05 Março 2024
"Para Hilarion e a comissão ortodoxa, 'a declaração Fiducia supplicans suscitou uma reação inequivocamente muito negativa por parte de nossa comissão. Estávamos unanimemente convencidos de que este documento refletia um sério afastamento dos ensinamentos morais cristãos'. Tanto mais que os casais homossexuais são considerados juntamente com os casais irregulares, aplicando a ambos os mesmos critérios. Fala-se de casais do mesmo sexo como pessoas que precisam da bênção da Igreja para serem curadas e edificadas", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 04-03-2024.
Dar as bênçãos a casais do mesmo sexo, do nosso ponto de vista, está em radical contradição com o ensinamento moral cristão... Essas novas decisões da Igreja Católica contradizem as normas morais fundamentais": é a síntese da avaliação da comissão bíblica e teológica apresentada no sínodo da Igreja Ortodoxa Russa em 20 de fevereiro de 2024.
As palavras são de Hilarion de Budapeste, ex-presidente do departamento de relações exteriores do Patriarcado e líder da comissão, em uma entrevista à RIA Novosti (29 de fevereiro). O documento está agora nas mãos do patriarca Kirill e do sínodo que decidirão como usá-lo.
Não me recordo de uma avaliação desse tipo por parte da Igreja Ortodoxa Russa sobre um texto - uma declaração - de um dicastério da Curia Romana. Justificá-la em nome da interação com a Igreja Católica, como faz Hilarion, é surpreendente, visto que a Igreja Russa há muito tempo se retirou de qualquer diálogo teológico para se limitar a um confronto sobre ações e atitudes comuns, chamado de "diálogo estratégico". E isso está em evidente contraste com as outras igrejas ortodoxas. Suspeita-se que a razão da avaliação russa esteja mais fora do que dentro do texto.
À Fiducia supplicans (18 de dezembro de 2023), o documento ao qual estamos nos referindo, dedicamos uma dezena de artigos para o impacto positivo ou crítico que causou nas diversas Igrejas Católicas, nacionais ou continentais. O objetivo da declaração era duplo. Por um lado, confirmar uma abertura pastoral e evangelizadora.
Como pode a Igreja unir a clareza do ensinamento com a proximidade pastoral às pessoas em suas dificuldades? Este desafio marcou todo o ministério papal de Francisco. Por outro lado, estabelecer um limite ao impulso de algumas episcopados para traduzir em ritos e formas litúrgicas a abertura ao diálogo pastoral com pessoas homossexuais.
As resistências ao documento surgiram por razões culturais e do ethos difundido (é o caso do episcopado africano) ou pelo temor de um passo pastoral que arraste consigo uma mudança dogmática. No texto vaticano, as distinções entre "bênção descendente" e "bênção ascendente" e, em particular, entre "bênçãos litúrgicas e ritualizadas" em relação a "bênçãos espontâneas e pastorais" respondem à intenção de utilizar todas as potencialidades do ato de bênção, enfatizando repetidamente a incompatibilidade da convivência homossexual com o sacramento do matrimônio.
Em nenhuma expressão da declaração e do subsequente comunicado à imprensa (4 de janeiro) há espaço para afirmar um impulso da bênção para um "sacramental ritualizado" e muito menos para qualquer aproximação ao matrimônio.
Falando à assembleia plenária do Dicastério para a Doutrina da Fé (26 de janeiro), o Papa Francisco disse: "Eu gostaria de enfatizar brevemente duas coisas: a primeira é que essas bênçãos, fora de qualquer contexto e forma de caráter litúrgico, não exigem uma perfeição moral para serem recebidas; a segunda é que quando um casal se aproxima espontaneamente para pedi-las, não se abençoa a união, mas simplesmente as pessoas que a solicitaram".
Para Hilarion e a comissão ortodoxa, "a declaração Fiducia supplicans suscitou uma reação inequivocamente muito negativa por parte de nossa comissão. Estávamos unanimemente convencidos de que este documento refletia um sério afastamento dos ensinamentos morais cristãos".
Tanto mais que os casais homossexuais são considerados juntamente com os casais irregulares, aplicando a ambos os mesmos critérios. "Fala-se de casais do mesmo sexo como pessoas que precisam da bênção da Igreja para serem curadas e edificadas.
Então, pode-se abençoar o casal e não cada indivíduo individualmente. É verdade que a declaração expressa repetidamente e de formas diferentes a preocupação de que tais bênçãos não devam ser ritualizadas, que sejam espontâneas e não se aproximem do casamento. Por isso, são dados numerosos conselhos concretos para tornar essas bênçãos diferentes do casamento.
O documento assegura que permanece inalterado o ensinamento da Igreja sobre o casamento como união de um homem e uma mulher, abertos à procriação. Mas, ao mesmo tempo, essa prática de abençoar casais homossexuais, do nosso ponto de vista, está em radical contradição com o ensinamento moral cristão".
A prova contrária é que nada se diz sobre a confissão, o arrependimento e a luta contra o pecado.
A observação ignora a reiterada afirmação da distância entre convivência homossexual e casamento, coloca no plano sacramental o que não é e remove a oportunidade de uma abordagem pastoral a situações de particular complexidade. Como se toda bênção fosse inevitavelmente ritual e litúrgica. Sem perceber e reconhecer a dívida para com uma cultura difundida na Rússia que justifica graves e sistemáticas violências contra os homossexuais.
Nos Fundamentos da concepção social pode-se ler: "a Igreja considera que aqueles que propagam um estilo de vida homossexual não devem ser admitidos ao ensino, a atividades educativas ou de outro tipo em contato com crianças ou jovens, bem como ocupar cargos de liderança no exército ou em instituições de reeducação" (cap. 12, n. 9).
Não uma palavra foi dita pela Igreja para defender a dignidade dos homossexuais do internamento, das violências, da exclusão social sistemática. Como aconteceu no documento sobre a inviolabilidade da vida humana (publicado em 27 de dezembro de 2023), no qual a absoluta adamantina da defesa da vida era subsequente à perseguida e eficaz influência para derrubar um projeto de lei em defesa das mulheres vítimas de violência doméstica. O pecado de sodomia torna-se o pecado mais grave e imperdoável. Transforma-se em crime até aparecer como o termômetro de toda a civilização.
Se não se trata de problemas teológicos, a que atribuir o interesse da direção ortodoxa russa à questão? Duas são as razões expressas por Hilarion (que, graças a esta intervenção e a um documento anterior contra Constantinopla, volta ao jogo da sucessão a Kirill). O primeiro: "vemos o que está acontecendo nas comunidades protestantes: tudo começou da mesma maneira, com algumas bênçãos espontâneas e não ritualizadas e depois algumas comunidades protestantes logo introduziram o ritual da bênção de casais do mesmo sexo". Por bondade sua, ele reconhece "não acredito que a Igreja Católica chegará a isso".
O segundo: "Tudo isso é percebido como um sinal muito perigoso, como uma concessão por parte da direção da Igreja Católica a esses ambientes liberais que tentam ditar sua própria agenda". Há algo não dito que diz respeito à chamada "teoria de gênero", transformando uma espera prudente da Santa Sé em uma adesão indireta e subserviente. Enquanto as convicções pessoais de Francisco são conhecidas. Repetidas também em 1º de março em uma conferência internacional: "O perigo mais terrível é a ideologia de gênero, que anula as diferenças e torna tudo igual; apagar a diferença é apagar a humanidade. Homem e mulher, pelo contrário, estão em uma tensão fecunda".
Outra razão para enfatizar a distância de Fiducia supplicans é desviar a atenção da grave comprometimento da Igreja russa com a agressão beligerante à Ucrânia. Diante da evidente distância que se produziu em relação ao mundo cristão inteiro, encontrar um tema para defender os "valores tradicionais" é uma maneira de poder assumir um papel de julgador e não apenas de julgado. Até porque os "valores tradicionais" são a plataforma comum com o poder político de Putin.
Acredito que também se possa falar da oferta de aliança com hierarquias católicas como as polonesas ou húngaras particularmente sintonizadas nesses assuntos. Mas acima de tudo, a provável intervenção pública por parte do sínodo russo se tornará um relançamento para uma perseguida hegemonia teológica sobre o mundo ortodoxo, não apenas eslavo, mas também helênico.
Após a decisão do parlamento grego de legalizar os casamentos homossexuais, a Igreja grega se opôs claramente, mas o russo I. Yaklimehuk, vice-presidente do departamento de relações exteriores, destacou a fraqueza da Igreja que não foi capaz de impedir uma violação flagrante dos princípios morais tradicionais.
Por fim, é difícil ignorar a pretensa missão da Igreja russa. Assim se expressou o patriarca Kirill em 20 de fevereiro passado: "A Igreja Ortodoxa Russa é essa força freio - digo isso com total responsabilidade - que testemunha praticamente sozinha, com coragem e decisão, a imutabilidade dos mandamentos estabelecidos por Deus que estão na base da existência humana.
É precisamente a defesa intransigente da verdade de Cristo, a defesa da verdade e a denúncia das mentiras que tornam nossa Igreja tão odiosa para aquelas forças que atuam como construtoras de uma ordem mundial pervertida instigadas pelo "príncipe das trevas". Hoje, é dever da Igreja apoiar de todas as maneiras possíveis aqueles que defendem nossos valores espirituais e morais e que, nas várias etapas históricas, defendem o direito de nosso povo a um desenvolvimento espiritual e cultural soberano e original".
Em relação a esses clarins de trombeta e batidas de tambor, é muito mais crível o grupo de 400 padres que pediram ao governo que devolvesse à mãe o corpo martirizado do dissidente Alexei Navalny e a variada multidão que acompanhou a breve cerimônia litúrgica de seu funeral.
Diante do juiz, ao retornar à Rússia em 2021, ele disse: "O fato de ter me tornado crente é motivo de muitas piadas na Fundação para a Luta contra a Corrupção (fundada pelo próprio Navalny). Lá a maioria das pessoas é ateia e eu também era. Mas agora acredito e isso me ajuda porque tudo fica mais fácil... (a Bíblia) nem sempre é fácil de seguir, mas no geral eu tento".
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Kirill - Bênçãos de homossexuais: manipulações interessadas. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU