02 Dezembro 2017
“No século XX, a Europa combateu as desigualdades em nome da democracia. No século XXI, a meritocracia tornou-se a principal legitimação ética da desigualdade. Talvez chegou a hora de começarmos a pelo menos tomar consciência disso. Precisamos de menos meritocratas e de muitos ‘meritocríticos’.”
A opinião é do economista italiano Luigino Bruni, professor do departamento de Jurisprudência, Economia, Política e Línguas Modernas da universidade Lumsa, de Roma. O artigo foi publicado por Il Sole 24 Ore, 30-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Meritocracia é uma palavra que reúne um consenso cada vez mais transversal, coral, em constante crescimento. Para quem quiser denunciar corrupção e ineficiências, basta pronunciar a frase mágica “aqui é preciso mais meritocracia” – melhor ainda se em voz alta e colocando-se do lado dos merecedores – para se convencer e convencer de ter tomado o caminho certo.
Na realidade, a meritocracia é algo muito complicado que mereceria debates muito mais sérios: “A clareza não está entre os méritos da meritocracia” (A. Sen). A ideologia do mérito (de merere: mercê, meretriz) está se tornando a ideologia global do nosso tempo, que, ao se apresentar como técnica, confundindo o mérito com a competência e a responsabilidade, não revela a sua natureza ideológica (senão religiosa).
Cada prática e teoria do poder tentaram associar o seu poder a uma forma de meritoriedade, para conservar o próprio poder. Todas as oligarquias gostariam de ser também aristocracias (governo dos melhores). A meritocracia é a aristocracia dos nossos tempos, em que, em comparação com as feudais, mudam apenas o mecanismo de reprodução das elites e a justificação e a legitimação do seu “ser melhor”. Não mais a terra nem a dinastia, mas sim, simplesmente, o mérito.
As teorias sobre o mérito e as suas recompensas têm raízes teológicas e filosóficas muito antigas. Jó, os Evangelhos, Agostinho e Pelágio, Lutero e Calvino dedicaram ao mérito páginas profundas e decisivas. Há 200 anos, o economista e filósofo Melchiorre Gioja abria o seu tratado “Sobre os méritos e sobre as recompensas” recordando que “as ideias que, na mente dos homens, correspondem à palavra mérito são, como todos sabem, infinitamente diferentes”.
E é precisamente nessa infinita diversidade dos méritos onde se adensam as nuvens no céu meritocrático.
A primeira é a interpretação do talento como mérito individual. Esquece-se de que, nos nossos sucessos, o acaso e a sorte/infortúnio desempenham um papel decisivo – como lembra Robert Frank no seu recente livro Success and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy (Ed. Princeton). O mercado não é como o esporte, embora muitos gostem de pensar assim.
Não se reconhece, além disso, que, por trás de um objetivo individual alcançado, há uma equipe de trabalho, uma empresa, uma cidade, um país. Os méritos não são mérito nosso, senão em mínima parte, uma parte ínfima demais para fazer disso o muro-mestre de uma civilização. Um importante efeito colateral de uma cultura que interpreta os talentos como mérito e não como dons é uma dramática carestia de gratidão, que é a primeira nota dos sistemas meritocráticos.
À ideologia meritocrática, não é suficiente reduzir o talento a mérito. Há, ainda antes, a necessidade da redução dos diversos e muitos méritos das pessoas e dos trabalhadores àqueles pouquíssimos definidos como tais pelas organizações. É a propriedade da empresa que estabelece o que é merecedor e que méritos premiar. E, depois, atribui-se a esses poucos e simples “méritos” o poder (kratos). Esses méritos no poder são aqueles mais simples, quantitativos e mensuráveis.
Os méritos mais complicados e qualitativos, dificilmente mensuráveis, não são premiados, são desencorajados, são destruídos. É uma pena que, entre esses méritos, estejam muitas daquelas virtudes das quais dependem o bem-estar e a sobrevivência das empresas e das comunidades humanas. Os talentos de humildade, de mansidão, de compaixão, de misericórdia, autênticos capitais antropológicos e relacionais diversos, são sistematicamente negados, não raramente ridiculizados, colocados entre os perdedores.
Essas virtudes diferentes são acorrentadas, como no mito, em que Kratos recebe a ordem de acorrentar Prometeu, o amigo dos homens. Por quanto tempo durará uma business community com excessivos méritos fáceis e com uma destruição de méritos difíceis? E o que acontecerá quando a carestia de méritos além dos empresariais ocupar a escola, as associações, as Igrejas?
No século XX, a Europa combateu as desigualdades em nome da democracia. No século XXI, a meritocracia tornou-se a principal legitimação ética da desigualdade. Foi suficiente mudar-lhe de nome para transformar a desigualdade de um mal em um bem, de um vício social em virtude individual e coletiva. Uma ideologia perfeita, porque consegue dar às desigualdades um conteúdo de justiça, até mesmo religioso, quando alguém a fundamenta até na parábola evangélica dos talentos.
Talvez chegou a hora de começarmos a pelo menos tomar consciência disso. Precisamos de menos meritocratas e de muitos “meritocríticos”.
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Menos meritocratas, mais ''meritocríticos''. Artigo de Luigino Bruni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU