05 Julho 2019
"Impostos sobre capital produtivo. Compartilhar as riquezas da natureza. Controle sobre dinheiro e mercados. De forma simples, porém refinada, Kate Raworth propõe uma métrica mais humana para a prosperidade", escreve Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor da PUC-SP e da Umesp, em artigo publicado por Outras Palavras, 03-07-2019.
Chegou um livro para mudar como pensamos a ciência econômica: Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st Century Economist (A economia da “rosquinha”, 7 maneiras de pensar como um economista do século 21), de Kate Raworth — e publicado nesse ano no Brasil, pela editora Zahar, como Economia Donut: uma alternativa ao crescimento econômico. Exagero? Pois essa britânica de Oxford alia simplicidade e clareza na exposição, com uma revisão em profundidade de como vemos, analisamos e contabilizamos as atividades econômicas. Ela inclusive faz a ponte com as teorias herdadas, avaliando seus aportes e fragilidades frente a um mundo que mudou profundamente. Ela não descarta as teorias herdadas, mas organiza a transição.
Capa do livro "Doughnut Economics: 7 ways to think
like a 21st Century Economist"
George Monbiot, no The Guardian, não exagera: “Eu li este livro com a excitação com que as pessoas do seu dia devem ter lido a Teoria Geral de John Maynard Keynes. É brilhante, entusiasmante e revolucionário. Com um poço profundo de aprendizagem, sabedoria e pensamento profundo, Kate Raworth redesenhou e redefiniu os marcos da teoria econômica. É completamente acessível, mesmo para pessoas sem conhecimento do assunto. Eu acredito que Doughnut Economics vai mudar o mundo”. Comentário forte, mas surpreendentemente adequado.
Pois não é exagero mesmo. Com décadas de busca por um ajuste da teoria econômica às novas realidades, eu fiquei realmente feliz com o resultado. O mundo mudou. Continuarmos presos no cálculo do PIB que perdeu qualquer sentido. Não contabilizar os impactos ambientais já beira a idiotice, quando temos 7,4 bilhões de habitantes consumindo ferozmente. Falar em mercado livre perdeu qualquer sentido na era dos gigantes financeiros e das megacorporações articuladas. Pensar a economia nacional e, mais ainda, a política econômica nacional, na era da globalização, é cada vez menos realista. Patentes de décadas no ritmo presente de transformação tecnológica são pré-históricas. Enfim, tantos aspectos da atividade econômica mudaram, em particular na sua dimensão institucional, que já não resolve acrescentar um “neo-” ou um “pós-” às teorias herdadas.
De forma simples e direta, Raworth faz um tipo de reset de como vemos o mundo econômico, e a nova visão faz todo sentido. Consciente de que precisamos hoje de uma imagem de referência, não um detalhe, sobre o que queremos da economia, a autora substitui os nossos tradicionais gráficos de fluxos por uma imagem: o doughnut, a nossa familiar rosquinha. Como imagem é poderosa, e como a Oxfam tinha desenvolvido esta metodologia, eu também a vinha utilizando. Em Doughnut Economics, ela já aparece completa. Vale a pena se apropriar de uma ideia básica: a de que estamos produzindo algumas coisas em excesso, como poluição do ar; e outras de forma insuficiente, como educação e saúde. Os excessos aparecem explodindo para além da rosca e as insuficiências não chegam à rosca, ficam no vazio interno.
Com esse desenho simples estamos saindo do quantitativo do PIB, em que a destruição ambiental como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois aumentam as atividades e logo o PIB. Evoluímos para uma conta completa que permite identificar o que deve ser controlado, por exemplo a contaminação química; e o que deve ser expandido, por exemplo o acesso aos alimentos. Entramos assim na economia do bom senso. Lembrando aqui a bela frase que encontrei num banner de estudantes de economia: “Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa”. Doughnut Economics nos traz um ponto de partida sobre o qual podemos construir as políticas, organizar estímulos ou regulação, e repensar as nossas teorias.
O bom da rosquinha, como todos sabem, é o concreto, aquela rodinha onde tem a massa e o açúcar em cima. No limite interno da rosca, para dentro do vazio, ficam as insuficiências que devem ser sanadas: 12 itens como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água. O corpo da rosca é o espaço onde devemos nos situar, dimensão justa e segura para a humanidade. No limite externo da rosca, fica o teto ecológico que não devemos ultrapassar: nove itens envolvendo mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e de fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar e destruição da camada de ozônio. Veja a imagem:
Economia da rosquinha.
Ou seja, no vazio interno da rosca, temos as insuficiências, shortfall, o que tem de remediar para entrar no espaço seguro da própria rosca. E no vazio externo, temos os excessos, o overshooting, que precisamos reduzir. Nada muito diferente de como cuidamos da nossa casa, onde temos de complementar as insuficiências e controlar os excessos. Com esse estudo, a economia deixa de ser um mistério para amadores de modelos matemáticos, e passa a fazer sentido para os comuns dos mortais. Ao mesmo tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o que foi decidido nas grandes conferências de 2015, com o Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030, em Nova Iorque.
A simplicidade e facilidade de leitura, inclusive de visualização mental, dos desafios econômicos, são essenciais, pois enquanto a imensa maioria da população não entender a lógica de como usamos os nossos recursos, as farsas irão continuar. Inclusive a farsa maior de que precisamos dos ricos pois eles investem e geram empregos, e de pobres pois a pobreza os leva a trabalhar. Na realidade, os ricos hoje fazem aplicações financeiras em vez de investir, colocam os recursos em paraísos fiscais e, portanto, pouco investem e mal pagam os seus impostos. No mundo que funciona, impostos sobre o capital improdutivo levam os rentistas a buscar fazer algo de útil com os seus capitais. E como constatamos em qualquer iniciativa que assegurou mais recursos para a população, o resultado é maior demanda, multiplicação de pequenas e médias empresas e expansão do emprego. O que aliás gera maior massa de impostos e equilíbrio de contas públicas. Veja-se o sucesso do New Deal, do Welfare State, e até mais recentemente da “geringonça” portuguesa.
Em Doughnut Economics, ao vermos em que setores e com que atividades estamos por um lado dilapidando os recursos naturais do planeta por excessos de uso, e por outro que insuficiências existem em diversas partes da população, podemos, setor por setor, canalizar os esforços e recursos financeiros para onde irão gerar maior equilíbrio.
Onde nos encontramos agora: Gráfico de Kate Raworth e Christian Guthier/The Lancet Planetary Health
Ou seja, podemos calcular onde devemos nos restringir, onde podemos expandir, em que setores há prioridade e assegurar o básico para a população. A economia passa a fazer sentido. Tim Jackson, que comenta o livro, lembra o absurdo de termos sido “persuadidos a gastar o dinheiro que não temos em coisas que não precisamos para causar impressões que não irão durar sobre pessoas que não nos importam”. Já era tempo que alguém desse um pouco de sentido na visão geral da economia realmente existente. No centro das respostas, não estão modelos complicados, e sim a “capacidade do século 21 de criar formas muito mais efetivas de governança, em cada escala, do que as que têm sido vistas anteriormente”.
Volto a afirmar: é uma leitura absolutamente fundamental, que permite transitarmos para a economia do século 21, transição necessária, pois as mudanças são profundas.
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Economia da rosquinha: uma proposta para o século 21 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU