09 Junho 2021
No dia 26 de maio de 1976, “após um agradável despertar pela manhã”, anota o biógrafo Rüdiger Safranski, um dos maiores filósofos do século, Martin Heidegger, adormeceu outra vez e aos 87 anos morreu. Dois dias antes, havia escrito suas últimas palavras, uma saudação a Bernhard Welte, um teólogo nascido na mesma cidade alemã que ele, Messkirch, não muito distante da Floresta Negra, onde menciona uma das questões pelas quais o pensamento heideggeriano, através do tempo e a distância, segue entre nós: “É necessário refletir sobre como uma pátria ainda pode existir na época da civilização mundial uniformemente tecnificada”.
A reportagem é de Nicolás Mavrakis, publicada por Infobae, 26-05-2021. A tradução é do Cepat.
Esta preocupação com o impacto da técnica na existência acompanhou Heidegger durante toda a sua vida. Em 1910, com apenas 21 anos, já reprovava na modernidade sua “sufocante atmosfera, o fado de ser um tempo da cultura exterior, da vida rápida, de uma fúria inovadora radicalmente revolucionária, dos estímulos do instante e, sobretudo, o fato de representar um salto frenético acima do conteúdo anímico mais profundo da vida e da arte”, recorda Safranski. E, por acaso, esta condenação à vertigem provocada pela técnica (a tecnologia, diríamos agora) não soa parecida com a de qualquer crítico contemporâneo que hoje reprova o que internet faz com as nossas vidas?
Quando pensamos em filósofos atuais da técnica como o sul-coreano-alemão Byung-Chul Han, o italiano Franco “Bifo” Berardi e o francês Éric Sadin, as marcas gerais de suas advertências contra uma civilização digitalizada convergem para o mesmo: à sombra das ideias de Heidegger, à sua maneira, todos repetem com fórmulas como “a sociedade do rendimento e a transparência”, “a tempestade da infoestimulação” e “a siliconização do mundo” que a humanidade ainda é despojada de sua essência pelo avanço da técnica (sob a forma de redes sociais, algoritmos e telas), motivo pelo qual nos tornamos pouco mais que elos inertes de um mecanismo de pura exploração mercantil.
É este “esquecimento do Ser”, nas palavras de Heidegger, que em pleno século XXI ainda estabelece as coordenadas do conflito entre o homem e a máquina. Para entendê-lo da forma mais simples possível, nada melhor que as palavras do ensaísta argentino Eduardo Grüner, em La obsesión del origen (Ubu Ediciones): o que a pergunta heideggeriana pela técnica revela é “uma lógica cuja finalidade é a substituição da Verdade do Ser por um Saber mecanicista que faz do mundo uma imagem eficiente, mas despojada de fundamento e valor profundo”.
Se Heidegger ainda marca a raiz das grandes inquietações provocadas pelos dispositivos tecnológicos que cercam nossa existência, é porque os computadores, a televisão e os telefones celulares ocupam de modo crescente grande parte de nosso tempo “e a técnica apresenta este fato como um triunfo do espírito”, explica o ensaísta argentino Oscar del Barco, em “El estupor de la filosofía” (Biblioteca Internacional Martin Heidegger). De fato, a ingerência da técnica, até mesmo na intimidade da vida, é apresentada como o que “salva”, escreve Oscar del Barco, no sentido de que, conforme nos indica a lógica exibicionista das redes sociais, “a transparência total é exibida como felicidade”.
O ponto chave está em que este processo conduz a um mundo cada vez mais anulado, rigidamente racional “e simultaneamente desprovido de razão”, destaca Oscar del Barco. E ainda assim, o que o atual salto tecnológico digital hoje nos demonstra cotidianamente, Heidegger percebeu antes (e melhor) sob a ideia de uma natureza que se torna um objeto de cálculo, de modo que o homem também começa a olhar a si mesmo como se fosse uma coisa entre coisas. Em termos heideggerianos, o Ser, ou seja, a essência humana que deveria “revelar-se” para que a verdade possa acontecer, fica “oculto” pela técnica.
Mas a diferença entre o que estas ideias significaram para Heidegger e o que hoje significam para seus acólitos, ficou marcada pelo singular contexto histórico do grande pensador alemão. Em inícios dos anos 1930, quando no apogeu de sua carreira Heidegger já era reitor da Universidade de Freiburg, a tecnificação da existência era disputada por dois grandes poderes antagônicos no campo ideológico, mas idênticos no modernizador: o comunismo e o capitalismo. E diante “desse mesmo frenesi sinistro da técnica desenfreada e da organização sem raízes do homem normatizado”, como escreveu Heidegger, foi então que com suas promessas de recuperação dos valores do chão e da tradição, o nacional-socialismo de Adolf Hitler seduziu o filósofo como uma opção de superação.
Das perspectivas conjugadas durante décadas para entender a raiz filosófica do vínculo entre Heidegger e o nazismo, uma das mais interessantes é a que encontra o seu ponto central no caráter de “revolução conservadora” do Terceiro Reich, Enquanto sinal de repulsa ao moderno, portanto, a decisão de Heidegger em favor do nazismo (ao qual se filiou e acompanhou publicamente como acadêmico até 1934, quando renunciou a reitoria de Freiburg) pode ser pensada como uma tomada de posição humanística e, ao mesmo tempo, antidemocrática, “presa aos valores da tradição e as raízes representadas pelo Führer”, como explicam os franceses Luc Ferry e Alain Renaut, em Heidegger y los modernos.
Segundo esta explicação, o que Heidegger teria apreciado no projeto de poder nazista é um retorno ideal a um “universo pré-moderno”, capaz de estabelecer em nome da identidade e a tradição germânicas um limite impenetrável à avassaladora tecnificação da essência humana (entre cujos efeitos estava o fracasso da democracia, já que esta só reproduz a vontade de poder técnico sob a ilusão do voto).
Embora o entusiasmo tenha durado apenas até 1934, o interessante desta perspectiva é que, à sua maneira, volta a esboçar um dilema atual. É possível limitar o desenvolvimento tecnológico? Por acaso, o século XXI ainda não se pergunta o quanto a internet é positiva e o quanto é negativa? E se esse limite fosse mensurável e fixado em nome de uma tradição ou uma utopia, quem o estabeleceria e como o faria ser cumprido?
Desde já, nenhuma explicação sobre a relação entre Heidegger e o nazismo pode ignorar a contradição entre os caminhos abstratos do pensar e os trilhos de aço que levaram milhões de judeus aos campos de extermínio (sobre os quais o filósofo ficou sabendo depois de 1945). No entanto, afirmar que Heidegger foi antissemita é inconsequente com sua vida privada e pública.
Em tal caso, se o seu romance com Hannah Arendt, a brilhante filósofa judia que conheceu em Marburgo, quando era apenas uma estudante, costuma ser mencionado como prova de que Heidegger, evidentemente, não praticava nenhum “nazismo biológico” (como também é prova o seu vínculo tutelar com Leo Strauss, Karl Löwith e Emmanuel Levinas), sua recusa em viajar aos países ocupados, durante a guerra, como representante oficial do pensamento alemão marca suas claras reservas como “nazi político”.
Neste sentido, a retirada oficial de professores judeus em Freiburg, por exemplo, foi uma política racial da burocracia nazista sobre a qual Heidegger (apesar de seus, às vezes, comentários antissemitas caricaturescos, em Cadernos negros) nunca pronunciou uma palavra pública de apoio.
Encerrada a Segunda Guerra Mundial e extinto o Terceiro Reich, iniciaria um longo debate acadêmico (que durante alguns anos manteria Heidegger impedido de dar aulas nas universidades) sobre se era necessário “cancelar” ou não o autor de Ser e tempo como filósofo ou se, na melhor das hipóteses, ele mesmo deveria oferecer o mea culpa de rigor que lhe permitisse se reabilitar oficialmente como pensador.
Contra o mais previsível, no entanto, Heidegger manteve um sólido silêncio sobre sua etapa como simpatizante nazista que, com o correr dos anos, foi sendo preenchido com a aberta admiração de sua obra por parte de novos e agradecidos propagadores, em especial franceses como Jean-Paul Sartre, Jacques Lacan, Michel Foucault e Jacques Derrida, entre outros.
Em torno da mesma época, o pensamento de Heidegger daria uma guinada (ou um “retorno aprofundado ao mesmo”, como aponta Grüner) a uma versão mais ligada ao acontecimento poético do Ser e sua história, movimento com o qual retomará a pergunta pela técnica da forma como ainda circula entre os filósofos do presente.
Esse processo ocorreu durante os anos em que, proscrito nos âmbitos universitários, Heidegger deu sequência com seus seminários e conferências entre um público muito distinto: a burguesia de Bremen e Munique, cidades nas quais trabalhou graças à ajuda de velhos alunos, embora os empresários, os comerciantes e as donas de casa que compareciam em suas aulas nos clubes e salões não tinham a formação filosófica para compreendê-lo totalmente. Em 1953, apesar disso, Heidegger pronunciou, em Munique, uma de suas conferências mais importantes: A pergunta pela técnica.
Mas foi em 1955, em sua Messkirch natal, que Heidegger falou sobre a “serenidade”, um conceito com o qual ofereceu uma resposta própria ao avanço da engrenagem da tecnificação que marca, também até hoje, o paradoxo no qual se resvalam aqueles que denunciam com espanto uma sociedade digitalizada, diante da qual também não é viável uma atitude de negação ou fuga. Esta “serenidade”, explica Heidegger, requer uma “atitude de simultâneo sim e não ao mundo técnico com uma palavra antiga: desapego das coisas”, razão pela qual deveríamos deixar os objetos técnicos “dentro de nosso mundo cotidiano e ao mesmo tempo fora”.
É claro, a “serenidade” remete primeiro à disposição a um novo destino (que ao se dar ilumine “a essência do Ser”), que a uma prática concreta e calculada sobre os dispositivos que nos cercam. Enquanto isso, devemos assumir “serenidade diante das coisas e abertura ao mistério”.
Martin Heidegger não só tem rigorosos adeptos entre os mais populares autores da filosofia atual (em A sociedade paliativa, o novo livro de Byung-Chul Han, menciona-se inclusive seu conceito de “terra” como o que se oculta contra a “curiosa penetração calculista”), como até mesmo um marxista tão distante de suas ideias como Slavoj Žižek o menciona (também em seu novo livro, Como un ladrón en pleno día), tanto para destacar a importância de um pensar disposto a avançar contra si mesmo, como para recordar o que significa “o fim da natureza” nas mãos da biogenética.
A mesma trilha percorre autores argentinos como Eduardo Grüner e Oscar del Barco, capazes de iluminar os últimos debates em torno de Heidegger, embora também seja palpável em outras linhas de análises que, a partir das premissas de sua filosofia da técnica, oferecem ideias próprias para pensar o presente. É o caso de La imprevisibilidad de la técnica (UNR editora), de Margarita Martínez e Ingrid Sarchman.
À luz de discípulos díscolos de Heidegger, como o francês Gilbert Simondon e o alemão Peter Sloterdijk, as autoras traçam uma relação com as máquinas do século XXI que foge da “histeria antitecnológica” que se nega a assumir, precisamente sob o peso dos preceitos heideggerianos, que a natureza humana é “o resultado da técnica circundante”. A partir daí, suas discussões abordam assuntos tão distintos como o significado do termo “desconstrução” (cunhado por Derrida, antes de ressurgir nas disputas de gênero, mediante uma reapropriação dos conceitos de Heidegger sobre a linguagem técnica) e processos urbanos como a “gentrificação”, que permite entender como funciona esse “espectro da melancolia” que renova em chave vintage o fascínio pelos discos de vinil ou cassetes, objetos cuja extinção é tingida com os mesmos tons sépia com os quais o Instagram exibe nossa última selfie. E é novamente no território digital, então, que nossas imagens virtuais se (e nos) comprimem entre “o desvelamento e a ocultamento”.
No mais, a presença de Heidegger continua entre aqueles que apostam em pensar dentro das universidades como entre aqueles que, ao contrário, vão além das aulas. É por esta razão que, ainda que os acadêmicos que analisam os pormenores mais detalhados de sua obra continuem publicando e discutindo novos livros, ano após ano, ao mesmo tempo, seu nome reaparece tanto na obra de um novo autor como o chinês Yuk Hui, que em Fragmentar el futuro (Caja Negra) tenta “ir além do discurso de Heidegger sobre a tecnologia”, como nos artigos da eslovena Renata Salecl, cuja crítica à “obsessão pela eficiência”, em El placer de la trangresión (Ediciones Godot), é devedora das mesmas intuições tidas, há mais de cem anos, por um dos maiores e mais polêmicos filósofos do século XX.
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Heidegger e o “esquecimento do Ser”: um vigoroso pensamento contra a civilização tecnificada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU