estrada passa por cima” (ibidem).
Monumento no memorial de Babij Jar (Foto: Wikimedia Commons)
Mas não foi fácil nem indolor cancelar Babij Jar. A primeira tentativa, mais rápida e simples, foi fechar o desfiladeiro com uma barragem e encher o reservatório com lama, pensando que a terra se assentaria e se solidificaria com o tempo. Mas a natureza argilosa do solo retardou a drenagem da água, então Babij Jar se transformou ao longo dos anos em um gigantesco reservatório de lama com paredes quase impermeáveis.
Até que, em 13 de março de 1961, após o derramamento das águas do degelo, a lama transbordou. A onda que atingiu o bairro adjacente à barragem foi devastadora, com casas arrasadas e um número incalculável de mortes. Quantos? Novamente, impossível saber. "Babij Jar não tem sorte com números", comenta Kuznecov sarcasticamente (ibid., p. 451). O desastre foi imediatamente coberto pelo silêncio. A área atingida foi isolada com cercas e ninguém conseguiu se aproximar e muito menos tirar fotos.
Em 1962, o desfiladeiro foi aterrado com toneladas de terra e toda a área foi nivelada, incluindo a parte da cidade atingida pela inundação da barragem. Um novo bairro residencial foi construído no local onde ficava o campo de concentração e todo o cemitério judaico foi apagado, substituído pelos estúdios de televisão, justamente aqueles bombardeados sessenta anos depois.
Em 1966, por ocasião do 25º aniversário do massacre, tantas pessoas se reuniram em Babij Jar que até as autoridades comunistas tiveram que tomar conhecimento e recorrer a algum reparo. Assim surgiu, durante a noite, um bloco de granito com a indicação de um futuro monumento que seria construído em memória.
Mas foi preciso esperar até 1991, quando a Ucrânia se tornou independente, para que finalmente, no local do cemitério judaico, portanto não exatamente no local onde os crimes foram cometidos, fosse erguido um monumento em forma de menorá, o candelabro de sete braços símbolo do judaísmo.
Mas que Babij Jar não seja um lugar destinado a ter paz é demonstrado, antes do bombardeio destes últimos dias, pela instalação de um novo memorial do Holocausto inaugurado nos últimos meses por ocasião do 80º aniversário do massacre, graças também ao financiamento do bilionário russo Mikhail Fridman: uma espécie de "Disneylândia do Holocausto" (do título do artigo de Davide Lerner que cobriu o evento no "Venerdì di Repubblica" de 21 de janeiro de 2022).
Em Babij Jar decidiu-se colocar em competição novas tecnologias do entretenimento e já começaram os trabalhos para as obras previstas pelo projeto escolhido e que poderão ser concluídas até 2026, embora, dada a nova situação, o condicional torna-se obrigatório, como se costuma dizer. Entre um muro de carvão cravejado de lascas de quartzo, idealizado por ninguém menos que Marina Abramovic inspirado no Muro das Lamentações de Jerusalém, "uma sinagoga de madeira em forma de livro que se dobra sobre si mesma e o campo de espelhos de aço inoxidável marcado por balas do calibre de a Segunda Guerra Mundial, com os devidos efeitos sonoros” (ibid, p. 22), fica difícil saber se sobrará espaço para um pensamento.
O Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, por exemplo, escolheu um caminho diferente. Seu diretor, o historiador Piotr Cywiński, defendeu a ideia da conservação, impedindo a instalação de instrumentos e equipamentos que perturbariam o museu tornando-o um carrossel de emoções.
Mas em Babij Jar não há nada para conservar. Não há nada além das cinzas e ossos dos milhares de vítimas enterradas sob metros e metros de terra, estradas e condomínios; com eles também a memória, provavelmente destinada a evaporar junto com os vapores do sensacionalismo tecnológico.
E agora, por fim, a devastadora artilharia russa. Acidentalmente. Talvez. Quem pode saber? Já que estavam ali, com as armas apontadas e com uma boa desculpa, por que não?