18 Outubro 2024
"A autodestrutiva intervenção estadunidense no Iraque em 2003 propiciou ao Irã uma influência muito grande sobre o Iraque; a intervenção fracassada dos petromonarcas na grande revolta síria de 2011, certamente não inspirada por eles, fortaleceu a aliança entre Síria e Irã; o enorme investimento iraniano no Líbano e no Iêmen reduziu esses dois países a territórios controlados pelos pró-iranianos do Hezbollah e dos Houthis - aqui, para evitar a vitória dos Houthis, os sauditas intervieram militarmente, uma escolha de alto custo e em grande parte mal sucedida", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 12-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
No Líbano, notou-se uma certa contenção dos bombardeamentos urbanos, pelo menos nos últimos dias; os mercados, no entanto, fizeram com que o preço do petróleo caísse um pouco depois de jornais de renome terem escrito que Israel teria garantido aos estadunidenses que não atacaria centrais nucleares e instalações petrolíferas no Irã, mas apenas alvos militares.
A preocupação, porém, vem das palavras do ministro das Relações Exteriores iraniano, que declarou suspensas por enquanto as negociações indiretas com os Estados Unidos através de Omã devido à situação regional. Os Estados Unidos gostariam de discutir não só o tema nuclear, mas também o expansionismo iraniano na região. Isso exige esclarecer os termos de uma guerra evidente, mas da qual pouco se fala.
Essa é a guerra a que se deveria pôr um fim com um acordo de paz para prefigurar a resolução de outros conflitos. Referimo-nos à guerra entre o Irã e o mundo árabe. De fato, muitos se perguntam onde estão, e com quem, os petromonarcas árabes.
Trata-se da guerra oculta, mas bastante evidente, entre Irã e árabes. Esse ódio tem séculos, para muitos remontaria aos tempos em que os árabes islamizaram a Pérsia, evento ao qual a grande civilização persa teria respondido mudando o Islã a partir de dentro.
Discursos demasiado grandes, mas que encontraram impacto na rivalidade histórica entre otomanos e persas, que fizeram do outro Islã, o xiita, a sua religião oficial. E o conflito, não muito diferente daquele entre bizantinos e persas, tornou-se islâmico - tornando-se mais tarde ainda mais profundo com Khomeini e a sua exportação da revolução. Exportação para onde? Para o mundo árabe, muitos responderam. O conflito religioso se sobrepôs ao histórico, entre impérios.
A nova fase do conflito, pelo menos oficialmente, começou com a agressão contra o Irã revolucionário (xiita) pelo Iraque (sunita) de Saddam Hussein. Foi a primeira Guerra do Golfo, ocorrida na década de 1980. Causada pelo enorme preço pago para manter a guerra longe das suas fronteiras, os aiatolás criaram a sua própria rede de milícias armadas no exterior para manter a guerra longe das suas fronteiras; em qualquer caso, foi uma exportação de conflitos, na base da qual estava a “miliciarização” das comunidades árabes xiitas.
O fosso entre os dois campos aumentou e os aiatolás iniciaram um trabalho constante de difamação das lideranças árabes (sunitas), trazendo algumas delas para a sua esfera de influência. A autodestrutiva intervenção estadunidense no Iraque em 2003 propiciou ao Irã uma influência muito grande sobre o Iraque; a intervenção fracassada dos petromonarcas na grande revolta síria de 2011, certamente não inspirada por eles, fortaleceu a aliança entre Síria e Irã; o enorme investimento iraniano no Líbano e no Iêmen reduziu esses dois países a territórios controlados pelos pró-iranianos do Hezbollah e dos Houthis - aqui, para evitar a vitória dos Houthis, os sauditas intervieram militarmente, uma escolha de alto custo e em grande parte mal sucedida.
A ameaça nuclear iraniana tornou-se a coroação desse projeto que, talvez nascido como defensivo, tornou-se ao longo do tempo ofensivo, hegemônico, imperial. Um grande jogo “político”, aquele pelo controle da “questão palestiniana”, transformou os seus desenvolvimentos num instrumento de enfraquecimento ou fortalecimento de um campo ou de outro, culminando na conhecida reaproximação do Hamas com o Irã, que não é recente.
Existia uma ideologia revolucionária, um plano imperial, uma visão apocalíptica em Teerã? Tem-se falado muitas vezes aqui, sem esconder o fato de que houve uma reação agressiva do lado saudita, especialmente quando se sentiam fortes; mas voltar a isso nos afastaria daquilo que se querer ressaltar hoje.
Nestas horas tão delicadas, não poderia o Irã escolher ser o primeiro a manifestar a sua determinação em pôr fim a essa longa fase bélica entre árabes (sunitas) e iranianos (xiitas), com uma série de renúncias?
A primeira: a renúncia ao uso de milícias armadas em território inimigo (árabe) considerado território a ser conquistado, em troca de um efetivo envolvimento dos xiitas nos vários sistemas árabes. Basta pensar em quantas dezenas de bilhões de dólares foram gastos para armar o Hezbollah para entender a enormidade da diferença do ponto de vista do iraniano comum.
A segunda: a renúncia à supremacia nuclear em troca de uma regulação do rearmamento. Os sauditas, que há anos pedem a Washington que desenvolva um seu programa nuclear, poderiam considerar possível uma frutuosa parceria se Teerã desse esse passo: trata-se de uma espada de Dâmocles que paira sobre as suas cabeças há anos, condicionando as suas escolhas de política internacional.
Neste momento as indicações vindas de Teerã parecem opostas. Dois dos mais altos expoentes da política iraniana, o ministro do exterior e o presidente do Parlamento, conseguiram desembarcar em Beirute para ditar a agenda ao Hezbollah: lutar até ao fim.
Isso aliviaria a pressão militar sobre Teerã, segundo a análise realizada por setores do regime iraniano, mantendo forte pressão sobre Israel a partir do Líbano. É um cálculo, mas certamente não tranquiliza as coroas árabes sobre as intenções regionais de Teerã. Nessa leitura iraniana, de fato, desaparece o fato de a comunidade xiita libanesa, hoje constituída por deslocados internos sem moradia fixa, viver ou sobreviver graças à proximidade e à solidariedade dos libaneses cristãos e sunitas. O tema é removido.
Infelizmente, porém, lemos que a questão nuclear está agora sendo levantada como uma nova forma indispensável de dissuasão, à qual o regime deveria recorrer urgentemente. Isso é defendido sobretudo por expoentes da ala ultraconservadora, para os quais o iminente ataque israelense significaria que apenas equipar-se imediatamente com a bomba daria a Teerã um poder de dissuasão.
Uma fatwa (sentença religiosa) de Khamenei de anos atrás empenharia o Irã a utilizar a força nuclear apenas para fins civis. Agora, esses ambientes ultraconservadores dizem que chegou a hora de declarar que não é mais válida aquela fatwa e realmente ter uma bomba, para assustar e deter o inimigo. Não é difícil argumentar que isso poderia não acontecer, mas é certo que isso também aumentaria o fosso entre Irã e monarquias árabes.
O caminho que Teerã tem pela frente, até agora inexplorado, é aquele que parece descartado: renunciar ao poderio nuclear em troca da remoção das sanções estadunidenses e da prevenção oposta dos árabes, por um lado; e renunciar às milícias, porque as terras árabes não são terra de conquista, em função defensiva ou ofensiva depende do ponto de vista de cada um (a minha impressão é que essa escolha foi vista pela maioria dos Pasdaran como ofensiva), pelo outro.
Não seria uma rendição, mas sim um novo começo, uma autêntica e urgente mudança de paradigma – o que talvez o idoso Khamenei não possa fazer. Se de fato a exportação da revolução fracassou, é preciso repensar a cultura e os métodos da revolução.
Não é por acaso que a escolha dos conservadores de criticar o presidente reformista Pezeshkian de ser o Gorbachev de Teerã não leva em conta que o caminho de Gorbachev não tinha alternativas, o que lhe faltou foram os aliados. Talvez um mundo árabe que sabe que deve mudar rápida e profundamente, um Gorbachev iraniano não o deixaria murchar.
Os livros dos sonhos às vezes são muito simples, às vezes muito complexos. Neste caso parece que o problema não seria simplesmente salvar a cara, dados os enormes benefícios que o livro dos sonhos traria, mas a complexidade de renunciar à ideologia revolucionária, privilegiando uma vocação à autodefesa, adaptando-a aos tempos atuais. É de fato evidente que mesmo para as monarquias do Golfo seria uma questão de redefinirem a si mesmas e o sentido das suas alianças. Mas Khamenei tem 85 anos – 1985 para o saudita Mohammad bin Salman é o seu ano de nascimento.
No entanto, é o Irã que precisa de urgência para agir, em primeiro lugar para reencontrar uma relação mínima com o povo, e não apenas para sobreviver. Para Bin Salman, estamos numa época de enormes mudanças que à sua maneira ele está enfrentando; para o Irã, estamos na urgência de uma mudança radical, ou seja, arquivar a exportação da revolução, virar a página. Impossível?
No entanto, foi Khamenei quem disse recentemente que o seu mundo deveria confiar no soft power. Aquele discurso desapareceu, ofuscado pela sua aparição num sermão da sexta-feira segurando uma metralhadora.
Assim, o recente tour regional de diplomatas iranianos às monarquias árabes do Golfo buscou a neutralidade dos países do Golfo, e não um acordo. No entanto, a perspectiva existe desde que o Irã e Arábia Saudita restabeleceram relações diplomáticas há dois anos. A ideia era avançar por etapas. Talvez ter a coragem de reconhecer que os tempos exigem uma aceleração antes impensável seria uma prova de sabedoria, que os anciãos deveriam demonstrar aos jovens.
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Irã-Árabes: a guerra oculta. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU