29 Mai 2024
Vem ao nosso encontro Begonia Santa-Cecilia, artista navarra radicada nos Estados Unidos. Durante a pandemia, enviava suas aquarelas à sua amiga, a pensadora Silvia Federici (autora de, entre outros, Calibã e a Bruxa), e dessa troca de cartas saíram flores, reflexões, poemas recuperados e um livro, traduzido para o basco por Amaia Astobiza, que é uma verdadeira preciosidade.
Um livro íntimo e político, cheio de delicadas flores, pele e lutas, que em basco é intitulado Hitzak palmondo (Txalaparta) e em espanhol Yuyu, flores y poemas (La Oveja Roja).
Dentro do hotel está Silvia Federici, uma das pensadoras mais lidas de nosso tempo, e seu companheiro nos últimos cinquenta anos, o filósofo George Caffentzis (Nova York, 1945). Entre entrevistas - depois da nossa, vem uma para a China - e apresentações, conversamos, durante um chá, sobre lutas, mães, éguas - sim, não se surpreendam -, amor, fascismo, marxismo e futuro. Tudo junto, assim como a vida.
A entrevista é de Amaia Erenaga, publicada por Naiz, 24-05-2024. A tradução é do Cepat.
Você diz que nunca pensou que alguém se interessaria pelos seus poemas. E, agora, está em viagem com um livro de poemas e flores.
Não pensava que fossem bons. Gostava de escrever, mas não uma opinião elevada sobre os meus poemas. Eu comecei a escrevê-los com 15 anos.
Diz-se que ensaio e poesia andam juntos: Octavio Paz, Borges, Siri Hustved, Ida Vitale... a lista é longa, e também eram ensaístas e poetas.
É o que acontece quando você tem uma relação muito próxima com a escrita. Eu, aos 12 anos, escrevi meu primeiro livrinho e minha irmã, ao vê-lo, destruiu-o.
A poesia expressa os pensamentos mais íntimos, mas o íntimo também é política.
Penso que a maioria de meus poemas são políticos. Porque na política existem diversas formas de expressão: uma é a compreensão e a análise; a outra é a questão emocional em relação ao que acontece na realidade.
A relação social, o Estado e o político-fiscal também geram sentimentos e emoções, porque este é um mundo muito violento e injusto! Muitos de meus poemas vão contra a injustiça social e há também uma ironia desavergonhada contra a política oficial. Também há poemas íntimos.
Bom, e sexuais.
Existe um sexual, no sentido mais amplo. É A canção do incesto, sobre o corpo da minha mãe. Reflete o desejo que a menina sente pelo corpo da mãe. É algo que vivi não só como menina, mas também como mulher adulta, quando minha mãe estava morrendo.
Todos os dias lhe fazia massagens e assim recuperei essa relação com o corpo da minha mãe. Minha mãe passou a ser minha menina e dependia de mim, o que criava uma relação muito forte. Eu escrevi que minha mãe foi meu último grande amor.
O livro, de certa forma, reflete a relação entre amigas. Eu diria, inclusive, que reivindica o papel da amizade como rede para os cuidados.
Penso que, nos últimos 10-15 anos, o discurso sobre os cuidados se tornou muito importante. Na América Latina e nos Estados Unidos, as trabalhadoras domésticas têm travado uma grande luta e dizem: ‘sem nós, o mundo não se move’. O feminismo colocou o trabalho doméstico e o de cuidados sobre a mesa muito fortemente porque este entrou em crise.
Por exemplo, nos últimos anos, surgiram muitos livros sobre este tema, o último nos Estados Unidos é de Premilla Nadasen [Care: The Highest Stage of Capitalism], porque agora existe um interesse entre as mulheres, e não apenas entre as feministas, devido à grande crise do cuidado: os garotos cometem suicídio; os idosos estão abandonados, porque não há tempo para eles nesta vida precarizada, sem recursos e sem futuro. Há uma grande desumanização.
E penso surgiram muitos livros porque os cuidados são a questão do momento. Estamos vivendo em uma época que coloca a nossa vida em perigo, que subverte a condição fundamental que é ter uma vida decente, uma vida que não seja precarizada, uma vida sem um medo contínuo do futuro, uma vida em que o não produtivo seja valorizado, como a infância e os idosos. As crianças, bom, serão produtivas em algum momento, mas os idosos são cada vez mais maltratados.
Nos últimos anos, o feminismo ganhou força, mas, paralelamente, houve uma reativação da direita. Aí está o evento do Vox, em Madri, com toda a ultradireita internacional. Existe uma relação entre os dois fenômenos?
É isso: uma resposta. Por exemplo, na Argentina, nota-se que a primeira coisa feita por Milei foi atacar mulheres. Dá ao homem o direito a uma masculinidade dominante, sem que se envergonhe dela, e é por isso que é tão popular entre os jovens proletários, porque lhes devolve o seu poder masculino.
A resposta da direita é também uma resposta contra o feminismo, contra as mulheres que querem ser mais autônomas e que não querem ser submetidas, que se revoltam contra os trabalhos mal remunerados e a vida vivida na precariedade. Tudo isto faz parte de um novo disciplinamento social, porque não se pode disciplinar a reprodução social, sem disciplinar as mulheres.
Esta direitização planetária dá muito medo.
Estamos em um momento de expansão de relações capitalistas muito predatórias, muito deslocadoras e empobrecedoras, que precisam usar todas as suas ferramentas de repressão para poder impor uma política econômica que é devastadora e que praticamente destrói a possibilidade da vida com guerras e a redução dos recursos das pessoas. É a expressão de uma política econômica muito destrutiva, muito exploradora e muito deslocadora, porque também esvazia o território para abri-lo ao investimento em agricultura, mineração e petróleo.
Por onde as soluções deveriam passar?
É preciso criar um movimento muito forte. Dirijo-me sobretudo às feministas, a quem digo que precisamos de um movimento feminista de massas, forte e popular, que lute contra a guerra, contra a militarização e contra a violência do Estado. Temos de construir uma política da proximidade e comunitária.
Bom, estamos em um momento de crise de modelos, também na esquerda.
Também no marxismo. De Marx, estou interessada em sua crítica ao sistema capitalista, um sistema que nos mostrou como está baseado no trabalho humano e dá prioridade à acumulação de riqueza privada. Um sistema que é fiduciário, que desvaloriza a vida e destrói a nossa vida e o planeta. Eu penso que as novas gerações vão encontrar um planeta que será um horror.
É preciso fazer um trabalho de construção positivo, de repensar, criar e reconstruir de modo cotidiano a reprodução da vida, de modo que não nos isole, mas, sim, nos una, que nos dê um imaginário mais amplo de possibilidades. É necessário intensificar a nossa solidariedade para que impacte na política.
Devemos construir uma nova sociedade e, para isso, necessitamos de uma mudança sistêmica, mas também de um processo de experimentação contínuo. A luta deve ser experimentação, porque se constrói dia a dia, a partir do presente, mudando a relação entre nós, experimentando o que funciona e o que não funciona...
Nós, mulheres, também somos nossas maiores inimigas. As mantenedoras do patriarcado, como lhe disseram em alguma palestra, não é?
Ouça, isso é dito porque sabemos que somos fundamentais para a reprodução da vida e para as relações que sustentam a vida. E por isso dizemos que se a mulher muda, tudo muda. As mulheres revolucionárias são mais importantes para a mudança social do que o homem, porque estão em todas as partes: na saúde, na educação...
Há séculos, criamos a vida e também cuidamos dela. Não nos especializamos no trabalho de matar; nós nos especializamos em cuidar da vida. Eu considero que as mulheres são o sujeito fundamental da mudança social.
A propósito, uma última pergunta. Lendo o livro, vejo que muitos poemas foram escritos na Nigéria, em 1985, quando você deu aulas na universidade. O que aconteceu com você naquele ano?
Na Nigéria, em 85, aconteceram grandes conflitos, porque o Governo tinha que decidir se adoptava o ajuste estrutural, sob a forma de um acordo com o Fundo Monetário. George e eu estávamos na Nigéria, vivendo em duas cidades diferentes e distantes, como sempre [sorriso], e foi um ano muito intenso.
Depois, percebi que a Nigéria estava em processo de recolonização e que o Fundo Monetário estava criando um novo modelo: você tem a sua bandeira, sim, mas é completamente recolonizado, porque, ao aceitar a ajuda estrutural, não pode tomar decisões econômicas sem consultar o Fundo Monetário.
Vimos também o Delta do Níger, uma das sete maravilhas do mundo, completamente contaminado por petróleo. Meu companheiro escreveu um livro intitulado No Blood For Oil! Essays on Energy, Class Struggle, and War (2017), um dos muitos que escreveu.
Nossa relação se mantém há 50 anos, porque fizemos muitos trabalhos políticos juntos. Quando faço o meu trabalho feminista, ele sempre me acompanha, também lutamos contra a pena de morte, contra a repressão na Itália... Esse tem sido o cimento da nossa relação.
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“As mulheres são o sujeito fundamental da mudança social”. Entrevista com Silvia Federici - Instituto Humanitas Unisinos - IHU