28 Agosto 2024
"Era a madrugada de ontem quando Israel, causando poucos danos aos civis, preveniu a vingança do Hezbollah pelo assassinato de um de seus líderes militares, Shukr, que foi morto com um míssil em um prédio no sul de Beirute, juntamente com alguns civis. Israel atingiu muitas posições de lançamento inimigas. Pouco depois, o Hezbollah anunciou que se tratava apenas da primeira fase da “vingança”, considerada legítima porque o inimigo havia atacado em uma área civil e porque a organização miliciana nega que Shukr tenha planejado o lançamento que atingiu crianças drusas que jogavam futebol no Golã anexado por Israel. O partido falou de um erro", escreve Riccardo Cristiano, jornalista, em artigo publicado por Settimana News, 26-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A verdadeira notícia que chega do Líbano nas últimas horas é que lá não existe apenas o Hezbollah, existe também o outro Líbano, aquele que não é nem khomeinista nem miliciano, mas radicado na cultura cosmopolita daquela terra.
É o Líbano representado pela delegação que chegou esta manhã ao Vaticano para se encontrar com o secretário de Estado, o Cardeal Pietro Parolin, e depois com o Papa Francisco, e em seguida participar na Capela Paulina da celebração eucarística reservada para eles e presidida por Francisco.
Depois do que aconteceu ontem em seu país, esse grupo de cristãos também representa outras pessoas de diferentes credos que não aceitam a ideia de que seu país exista em função de um projeto todo miliciano, que reduz o Líbano plural apenas à sua própria voz e vontade.
Trata-se de uma delegação de parentes das vítimas da explosão no porto de Beirute em 4 de agosto de 2020. A principal infraestrutura do país se transformou em fumaça devido a uma explosão quase atômica, causando 240 mortes, milhares de feridos e um número elevadíssimo de deslocados do bairro cristão de Jemmaizeh, que se tornou inabitável.
Desde então, o magistrado competente foi essencialmente impedido pelo governo de realizar investigações, e os inqueridos, incluindo muitos ministros, muitas vezes se recusaram a participar. Tudo foi encoberto. Foi um enorme depósito clandestino de explosivos, presente contra toda lei no porto comercial controlado informalmente, mas notoriamente pelo Hezbollah, que causou a explosão.
Tudo aconteceu justamente no momento em que o Tribunal Internacional deveria proferir a sentença de condenação de alguns milicianos do Hezbollah pelo assassinato do ex-primeiro-ministro, o sunita Rafiq Hariri. E de fato o Hezbollah foi a principal força a obstruir a investigação e a ameaçar os parentes das vítimas.
A visita tem um sabor exclusivamente pastoral e de proximidade com a dor sentida pelos parentes das vítimas. Mas o contexto em que ela ocorre constitui uma tribuna muito importante para aquele Líbano que não consegue encontrar uma voz. O que aconteceu ontem confirma, pela enésima vez, que o Hezbollah confiscou a política de defesa nacional do Líbano, cujo governo não teve nenhuma participação nos eventos.
Era a madrugada de ontem quando Israel, causando poucos danos aos civis, preveniu a vingança do Hezbollah pelo assassinato de um de seus líderes militares, Shukr, que foi morto com um míssil em um prédio no sul de Beirute, juntamente com alguns civis. Israel atingiu muitas posições de lançamento inimigas. Pouco depois, o Hezbollah anunciou que se tratava apenas da primeira fase da “vingança”, considerada legítima porque o inimigo havia atacado em uma área civil e porque a organização miliciana nega que Shukr tenha planejado o lançamento que atingiu crianças drusas que jogavam futebol no Golã anexado por Israel. O partido falou de um erro.
Portanto, continuava o comunicado de ontem, essa primeira fase de vingança será seguida por mais duas. Mas ontem à noite, em um discurso transmitido pela televisão, o líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, ao final de uma rocambolesca tentativa de apresentar a ação como um sucesso, disse três coisas importantes: a demora foi uma vantagem para a resistência, porque estressou o inimigo; e depois acrescentou que, se os resultados militares alcançados forem considerados positivos, a vingança terminaria aqui. Portanto, as outras duas fases desapareceram e, embora o Primeiro-Ministro Netanyahu tenha dito que, para ele, o caso não termina aqui, fontes diplomáticas informadas citadas na imprensa israelense dizem que a questão está encerrada para ambos. Mas é preciso entender por que, contradizendo a si mesmo, Nasrallah também disse que esperou até hoje para dar tempo às negociações do cessar-fogo em Gaza para produzir um resultado positivo. Depois, com as novas exigências feitas por Israel, acrescentou ele, ficou claro que não haverá acordo e, por isso, ele decidiu agir. Mas não tinha esperado para estressar o inimigo?
Os palestinos parecem estar cada vez menos relacionados com as ações do Hezbollah. E, além disso, o Irã também ainda não realizou sua anunciada “vingança” pelo assassinato do então líder do Hamas, Ismail Hanyeh, morto durante uma visita oficial a Teerã em 31 de julho passado. Mas, embora todos os dias alguém reitere que a vingança de Teerã seria iminente, algum outro também ressalta que é preciso dar tempo às negociações, esperar. Muitos dizem que Teerã não tem pressa em se envolver em problemas. E a espera, ao que parece, é o verdadeiro resultado das negociações para Gaza. Haveria progressos, dizem alguns, mas nenhum resultado.
Voltando ao discurso de Nasrallah, é preciso dizer que em nenhum momento mencionou o Líbano, os libaneses; citou o Irã e seus aliados do eixo de resistência que inclui as milícias khomeinistas no Iraque, na Síria e no Iémen. A política externa do país também parece ter sido confiscada. O resto do Líbano não existe.
Agora, no entanto, o resto do país pode ser visto na delegação que chega ao Vaticano. Seu símbolo é certamente William Noun, irmão de Joe Noun, o bombeiro que morreu em uma tentativa desesperada de conter as chamas.
A história do caminho do diálogo islâmico-cristão começou em Beirute, com o Sínodo sobre o Líbano proposto por João Paulo II, que na sua exortação apostólica pós-sinodal escreveu: “Gostaria de insistir sobre a necessidade de os cristãos do Líbano manterem e reforçarem seus laços de solidariedade com o mundo árabe. Convido-os a considerar sua inserção na cultura árabe, para a qual tanto contribuíram”.
Foi uma grande novidade, que levou a outros documentos importantes e, especialmente, ao Magistério de Francisco, que mudou muito nas relações com o Islã com o histórico documento de Abu Dhabi, que diz: “A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Essa Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o fato de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam”.
Esse Islã, personificado pelo xeque da Universidade Islâmica do Cairo, Ahmad Tayyeb, que assinou junto com o papa, é o oposto daquele personificado pela visão miliciana do Hezbollah, feita de amigos e inimigos. E acredito que as vítimas de Beirute, todas as vítimas, não apenas as do porto, se reconhecem plenamente nesta outra frase do documento: “O diálogo, a compreensão, a difusão da cultura da tolerância, da aceitação do outro e da convivência entre os seres humanos contribuiriam significativamente para a redução de muitos problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais que afligem grande parte do gênero humano”.
É por isso que o encontro de hoje é a outra notícia que chega de um Líbano que não se rende.
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O outro Líbano no Vaticano. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU