Assis - Itália
Entre os dias 19 e 21 de novembro ocorreu o evento online Economy of Francesco (Economia de Francisco), construído a partir das provocações do Papa Francisco, especialmente do diagnóstico humanitário elencado em sua Encíclica Laudato Si’. Junto às inquietações, o Papa convidou jovens economistas do mundo todo para ativar uma nova narrativa em um mundo de catástrofes naturais e crises socioeconômicas e políticas provenientes do capitoloceno-antropoceno.
Sou Guilherme Tenher Rodrigues, graduado em Ciências Econômicas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS e estava inscrito no evento internacional.
O texto aqui apresentado é um compilado de comentários pessoais a respeito do evento Economy of Francesco, com algumas impressões e sugestões para aprofundamento dos temas abordados durante as conferências.
Os primeiros momentos do evento Economy of Francesco recordaram a trajetória do chamamento do Papa Francisco, ocorrido em maio de 2019, aos jovens economistas, ativistas e empresários de todo o mundo para (re)pensar e agir de acordo com os princípios de uma nova economia onde o ser humano é colocado no centro, juntamente com a natureza e as demais vidas sustentadas por ela.
Desde o ano passado, grupos de estudo, eventos, webinars e uma série de outras conferências digitais (inter)nacionais foram criados em/com diferentes países a partir da metodologia proposta pela organização do evento a qual engendrou a observação e análise do mundo contemporâneo por meio de doze vilas temáticas: administração e dom, finanças e humanidade, trabalho e cuidado, energia e pobreza, agricultura e justiça, negócios e paz, mulheres pela economia, CO2 e desigualdades, lucro e vocação, negócios em transição, vida e estilos de vida, policies e felicidade. O evento principal estava agendado para o final de março deste ano. Todavia, dada a chegada da pandemia de coronavírus, o encontro que seria presencial foi postergado para o mês de novembro e se tornou integralmente virtual.
Sendo assim, no dia 19 de novembro, jovens de todo o planeta se reuniram para debater, apresentar seus estudos e ações, bem como vislumbrar possibilidades a partir da exposição de vários conferencistas a respeito desta nova economia realmada, frugal e humanista. Economy of Francesco, conforme alertado no início da transmissão, não pode ser resumida ao evento deste mês, mas a um processo global e incessante de transformação das engrenagens da economia capitalista, financeirizada, digitalizada e neoliberal vivida pela população mundial nas últimas décadas.
A mensagem inicial intitulada “Ouvir o grito dos mais pobres para transformar a terra” nos lembra da essência desta nova economia. Economia esta que resgata a fraternidade e inclui aqueles marginalizados pelos sistemas mercantis e financeiros amalgamados pelas políticas neoliberais , bem como intensamente atingidos com o espalhamento da pandemia pelo globo. Para o Brasil, esta mensagem se torna especialmente provocadora, visto que, na semana anterior ao evento, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE divulgou que o país possuía 52 milhões de brasileiros vivendo na pobreza e 13 milhões na extrema pobreza. O que estas pessoas falam sobre a maneira com que a economia e a política são conduzidas?
Stefano Zamagni apresentou alguns pontos centrais para analisar a situação de pauperização brutal enfrentada no mundo e no Brasil. Para o economista, há um problema em considerar o valor como um conceito puramente mercantil. Se apenas atrelado à funções monetárias, exclui-se diferentes sociabilidades envolvidas nos processos de produção, comercialização e distribuição de bens e serviços, como redes de colaboração e economia com princípios solidários e circulares.
Ademais, é preciso atentar à maneira com que as empresas e a cultura corporativista como um todo se relaciona com assuntos ambientais, isto é, grandes corporações, majoritariamente com enorme potencial poluidor, não são sequer punidas por sistemas jurídicos de proteção ambiental, enquanto a população de baixa renda, por trabalhar em condições precárias para estas companhias ou simplesmente morar nas proximidades das atividades produtivas destas corporações (mineração, por exemplo) sofrem diretamente e relativamente mais do que as outras camadas sociais com a degradação ambiental.
Zamagni também alerta à falta de regulação ética para com o sistema financeiro e a deturpação das funções essenciais dos governos em promover sociedades mais igualitárias e minimizar os custos sociais dos processos econômicos. A defesa da democracia, a promoção de sistemas de proteção social e a centralidade das pessoas nos circuitos político-econômicos são demandas essenciais para a transição da antiga para a nova economia do século XXI.
Esta fala remete às suas várias entrevistas e artigos publicados no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Aqui destacamos o seguinte trecho da entrevista “Precisamos de transformações radicais e não simples reformas” :
“Nesse momento histórico, as reformas não são mais suficientes, são panos quentes. É preciso o que o Papa chama de estratégia transformacional. Não basta propor alguns bilhões para a família, aquela é uma reforma. É preciso ressuscitar o conceito fundamental de João Paulo II, que não foi chamado em causa nem sequer pelos católicos, ou seja, as estruturas de pecado. Primeiro, é preciso transformar a estrutura do sistema fiscal, tirando impostos do trabalho e dos produtores e aumentando os impostos sobre as rendas improdutivas.
A segunda transformação diz respeito a escolas e universidades. Devem ser transformadas em locais de educação, não apenas de instrução e formação.
Terceiro, é preciso ter a coragem de transformar o estado de bem-estar em bem-estar da comunidade. Por fim, a economia verde que, tecnicamente, é possível. Mas nada se transformará, se antes não se agir sobre os valores com um novo humanismo”.
Apesar da exposição do novo e alarmante panorama de pauperização da humanidade e da degradação sem precedentes da natureza, não se explorou com profundidade a necessidade de uma renda básica incondicional como resposta às mutações climáticas e à concentração de renda nacional e global. Talvez podemos contribuir neste ponto com as entrevistas e palestra concedidas pelo professor Gaël Giraud sobre este tipo de renda. Conforme a matéria da revista IHU Online, “Existem as elites que enriqueceram nos últimos 40 anos e há o resto da população que não aproveita nada das riquezas”.
Para Giraud, não podemos atrelar a pobreza apenas com as mudanças sistêmicas no mercado de trabalho ocasionados pelo desenvolvimento tecnológico, isto é, explicar estas mutações a partir de um argumento puramente schumpeteriano. Para o economista “o real problema que já atinge e poderá atingir ainda mais a humanidade nas próximas décadas é a crise ecológica contemporânea e é por causa dos seus efeitos que se faz necessário implementar um programa de renda universal. "Não podemos refletir sobre uma renda básica universal sem entrarmos no nosso contexto mundial da crise ecológica mais grave que já vivemos na história da humanidade".
O primeiro dia de evento foi marcado pela abordagem transdisciplinar na fala de profissionais de diferentes áreas, estimulando a necessidade de uma economia com interfaces em assuntos sociológicos e antropológicos. Trazemos como exemplo as falas da organização de combate à miséria chamado Movimento ATD Quart Monde sobre a correlação entre degradação ambiental e pobreza, as vicissitudes da lógica da competição, da acumulação e da centralidade do lucro; a fala do Bispo Domenico Sorrentino sobre a “economia a serviço da vida” e não vice-versa; e a exposição do Cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson sobre o trabalho e profissões dignas, a coisificação do ser humano e o verdadeiro papel social dos negócios.
O artista Lau Kwok Hung, convidado para expor sua arte no espaço principal do evento, teve como objetivo a escultura de vários rostos, lembrando-nos de quem e para quem esta nova economia se constitui. Sua arte remete ao artigo de Giorgio Agamben chamado “Quando a casa está queimando”. Nele, Agamben diz que:
“O rosto é o que há de mais humano, o homem tem um rosto e não simplesmente um focinho ou uma cara, porque mora no aberto, porque no seu rosto se expõe e se comunica. Por isso, o rosto é o lugar da política. O nosso tempo impolítico não quer ver o próprio rosto, mantém-no à distância, mascara-o e cobre-o. Não deve haver mais rostos, mas apenas números e cifras. O tirano também não tem rosto".
Assim, a proposta da Economia de Francisco é a restauração simbólica de todos os rostos deformados pela brutalidade dos sistemas econômico e político contemporâneos, seja pelo Mercado, pelo caos nos sistemas democráticos, pela pandemia ou pelos demais desastres ambientais, como a recente intensificação das queimadas em diferentes biomas e biotas.
Após as apresentações iniciais, o evento se dividiu em diferentes conferências que abordavam temas como a economia da paz, reconversão industrial, modelos de negócios para uma economia humana, insegurança alimentar, entre outros. Aqui, iremos nos aprofundar na conferência intitulada “Inteligência Artificial: abordando a desigualdade socioeconômica?” com o conferencista Paolo Benanti, professor de teologia moral, bioética, neurociência e ética de tecnologias na Pontifícia Universidade Gregoriana e membro da Pontifícia Academia para a Vida.
A exposição teve sua introdução marcada pelo uso acelerado e difuso da inteligência artificial (IA) em atividades cotidianas, como consultas médicas, processos de contratação de funcionários pelas empresas e até mesmo nos sistemas educacionais. Para Benanti, a forma como se arquiteta a produção e consumo da IA faz com que esta tecnologia se torne um vetor de aceleração das desigualdades sociais. Assim, dada a sua construção e funcionalidade, a IA pode ser considerada um ator social e não apenas uma ferramenta tecnológica.
Ademais, a IA é engendrada por engenheiros, pessoas, que desenvolvem estes sistemas através de comandos alimentados por diretrizes muito “humanas”. Esta inteligência, hoje, “é potentemente operativa, mas imatura em termos éticos”. Com esta frase, Benanti remetia várias vezes durante sua exposição à necessidade de uma “algorética” (algorethics) dentro dos sistemas de IA. Segundo Paolo, as inteligências artificiais necessitam de uma “bula” esclarecendo o que foi colocado nos códigos, como o algoritmo foi alimentado e quais os “efeitos colaterais” do uso desta tecnologia, suas inclinações e “pontos cegos”.
Com relação aos algoritmos implementados nas IA’s, Benanti apresenta outro fator de desigualdade social. Para que esta tecnologia funcione, seu sistema algorítmico precisa ser alimentado com dados, de preferência muitos dados, pois os softwares trabalham com mais eficiência quanto mais informações tiverem e mais complexas forem as equações. Todavia, alerta Benanti, há poucos que podem ser considerados “Datalord”, isto é, aquele responsável pela propriedade dos dados produzidos e muitos que sãos os “dataproducers”, produtores destes dados. A relação monopolística entre produção e detenção de dados provoca a ascensão de grandes companhias tecnológicas (big techs), assim como a falta de mecanismo jurídicos eficazes no controle ético do uso destas informações que, na maioria dos casos, possuem caráter pessoal.
A economia política por trás destas companhias ou plataformas pode ser estudada com profundidade a partir da exposição do Prof. Dr. Marcos Dantas, realizada em formato de live no IHU Ideias da quinta-feira dia 19 de novembro.
Ademais, o jornalista Eugênio Bucci concedeu uma entrevista para o sítio do IHU em agosto deste ano chamada “As big techs conseguiram um feito inacreditável: são empresas monopolistas em escala global”. Nela, Bucci argumenta que:
“Entre os efeitos nocivos mais imediatos destes monopólios, Bucci destaca a ingerência política e econômica das grandes empresas no cenário global, como as ‘possibilidades de manipulação dos processos decisórios da democracia’ e a drenagem de recursos do mercado publicitário, o que levou veículos da imprensa tradicional à falência. Outra implicação ainda mais grave é a impossibilidade de controlá-los através de uma legislação internacional. ‘Quando o vício do monopólio toma corpo num só país, e se é um país livre e democrático, a legislação nacional tem meios de contê-lo e de proteger a livre concorrência. No entanto, quando o monopólio é uma deformação global, as legislações nacionais não o alcançam. É esse o nosso problema agora. Como combater, com legislações nacionais, um monopólio global? Como deter esses dois supermonopólios globais? Por onde agir? Pela União Europeia? Pelo Congresso dos Estados Unidos? Por acordos multilaterais? Como fazer? Difícil responder. Difícil saber como agir’”.
Em um artigo publicado em fevereiro deste ano para o sítio do IHU, Benanti relata que “O Vale do Silício [...] é povoado por visionários hiper-reducionistas. A diferença deve sempre ser reiterada: a máquina funciona, o ser humano existe. Talvez, como nunca antes, o desenvolvimento tecnológico precise do pensamento teológico e filosófico para não esquecer a diferença entre ‘algo’ e ‘alguém’, entre ‘funcionar’ e ‘existir’”.
O Instituto Humanitas Unisinos também está promovendo o XIX Simpósio Internacional IHU Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida em tempos de pandemia. O evento contará com conferencistas da Zurich University (Suíça), London School of Economics and Political Science (Inglaterra), National University of Singapore – Singapura, entre outros. A programação terá início dia 30 de novembro de 2020. Para mais informações sobre este evento, acesse aqui.
O segundo dia (20/11) começou com três grandes conferências. Uma delas foi dedicada à leitura coletiva da Encíclica Fratelli Tutti de Papa Francisco, lançada em outubro deste ano. A outra conferência abordou a responsabilidade socioeconômica e ações globais e territoriais através das contribuições de Leonardo Boff e Padre Vilson Groh.
O assunto da terceira sala virtual tangenciava conceitos sobre generatividade, bens relacionais e economia civil. Para o professor Mauro Magatti da Universidade Católica de Milão, para se pensar em generatividade e economia civil, precisamos passar por essencialmente quatro transições. São elas:
• Transição na formação, baseado na urgência da transformação e valorização de novos conceitos que canalizem a energia criativa e condições de potencialização da vida nos processos de aprendizagem nas escolas e na Academia;
• Transição na organização, inspirado nas formas de arquitetar os negócios e empresas com o intuito de estimular o conhecimento compartilhado e demais talentos;
• Transição comunitária, como espaço de experimentação e liberdade de ação para novos projetos sociais e intensificação da produção de bens relacionais;
• Transição ambiental, como bem comum e caminho para preservação de todas as formas de vida, assim como o espaço continuidade de projetos e ligações intergeracionais;
Segundo a professora Consuelo Corradi da Universidade de Lumsa (Itália), estes assuntos devem ser abordados a partir do olhar feminino. A experiência feminina do mundo é evidenciada quando se pensa em processos econômicos generativos. De acordo com Corradi, a mulher, por estar no centro da geração da vida, possui familiaridade com a realidade, entende o esforço e o trabalho por trás da sustentação da corporeidade da vida humana, assim como são as mulheres que normalmente operam em atividades essenciais para o cuidado e formação de pessoas (cuidadoras, enfermeiras, professoras, entre outras). Desta forma, segundo ela, não há como desenvolver uma economia civil e regenerativa sem antes endereçar nossos problemas com a desigualdade e violência de gênero. Este pensamento coaduna com as visões da economista Alessandra Smerilli quando esta, através de pesquisas, apresenta a diferença entre cooperação e competição e como as mulheres possuem maior afinidade com a primeira. Processos colaborativos não só fazem parte da economia civil e da criação de bens relacionais, como são imprescindíveis para a materialização destes.
O chamamento de Corradi também remete ao manifesto de Vandana Shiva para o ecofeminismo. Segundo Shiva, “o ecofeminismo é colocar a vida no centro da organização social, política e econômica. As mulheres já a fazem porque é deixada para elas a tarefa do cuidado e da manutenção da vida.”
Por fim, o economista Leonardo Becchetti provocou os jovens a pensar em uma economia civil que passe a definir o homem para além do homo economicus, da maximização do lucro, da noção de valor apenas pelo Produto Interno Bruto (PIB) e da relação dual entre o Mercado e as demais instituições. “Somos plurais e nos organizamos também desta forma”, relata ele. “Não devemos negligenciar as inúmeras instituições criadas através da cidadania ativa e de negócios socialmente responsáveis”, conclui.
Castor Bartolomé Ruiz, doutor em Filosofia, argumentou a relação entre a pandemia e o homo economicus e como este último se transformou em um conceito falacioso. Segundo seu artigo publicado do sítio do IHU, Castor relata que:
“Esta pandemia do coronavírus está colocando a humanidade perante muitos desafios, porém, entre eles, talvez estejamos sendo testemunhas de uma grande crise civilizatória que está fazendo tremer os alicerces estruturais e culturais construídos pelo capitalismo nos últimos quatro séculos. Há muitas décadas que desde diversas perspectivas do pensamento crítico vinham se levantando vozes que nos alertavam sobre a insustentabilidade a médio e longo prazo deste modelo civilizatório baseado na acumulação indefinida de riqueza em poucos oligopólios, que exige uma predação ad infinitum do planeta terra. Este modelo impôs a cultura do homo economicus como uma espécie de nova religião naturalizada. A cultura do homo economicus, muito mais que um projeto econômico ou político, tornou-se um modo de subjetivação através do qual as atuais gerações globalizam a cultura da mercantilização da vida e a descartabilidade econômica de tudo que se toca”.
Para mais informações sobre economia civil, recomenda-SE a publicação número 183 dos Cadernos IHU Ideias de Stefano Zamagni. Ademais, a partir das contribuições deste autor, o prof. Dr. Lucas Henrique da Luz concedeu ao IHU um artigo onde, segundo ele, ao ouvir Stefano falar sobre “’Economia de Comunhão e outras formas de Economia Social: Limites, Possibilidades e Perspectivas’, abordando alternativas econômicas diversas e a economia civil (esta última título do livro que escreveu em parceria com o professor Luigino Bruni), comecei a me questionar e busquei pensar junto com meus alunos do curso de gestão de pessoas, se é possível, mesmo atuando em empresas tipicamente capitalistas e excessivamente de mercado, praticar algo que se aproxime do que Zamagni diz, quando afirma que estas alternativas diferenciadas de economia tem em comum uma tentativa (e por que não) uma necessidade de humanizar o mercado”.
A conferência sobre finanças e humanidade com o ganhador do prêmio Nobel Muhammad Yunus problematizou as reais intenções contemporâneas dos sistemas financeiros. As finanças devem ser utilizadas como facilitadoras/mediadoras de trocas ou um meio e fim para acumulação de riqueza?, questiona ele. A religião da maximização do luro opera de forma insensível e insensata dada as condições humanas e ambientais enfrentadas pelas pessoas, em especial com a chegada da pademia, alerta o ativista.
As abusivas relações de dívida para com as pessoas físicas, a exclusão da população pobre nos circuitos de crédito, a interpretação equívoca de que as pessoas são movidas apenas pelo próprio interesse e a negligência aos movimentos coletivos e processos de colaboração são apenas alguns exemplos da falta de ética por trás das ações das grandes instituições financeiras. E são estas mesmas, alerta Yunus, que financiam indústrias com alto potencial poluidor, como a extração de petróleo ou a produção de plástico, por exemplo.
A conversa de Yunus com os jovens foi majoritariamente pautada nas dimensões teleológicas e éticas das finanças, sem muitos comentários acerca da algoritmização e digitalização como pontos importantes para entender a força do sistema financeiro atual.
A relação com finanças e as tecnologias da informação podem ser estudadas na entrevista “Finança digitalizada: interação entre tecnologia e economia está reestruturando o sistema financeiro” com Edemilson Paraná. Assim como a entrevista “A financeirização e as mutações do capitalismo” de Yann Boutang para o sítio do IHU.
Recomenda-se também a leitura das seguintes entrevistas concedidas para o IHU : “O capital financeiro é determinante na formação do déficit habitacional”, com Karina Macedo Fernandes; “O poder do sistema financeiro e a insustentabilidade das desigualdades sociais”, com Ladislau Dowbor; e “Bens e serviços públicos são os novos ativos financeiros”, com Denise Gentil.
A sala virtual sobre trabalho e cuidado contou com a participação de jovens e dos conferencistas Jennifer Nedelsky (Faculdade de Direito de Osgoode – Canada) e o economista Paolo Foglizzo. A exposição breve dos conferencistas abordou a importância da comunidade e o verdadeiro papel do trabalho para a construção de um tecido social mais sustentável.
A professora Nedelsky focou sua fala no projeto de uma proposta de diminuição da carga horária do trabalho formal para que, no tempo disponível, as pessoas exerçam atividades de cuidado com a comunidade e sua respectiva população em situação de vulnerabilidade social. Novamente, a renda básica incondicional não foi mencionada como uma forma de viabilizar o projeto.
O diálogo entre os conferencistas e os jovens economistas não problematizaram perguntas como: O que é trabalho formal hoje, após a flexibilização e fragilização das leis trabalhista? Como exercer o cuidado em meio à plataformização do trabalho? E as propostas para o sul global? Como a ideia de Nedelsky seria exercida para o Brasil, que historicamente possui um mercado de trabalho com altos índices de informalidade? Como os projetos de cuidado auxiliariam na sistemática pobreza multidimensional e concentração de renda dos países latinos? Como transpor este projeto no contexto da pandemia?
O Instituto Humanitas Unisinos buscou contribuir nos últimos meses para o debate acerca das mutações no mundo do trabalho, como concebê-lo em meio à pandemia e à crescente digitalização dos processos econômicos e sociais. Entre os meses de outubro e novembro ocorreu o evento Renda Básica Universal. Para além da justiça social. Todas as palestras oriundas deste debate podem ser acessadas aqui.
Também recomenda-se as seguintes entrevistas que gravitam pelos assuntos de trabalho, desigualdade e multicrise: "A expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital", com Ricardo Antunes; "Pandemia, transformações nas cidades e no trabalho: o mundo em movimento e o impacto nas juventudes", com Guilhermo Aderaldo; e "Uma política de renda justa é necessária para enfrentar os efeitos da reestruturação produtiva", com Helena Martins.
O início do último dia do evento foi marcado pela partilha de experiências e trabalhos realizados pela vila “Lucro e Vocação”. Em uma seção interativa, jovens economistas e empreendedores de diferentes partes do mundo apresentaram seus projetos e ações junto às suas comunidades. Apesar das diferentes percepções de lucro expostas pelos participantes, não houve sequer uma discussão sistemática sobre as implicações da “religião do lucro”, conforme invocado por Muhammad Yunus no dia anterior.
A conferência do dia, intitulada “Somos todos países em desenvolvimento”, com os economistas Kate Raworth e John Perkins foi marcada pela apresentação de Kate com relação ao seu constructo teórico-metodológico da “Economia Donut”. Esta metodologia consiste em um gráfico em formato de rosquinha com um piso social e um teto ecológico. Conforme a notícia publicada no sítio do IHU, Kate relata que:
“O bom da rosquinha, como todos sabem, é o concreto, aquela rodinha onde tem a massa e o açúcar em cima. No limite interno da rosca, para dentro do vazio, ficam as insuficiências que devem ser sanadas: 12 itens como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água. O corpo da rosca é o espaço onde devemos nos situar, dimensão justa e segura para a humanidade. No limite externo da rosca, fica o teto ecológico que não devemos ultrapassar: nove itens envolvendo mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e de fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar e destruição da camada de ozônio”.
Imagem: Fragmento da apresentação da economista Kate Raworth para o evento internacional Economia de Francisco
Kate apresentou um gráfico donut relatando a situação sócio-ecológica do mundo, bem como de países como Ruanda, Brasil e Estados Unidos. A partir dos resultados, a economista dividiu o mundo em três categorias:
• Países não poluidores, mas com insuficiência das demandas sociais;
• Países poluidores e com insuficiências nas demandas sociais;
• Países poluidores, mas com sistemas avançados de proteção social.
Logo, a partir da definição de piso social e teto ecológico, Kate relata que todos somos países em desenvolvimento e alertou à necessidade de problematizar o que consideramos “desenvolvimento” e como podemos (re)imaginar o conceito de prosperidade.
Imagem: Fragmento da apresentação da economista Kate Raworth para o evento internacional Economia de Francisco
John Perkins, a partir das contribuições de Kate, mostrou que a profissão de economista até então se apoia majoritariamente em uma “economia da morte” (death economy) e que a maximização do lucro de curto prazo é o ponto nodal desta lógica. Trabalhar para a transição desta economia para uma “economia da vida”, do planejamento de longo prazo/ intergeracional, considerando a dignidade da vida humana e dos diversos ecossistemas planetários é o caminho para todos nós, relata Perkins.
Ademais, ele enfatiza que a pandemia, por mais sombria e difícil que se mostra, também se apresenta como um tempo sem precedentes para a captura de novas formas de viver, criando um espaço de esperança e um horizonte de possiblidades.
Após as exposições dos conferencistas, as doze vilas apresentaram propostas a partir de seus estudos como forma de enfatizar a Economia de Francisco como um processo de construção e transição para uma outra economia, realmada e humanista.
A vila Trabalho e Cuidado relatou seu compromisso com a promoção de um sistema de proteção social para o trabalho (decente) através de um desenvolvimento comunitário e inclusivo. A vila também apresentou explicitamente sua luta para o projeto de renda básica universal e incondicional.
A vila Finança e Humanidade enfatizou seu compromisso com o fortalecimento de mercados locais amalgamados por finanças éticas que objetivem a facilitação dos negócios em detrimento da acumulação de riquezas.
A vila Policies e Felicidade frisou a importância de robustecer os sistemas de políticas públicas de proteção social, com ênfase nas mulheres e nas crianças.
A vila Vida e Estilos de vida contribui com suas preocupações acerca da promoção dos esportes e demais negócios com fins sociais como caminhos para uma vida mais saudável e para o desenvolvimento comunitário sustentável.
A vila CO2 e Desigualdades nos alertou sobre a importância de uma legislação que promova o decrescimento no consumismo e individualismo. A mídia foi apontada como um agente importante na criação e promoção de estilos de vida social e ambientalmente sustentáveis.
A vila Negócios e Paz enfatizou a importância da saúde mental dos trabalhadores. Os negócios são capazes de promover a paz entre seus colaboradores e demais atores direta e indiretamente atingido pelas suas atividades?
A vila Negócios em transição explanou que a “transição” desejada é aquela compatível com os preceitos da economia civil e principalmente de processos produtivos regenerativos. Para a vila, é urgente a transição cultural no mundo dos negócios.
A vila Mulheres pela economia denunciou a desigualdade e violência de gênero, em especial quando se observa os dados acerca da remuneração entre homens e mulheres. Há necessidade da criação de um ethos organizacional induzido pelos talentos, competências e não pelo gênero. Entretanto, é urgente o reconhecimento da maternidade e do potencial profissional feminino como elementos importantes para a economia.
A vila Administração e Dom propõe uma renovação radical nas políticas de recursos humanos como chave para a transformação do bem-estar nas/das organizações. Processos horizontalizados e mais participativos entre os gestores e demais colaboradores também se tornam essenciais para estimular os talentos presentes nas empresas.
A vila Energia e Pobreza enfatizou a relação entre a transição energética e o mercado de trabalho. Segundo seus estudos, são necessárias políticas públicas que permitam uma suave transição nos sistemas de engenharia relacionados à energia combinado com políticas que garantam empregos e possibilitem uma renda básica universal e incondicional para a população.
A vila Agricultura e Justiça contribuiu para o debate a partir da valorização dos pequenos agricultores, da agricultura sustentável e da luta do alimento como bem comum, econômica e geograficamente acessível para toda a população do planeta.
A vila Vocação e Lucro apresentou sua proposta baseada em quatro pontos. O primeiro está relacionado ao ensino empreendedor a partir da responsabilidade social e ambiental de cada negócio. Depois, é necessário que as empresas tenham seus projetos alinhados com as capacidades e possibilidades das comunidades diretamente envolvidas. Em terceiro lugar, os negócios devem servir ao bem comum ou interesse público da realidade local. Por último, o lucro financeiro deve ser convertido em valor social, negligenciando princípios egoístas de acumulação e respeitando as fronteiras naturais do planeta.
Para mais informações sobre propostas e reflexões da Economia de Francisco, o Instituto Humanitas Unisinos disponibiliza a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.
“Trata-se de um espaço aberto às pessoas envolvidas no evento e no processo da Economia de Francisco, para que contribuam, a partir de suas pesquisas, discussões e vivências, com a reflexão e a práxis em vista de outra economia possível”.
Publiquei um artigo na coluna intitulado "Apreensão, sensibilidade e propósito: a policrise e o mundo porvir" com o intuito de conceber a ciência econômica a partir do diálogo transdisciplinar e da sensibilidade às manifestações do real que, nos últimos anos, carece de respostas humanitárias e projetos de vida visionários.