02 Março 2024
"Nesse sentido, o debate sobre a família-sexualidade e o Papa não é somente uma questão moral, mas faz parte da grande luta da defesa do direito dos pobres de viver dignamente e pela igualdade humana de todas pessoas. Desqualificar o Papa e outras lideranças cristãs do mundo em torno de questões de moral sexual é parte de uma estratégia dos grandes “gestores” do capitalismo de desqualificar a luta deles em favor dos pobres", escreve Jung Mo Sung, teólogo, cientista e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo no PPG em Ciências da Religião.
No artigo anterior sobre a identidade de católico e o Papa Francisco, eu me perguntei: o que leva um católico-católico, aquele que tem orgulho de ser católico (que se diferencia de outros cristãos por devoção à Nossa Senhora e por ver o Papa como chefe da sua Igreja), a criticar publicamente o Papa? Um dos principais motivos não deve ser a defesa do Papa aos pobres e imigrantes, pois a Igreja sempre praticou e ensinou ajudar os pobres, mas a sua visão moral e pastoral de abrir as portas das comunidades cristãs às pessoas e famílias “não tradicionais”. Por exemplo, permitir que os presbíteros possam abençoar relacionamentos homossexuais.
O diálogo dos que podemos chamar de católicos de cristianismo de libertação com os setores da igreja católica que são contra essa postura do Papa é importante, não só pela questão moral-sexual, mas porque a direita mundial está aproveitando esse conflito para fortalecer a aliança entre esses moralmente conservadores com os neoliberais, que querem destruir o que ainda existe do papel social e econômico do Estado. Assim, consolidar a aliança entre cristãos moralmente conservadores e os neoliberais contra o chamado o “mal” do mundo de hoje: os que defendem os direitos das mulheres e da comunidade LGTBQ+ e, ao mesmo tempo, são comunistas, os que defendem os pobres.
Nesse sentido, o debate sobre a família-sexualidade e o Papa não é somente uma questão moral, mas faz parte da grande luta da defesa do direito dos pobres de viver dignamente e pela igualdade humana de todas pessoas. Desqualificar o Papa e outras lideranças cristãs do mundo em torno de questões de moral sexual é parte de uma estratégia dos grandes “gestores” do capitalismo de desqualificar a luta deles em favor dos pobres.
Para resgatar católicos que caíram nessa armadilha e estabelecer um diálogo e aliança em torno da missão da Igreja no mundo de hoje, precisamos ter argumentos pastorais e teológicos. Pois, na lógica da identidade de católicos, a linguagem sociológica (p. ex., o gênero não é biológico, mas é uma construção social) não tem força valorativa que tem a linguagem religiosa-teológica. O que faz uma pessoa se sentir bem com a sua identidade de católico é a sua pertença a uma comunidade religiosa e esse tipo de comunidade se define como religiosa por compartilhar a mesma linguagem religiosa.
Assim, um tema que nos permite estabelecer um diálogo com católicos conservadores é o da missão da Igreja hoje. Com católicos que não estão preocupados com essa missão e só querem criticar o Papa ou a luta dos pobres, não é possível dialogar e é só perda de tempo. Ponto. Diálogo só é possível com pessoas que têm a mesma preocupação, um mesmo problema ou missão.
A missão da Igreja, nesse diálogo, não é libertar os pobres ou defender os direitos do LGTBQ+. Essa é uma linguagem “secular”, moderna e progressista, tudo o que os conservadores não gostam e, de uma certa forma, estão certos. Teologicamente, a missão da Igreja é anunciar e testemunho o amor de Deus no mundo. Isto é o evangelho! Aceito esse ponto comum, podemos caminhar no diálogo.
Nesse processo, é fundamental distinguir que o amor de Deus e as leis que as sociedades e instituições religiosas, como igrejas, elaboram para que a vida social seja possível. Por exemplo, em situações em que o estupro (violência do forte contra o fraco na forma de sexo) é “normal”, ou há um caos social na organização familiar, leis são importantes para defender a ordem social que permita viver. Mas, na medida em que a sociedade e a história caminham, surgem outros “clamores” das vítimas pedindo liberdade e Deus envia os seus profetas. Isso é a história da Bíblia: manter a memória de como o amor de Deus atua e tem atuado no mundo e, aprendendo com essa tradição, atualizarmos a ação do Espírito de Deus, que é Amor.
Como dizia o Paulo apóstolo, a lei é necessária, como pedagoga, mas o que salva é a fé e o amor. Isto é, as regras morais familiares e sexuais foram necessárias e uteis como pedagogas, mas na medida em que a história caminha e surgem novos clamores, clamores esses que Deus ouve e chama profetas para lhes responder, a Igreja atender. É em nome do amor de Deus que o Papa Francisco defende os direitos pobres de viver dignamente e também das pessoas e grupos sociais que estão ou foram marginalizadas na sociedade. Antes de definir legalmente – processo que vai ser longo – o direito dessas de pessoas de pertencer plenamente à Igreja e participar do sacramento do matrimônio, o que o Papa ensina é que eles e elas não estão fora do amor de Deus. Pois, o Amor e a misericórdia de Deus são infinitos.
O principal argumento teológico para esse embate pode ser: o que nos deve mover não é a lei (seja do mercado, do Estado ou da Igreja), mas sim o Amor de Deus e a compaixão para com quem sofre. Com quem aceita esse princípio, podemos e devemos dialogar.
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A identidade de católico, o Papa e o cristianismo de libertação versus a direita. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU