01 Novembro 2024
Em uma sociedade hipertecnológica, percebe-se o risco de violar alguns aspectos fundamentais da experiência humana, até colocando em perigo a espécie. A Igreja pode ser um dos recursos para restituir espaço às relações “quentes” e fundamentais, mas a condição é não ter esqueletos no armário e garantir uma transparência efetiva. O papa se mostrou incerto: em alguns casos, parecia decidido e coerente, enquanto em outros, estava muito mais inseguro, senão contraditório.
O artigo é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por publicado por SettimanaNews, 31-10-2024.
Onde estão a alma e o coração do pontificado do papa Francisco, mais de 11 anos após seu início (13 de março de 2013)? A pergunta permeou os dois dias que a SettimanaNews dedicou ao tema junto a seus leitores (Albino, Bergamo, 25-26 de outubro).
Sessenta participantes, uma meditação bíblica (irmã Elsa Antoniazzi), duas palestras principais (Daniele Menozzi, Vincenzo Rosito) e cinco abordagens diferentes (Anita Prati, Antonio Torresin, Riccardo Cristiano, Francesco Sisci, Stefano Feltri) convergem em torno de uma constelação de palavras: dom do Espírito à sua Igreja, símbolo e serviço de unidade, testemunho por vezes discutido e divisivo, desafio evangelizador.
Herdeiro pleno do Concílio Vaticano II, Francisco desenvolveu a raiz evangélica e bíblica da assembleia. Segundo D. Menozzi, a parábola histórica da década encontra ali sua origem. Ou melhor, em uma das duas almas que construíram o texto e o evento conciliar.
Diante do desafio da evangelização no mundo contemporâneo, uma primeira linha considerava que a Igreja havia cometido um erro ao se opor à legítima autonomia do homem reivindicada pela modernidade, uma reivindicação justa, mas com um limite preciso dado por alguns referenciais morais universais. Uma segunda linha partia da mesma consideração, mas sublinhava o fundamento evangélico e uma escolha explícita pelos pobres. Paulo VI interpretou ambas até optar pela primeira com a encíclica Humanae vitae.
Existem valores morais “não disponíveis” que determinam um julgamento sobre comportamentos morais e sobre legislações civis. No caso específico, sobre os meios contraceptivos dentro da chamada à fecundidade. Na mesma linha e com maior convicção, se posicionaram o magistério de João Paulo II e de Bento XVI. O depósito magisterial do passado e o direito natural se tornam o ponto de referência para todos, crentes ou não. A Igreja pede aos cristãos que se comprometam também na política para que tais referenciais se traduzam em leis positivas por parte dos estados.
Uma linha que poderia ser indicada como neocristianismo, segundo a reflexão de Jacques Maritain. Com João Paulo II, o princípio de referência principal, ou seja, a liberdade religiosa, torna-se, após a queda dos regimes do Leste, o direito à vida desde a concepção até a morte natural.
Um esquema que encontra sua interrupção na consciência das corajosas renúncias de Bento XVI. Elas indicam o limite último e definitivo.
Por isso, o serviço petrino iniciado por Francisco se reconecta à outra linha conciliar. Privilegiando os “sinais dos tempos” e o Evangelho, coloca os temas éticos em um papel secundário, mas não irrelevante. É mais importante a coerência com o Evangelho e sua mensagem de misericórdia em relação aos “valores não negociáveis”, às reivindicações ultimativas aos legisladores.
A Igreja participa com seu patrimônio evangélico da busca comum dos povos e de suas sociedades. Nessa situação, cabe a todos os batizados identificar as modalidades de um novo anúncio do Evangelho, cuja compreensão, ligada aos sinais dos tempos, encontra uma fundamental cifra interpretativa na figura evangélica do “bom samaritano”. No incessante desenvolvimento das vicissitudes humanas, uma releitura criativa do Evangelho contribui para a credibilidade da mensagem cristã. “Sinais dos tempos” e Escritura não anulam, mas dão uma nova colocação ao depósito magisterial e ao direito natural.
Vincenzo Rosito identificou o elemento mais representativo do pontificado na dimensão processual, da qual é emblema o sínodo e a sinodalidade. “Na cultura social do povo de Deus, a processualidade parece ter entrado como uma disposição necessária para manter unidas a história das coisas, a história das pessoas e a história de Deus.”
Não os documentos da tradição como textos escritos, nem os eventos como iniciativas realizadas em si mesmas, mas os textos “culturais” (tudo que produz sentido) e os sinais (dos tempos) focalizam a atenção sobre a vivência do povo de Deus e acompanham a consciência crente e o serviço ao Evangelho. “A Igreja está entrando no paradigma histórico-hermenêutico da processualidade, depois de ter atravessado e compreendido o significado eclesial dos ‘textos’ e dos ‘sinais’. Em outras palavras, de uma Igreja que comunica a si mesma e consigo mesma através de textos e sinais, estamos passando a uma Igreja que inaugura e produz processos”.
Passar da estaticidade ao dinamismo, da forma completa e aquela em andamento, da formalização da vivência à atenção ao seu “fazer”: isso parece ser o novo paradigma reconhecido pelo papa Francisco.
Rosito especificou quatro declinações da processualidade. Em primeiro lugar, a processualidade como correspondência, ou seja, um exercício de atenção na empreitada comum. Como acontece ao caminhar na montanha, onde cada um está atento ao outro e à paisagem. A processualidade como ajuste, ou seja, como sensibilidade em relação a realidades em transformação, como adaptação a uma situação dinâmica. A processualidade como improvisação.
Acontece na música, assim como com os artistas de rua, que o início de um instrumento ou de uma pintura seja retomado e desenvolvido criativamente por outros. Uma cadeia de palavras e gestos da comunidade cristã que não se somam simplesmente, mas se tornam figura e testemunho. Por fim, a processualidade como negociação. Que a confissão esteja desaparecendo ou que as uniões estáveis estejam substituindo a forma matrimonial não são fenômenos que se resolvem com a depreciação, mas que pedem para ser compreendidos e “negociados”.
Assim, os clássicos “estados de vida” dos crentes (casados, ordenados, consagrados) devem ser entendidos como espaços de aprendizado mais do que como campos de identificação. A novidade da empreitada é expressa no documento da Comissão Teológica Internacional (A teologia na vida e na missão da Igreja), que fala de um substantivo de novo cunho: “A sinodalidade [...] indica o modo específico de viver e agir da Igreja povo de Deus que manifesta e realiza concretamente seu ser comunhão ao caminhar juntos, ao se reunir em assembleia e ao participar ativamente de todos os seus membros na missão evangelizadora” (n. 6).
Identificados alguns elementos fundamentais do magistério de Francisco — não os únicos, em particular em relação à teologia — permanece a percepção da grande riqueza de materiais que compõem o conjunto de seu ensino.
Com a particularidade de que, por vezes, o papa não segue a tradicional hierarquia de autoridade dos textos. Das quatro encíclicas, devem ser destacadas Fratelli tutti e Laudato si’. Entre as milhares de palestras (213 somente neste ano), destacam-se, por exemplo, aquelas anuais à cúria e aquelas ao corpo diplomático. São 41 as constituições apostólicas, e entre elas Episcopalis communio (sobre o sínodo; 2019), Veritatis gaudium (sobre a teologia; 2017) e Vultum Dei quaerere (sobre a vida religiosa contemplativa; 2016).
Nas sete exortações apostólicas, encontramos a referência fundamental de Evangelii gaudium (2013), Amoris laetitia (2016) e Querida Amazonia (2020). As cartas são 337. As cartas apostólicas chegam a 103. De particular relevância são aquelas dedicadas aos abusos, como Vos estis lux mundi (2023 – 2019), Come madre amorevole (2016), ou a dedicada à nova forma de reconhecimento de santidade (Maiorem hac dilectionem; 2017), ou aquelas voltadas para a compreensão e prática litúrgica, Desiderio desideravi (2022) e Traditionis custodes (2021).
Os motu proprio são 80 e entre eles está a Lei Fundamental do Estado Vaticano (2023). Há 658 mensagens, entre as quais se destacam as para o Dia da Paz. São milhares as homilias, audiências, orações e meditações. De particular importância são as viagens. Fora da Itália, são 47, enquanto as realizadas na Itália são 31, começando pela programática a Lampedusa (2013).
Se o papa Francisco pode ser considerado um dom do Espírito para a Igreja, é necessário, no entanto, perceber as consistentes críticas (algumas pertinentes, muitas impertinentes) dirigidas a ele. Faz parte da experiência pastoral a percepção de um bloqueio significativo de dissensos que surgem e crescem no mundo das redes sociais e nas resistências entristecidas dos contextos mais tradicionalistas.
No que diz respeito à teologia, as críticas muitas vezes se utilizam de nomes improváveis e de autoridades bastante discutíveis (uma pequena equipe de prelados se presta para a empreitada). Os pontos de maior consistência dizem respeito às indicações sociais (os pobres, os imigrantes, os marginalizados) e ao diálogo inter-religioso (particularmente com o islamismo). No lado conservador, os argumentos mais comuns são as disposições litúrgicas (os limites precisos para a liturgia pré-conciliar) e os temas morais (a discussão acalorada sobre os sacramentos para os divorciados recasados, a bênção para casais homossexuais, etc.).
No contexto cotidiano da vida paroquial, não são os conteúdos que funcionam, mas sim os estereótipos e os símbolos. Antonio Torresin, pároco em Milão, lembrou disso. "Não se reconhece mais uma autoridade indiscutível e única, e a voz do papa se confronta e se confunde com outras autoridades." Poucos leem os textos, como acontecia também com seus predecessores. O estereótipo funciona e sempre é divisivo.
O conservador se aplicava a Bento XVI, enquanto o progressista se refere a Francisco. Quando se supera a barreira da insignificância — a mais comum — "um certo efeito divisivo e de confusão deve ser reconhecido, talvez mais ainda do que nos papados anteriores." Sua figura funciona do ponto de vista simbólico: quando aparece na varanda da basílica e saúda a multidão, quando prega na capela durante a pandemia, alcançando milhões de ouvintes que apreciam seu convite à confiança, quando na Praça São Pedro vazia, marcada pela escuridão e pela chuva, ele se torna aquele que intercede. Mas a compulsão da mídia rapidamente apaga toda memória e acompanha na insignificância até mesmo o papa.
Críticas fundamentadas foram feitas em três pontos específicos: as mulheres, a cúria e os abusos. "Os homens da Igreja — disse Anita Prati — nunca se esquivaram do exercício de descrever, definir e catalogar a mulher e o feminino.
Oscilando de maneira ambígua entre os dois polos Eva e Maria, ora estigmatizaram a mulher como janua diaboli, ora celebraram e exaltaram sua dimensão virginal e materna." Apesar da sincera atenção de Francisco e da partilha com as mulheres de alguns elementos do poder de jurisdição (as nomeações femininas nas cúrias), para o restante, tudo ainda está por decidir.
E a conclusão do sínodo universal parece confirmar isso. Ao falar sobre as mulheres, às mulheres e com as mulheres, mesmo percebendo por vezes o precioso deslocamento que sua interlocução produz, o papa não parece sair da contradição entre a exaltação mística do feminino e a recusa de um reconhecimento público da autoridade das mulheres. "Na 'Igreja de Francisco' não há espaço para um verdadeiro diálogo com as mulheres: a Igreja que Francisco dizia querer sinodal, permanece, de fato, um 'papado'".
A reforma da cúria foi uma das preocupações mais insistentes. O peso dos repetidos escândalos, tanto financeiros quanto midiáticos (Vatileaks e afins), o julgamento negativo sobre o excesso de italianos no sistema burocrático e a irritação em relação às camarilhas que garantiam carreiras não transparentes acompanharam uma série numerosa de disposições. O "conselho dos 9" cardeais nasceu para isso.
As diretrizes estratégicas da constituição apostólica Preadicate evangelium (2022) colocam a cúria no lado da evangelização, mais do que na gestão, no serviço ágil e pronto, em vez de autorreferente, na garantia de fluidez entre o papa e os bispos (conferências episcopais), em vez de um filtro pesado. E, no entanto, a ausência de decretos aplicativos precisos produziu uma desestruturação do instrumento e uma progressiva impotência. As custosas perícias propiciaram uma secretaria da economia que, de fato, bloqueia qualquer decisão. O empenho nos meios de comunicação viu o proliferar dos escritórios de imprensa e a irrelevância da secretaria.
Além disso, o papa tem, de fato, um próprio circuito midiático construído com as mais de 300 entrevistas concedidas, que não encontram harmonização no conjunto. Em alguns dicastérios, as fusões previstas parecem não funcionar. O enfraquecimento da Secretaria de Estado tirou coerência do todo, favorecendo o "recurso ao soberano" que, no final, confirma o bloqueio do sistema. A tudo isso se somam as decisões contraditórias sobre o Vicariato de Roma, que parece estar à deriva. Se o perigo inicial era o de uma cúria corrupta, o atual é o de uma cúria ineficiente e inútil.
O tema dos abusos foi abordado brevemente por Stefano Feltri em relação à credibilidade da Igreja no Ocidente. Não enfrentar o problema de forma coerente e sistemática significa permanecer em uma ambiguidade penalizadora e inconclusiva. Não se trata de subestimar o caminho percorrido, especialmente com a elaboração do motu proprio Vos estis lux mundi, nem de ignorar o sistema de censura implementado com a mudança na consideração dos abusos, não apenas como pecado, mas como crime.
Trata-se, em vez disso, de entender que os sistemas estatais ocidentais não estão mais dispostos a reconhecer à Igreja uma total autonomia nesse aspecto. Em outras palavras, existe uma obrigação de denúncia às autoridades civis que não está sendo cumprida. Para a cultura difundida no Ocidente, as soluções eclesiais internas não garantem o que prometem e se tornam instrumentos para preservar a instituição das consequências reputacionais, sancionatórias, organizacionais e financeiras necessárias.
O abuso não é uma questão de “maçãs podres”, mas requer mudanças necessárias no sistema eclesial (desde a formação de clérigos até o controle nas paróquias e a responsabilidade civil dos responsáveis). Mesmo aplicando integralmente o motu proprio e com uma perfeita coerência dos responsáveis (bispos e semelhantes), o fato é que, para a justiça civil, há um culpado não sancionado. Se não se chega a uma gestão transparente e adequada dos abusos, surgem algumas consequências. Por um lado, o abuso é invocado por razões de luta política interna (veja os casos de Pell, Orlandi e várias fundações) por motivos de poder; por outro lado, a Igreja perde uma oportunidade valiosa diante das emergências do Ocidente.
Em uma sociedade hipertecnológica, percebe-se o risco de violar alguns aspectos fundamentais da experiência humana, até colocando em perigo a espécie. A Igreja pode ser um dos recursos para restituir espaço às relações “quentes” e fundamentais, mas a condição é não ter esqueletos no armário e garantir uma transparência efetiva. O papa se mostrou incerto: em alguns casos, parecia decidido e coerente, enquanto em outros, estava muito mais inseguro, senão contraditório.
Anotações interessantes chegaram de como a área do Oriente Médio (Riccardo Cristiano) e da Ásia (Francesco Sisci) veem o papa Francisco. O papa introduziu novidades importantes no diálogo com o Oriente Médio. O elemento de maior reconhecimento é o documento de Abu Dhabi sobre a fraternidade universal (2019).
Com base na tradição sufi, o reitor de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyib, assinou um texto que elimina qualquer justificativa para o uso da religião como arma de ataque e justificativa do terrorismo, mas que também permite uma convergência significativa das duas fés em uma visão teocêntrica. Cristiano lembrou que, após o encontro do papa com o líder xiita Ali Sistani, surgiu a possibilidade de que o reitor do Cairo pudesse assinar novamente o documento junto com o papa e Sistani. Essa operação teria coroado um encontro extraordinário, mas foi impedida pelo recrudescimento da guerra no Iraque e pelos suspeitas políticas.
A legitimidade e a providencialidade da pluralidade de fés encontram pouco acolhimento nas comunidades cristãs do Oriente Médio, ainda aprisionadas no sistema do “millet”, de minorias garantidas pelos poderes locais. Elas estão pouco dispostas a se arriscar no desafio de uma cidadania compartilhada. A recente abertura de um vicariato para a Península Arábica, para as áreas pacíficas e mais prósperas do Oriente Médio, é uma indicação do possível diálogo com os outros protagonistas da geopolítica local em apoio ao Levante médio-oriental (Síria, Gaza, Líbano, Israel etc.), ainda devastado pela escuridão da guerra.
Eucaristia e confissão
No que diz respeito à Ásia, Francesco Sisci destacou a feliz escolha estratégica de olhar com atenção para um continente que, embora tenha apenas 2-3% de católicos, conta com 60% da população mundial. Libertar o papado da tutela europeia permite uma nova atenção à Ásia, tanto na forma diplomática do acordo com a China para a nomeação de bispos, quanto para uma participação direta no diálogo entre povos e religiões.
O catolicismo possui em sua essência alguns elementos de grande atração para as massas asiáticas. Por mais estranho que possa parecer, a eucaristia e a confissão são conteúdos que podem estimular o diálogo com essas tradições. O anúncio de um Deus que se “faz comer” para atestar a fraternidade e garantir a vida divina toca a expectativa de uma fé encarnada na vida cotidiana. A possibilidade da atestação do perdão estimula uma tradição que, nos ritmos da modernidade, sepultou as formas tradicionais de expiação da culpa perante a comunidade.
Sisci acrescentou uma nota ao referir-se às denúncias papais contra o sistema econômico-financeiro que emergiram no debate. Essas denúncias não afetam as centrais financeiras e econômicas mundiais (Feltri), que, de fato, estão mais atentas às observações sobre a preservação da criação. Na Ásia, a China observa com interesse as denúncias papais (Sisci), embora corra o risco de uma manipulação indevida.
Na meditação inicial, a irmã Elsa Antoniazzi, comentando o trecho clássico de Mc 8,27-34 (Tu és o Cristo), não o usou para justificar o papado, mas o tornou funcional à abertura dos corações à conversão exigida pelo anúncio da paixão. Pedro fala por si e por todos, convidando cada um a não impor limites à misericórdia, à inclusão e ao escândalo da quênosis, da paixão e da morte.
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Francisco depois de Francisco. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU