21 Mai 2018
“A dominação da renda é a neurose das finanças. Como sabiam muito bem a Bíblia e a Idade Média, que condenavam o empréstimo por juros ou a usura, porque era expressão da dominação da renda: alguém detinha um poder – o dinheiro –, e essa condição de domínio lhe permitia receber renda sem trabalhar. O principal conflito do nosso tempo não é mais entre capital e trabalho, mais típico dos séculos XIX e XX, mas sim o conflito renda-trabalho, uma renda financeira que esmaga lucros e salários.”
A opinião é do economista italiano Luigino Bruni, professor do departamento de Jurisprudência, Economia, Política e Línguas Modernas da Universidade Lumsa, de Roma. O artigo foi publicado em Avvenire, 18-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“As temáticas econômicas e financeiras, nunca como hoje, atraem a nossa atenção, pelo motivo da crescente influência exercitada pelo mercado em relação ao bem-estar material de boa parte da humanidade.” Assim começa o documento “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones: considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.
A economia e as finanças sempre foram questões decisivas para a vida das pessoas. A riqueza e a pobreza, a poupança, os bancos e o trabalho representaram em todas as épocas as coordenadas dentro das quais ocorriam muitas das coisas mais importantes da vida.
Por que, então, a Igreja Católica sente que “nunca como hoje” a economia e as finanças são importantes e decisivas para o bem-estar humano? Porque a crescente ausência da política da vida econômica e financeira está deixando o governo das nossas sociedades globalizadas às empresas e aos bancos. Há muita economia, economia demais na paisagem do nosso mundo, e a lógica dos negócios está se tornando a lógica de toda a vida social dos povos.
É importante que esse documento sobre economia e finanças seja emitido, em conjunto, pela Congregação para a Doutrina da Fé e pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Isso diz que a economia e as finanças também têm a ver diretamente com a implementação e a atualização da fé cristã, que empresas e bancos também são questões teológicas. Diz que uma vida individual e coletiva fiel ao Evangelho hoje não pode abrir mão de se confrontar com a fé, e que a fé não pode abrir mão de se confrontar com a economia e com as finanças, que são lugares espirituais e teológicos.
São muitos os pontos do texto que mereceriam uma análise profunda. Acima de tudo, é importante que o documento fale de finanças e ofereça alertas e advertências sobre esse setor específico, quando hoje muitos falam da crise financeira como de algo que pertence ao passado.
Na realidade, a dez anos da crise, tudo parece continuar exatamente como antes de 2007. Os produtos financeiros cada vez mais inovadores e “criativos”, as regulamentações que permaneceram (quase) as mesmas e, sobretudo, a lógica e a escolha dos poupadores continuam sendo orientadas demais à maximização da renda financeira. É significativa a ênfase dada pelo documento à responsabilidade civil e social dos cidadãos consumidores e poupadores.
Por muito tempo, dissemos e pensamos que os responsáveis pela crise financeira eram apenas as instituições e os bancos, esquecendo o outro lado da verdade: que se houve e há uma oferta de finanças altamente especulativas e inescrupulosas é porque, do outro lado, houve e há uma demanda por esses produtos que vem, em grande parte, das famílias, de nós.
Não entraremos em uma nova fase econômica e financeira sem uma nova cultura individual, que comece a olhar com mais atenção crítica, e talvez um pouco profética, para as escolhas financeiras e econômicas cotidianas. É, portanto, um convite à atenção civil sobre as finanças e a economia, que são importantes demais para deixá-las aos adeptos aos trabalhos de sempre. Distraímo-nos demais e, nessa distração, ocorreram coisas ruins, às vezes muito ruins, especialmente para os pobres e para os descartados.
O restante nos chama, então, a cuidarmos da casa e das suas regras – oikos nomos: economia –, a estarmos mais presentes dentro dos processos dos mercados, a habitarmos mais os lugares econômicos, porque, nos lugares abandonados e desertos, escondem-se bandidos e feras.
A crítica às finanças nasce de uma leitura profunda da sua patologia, antiga e nova: a renda: “Isto que por mais de um século foi tristemente previsto, tornou-se realidade hoje: o lucro do capital coloca fortemente em risco, e corre o risco de suplantar, a renda do trabalho, comumente confinada às margens dos principais interesses do sistema econômico” (n. 15).
A dominação da renda é a neurose das finanças. Como sabiam muito bem a Bíblia e a Idade Média, que condenavam o empréstimo por juros ou a usura, porque era expressão da dominação da renda: alguém detinha um poder – o dinheiro –, e essa condição de domínio lhe permitia receber renda sem trabalhar. O principal conflito do nosso tempo não é mais entre capital e trabalho, mais típico dos séculos XIX e XX, mas sim o conflito renda-trabalho, uma renda financeira que esmaga lucros e salários.
A crítica que é nota constante do documento também é precedida e acompanhada por um olhar positivo sobre a vida econômica: “Cada realidade e atividade humana (...) é positiva. Isto vale para todas as instituições as que dá vida a sociabilidade humana e também para os mercados, em cada nível, compreendidos aqueles financeiros” (n. 8). A economia e as finanças continuam sendo coisas boas, questões imperfeitas e melhoráveis, mas essenciais para imaginar e realizar uma boa sociedade. E, a partir desse olhar bom, devemos recomeçar a esperar, a vigiar, a fazer.
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Economia e sociedade, renda e trabalho: é hora de mudar. Artigo de Luigino Bruni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU