02 Mai 2018
Nesta terça-feira foi o dia dos trabalhadores, de todos os trabalhadores. Também foi o Dia do Trabalho. Mas não a festa de todo o trabalho, porque nem todo o trabalho ou todos trabalhadores merecem ser comemorados. O trabalho sem adjetivos qualificativos não diz o suficiente para nos informar se merece ou não a nossa festa.
O artigo é de de Luigino Bruni, economista italiano, publicado por Avvenire, 01-05-2018.
Até mesmo o 'filho pródigo' encontrou um trabalho depois de ter desperdiçado todas as suas riquezas, mas apesar de trabalhar como guardador de porcos não conseguia se alimentar. O seu não era um trabalho digno nem decente, como não o era a maioria dos trabalhos da antiguidade até tempos muito recentes, e como não o são muitos trabalhos que ainda continuamos a fazer. É por isso que o 1º. de maio é também a memória de muitas lutas civis e políticas, combatidas para tornar o trabalho uma atividade humana digna, e, portanto, para eliminar aquelas condições de trabalho e aqueles trabalhos que se pareciam (e se parecem) demais com a escravidão e a servidão . Para lembrar-nos que o trabalho é antes de tudo uma questão política, social, que tem a ver com as relações de poder (palavra excluída do vocabulário do capitalismo do século XXI) e que, quando se torna uma questão individual e um contrato como todos os outros, perdemos séculos de civilização e re-equilíbrio das relações de poder. A história da civilização é também uma ‘destruição criadora’ de trabalho: trabalhos indignos substituídos por trabalhos mais dignos.
Muitos trabalhadores em empregos indignos hoje não comemoram, porque estão sendo chantageados por patrões sem escrúpulos ou por suas necessidades básicas. E não podemos, em termos morais, pretender que aquele que se encontra acorrentado, dentro de tais trabalhos indignos, questione-se sobre a dignidade do próprio trabalho e depois passe a agir em consequência, abandonando-o. Essas perguntas são luxos que quem precisa alimentar a si mesmo e aos seus filhos raramente pode se permitir. Também porque as nossas consciências são plasmadas pelas condições materiais e sociais em que vivemos, e condições de vida não dignas impede-nos geralmente de tomar consciência da não-dignidade do nosso trabalho. Sempre serão muito poucos os trabalhadores em trabalhos indignos em condições de pedir dispensa colocando em risco a própria vida e a de suas famílias. É por isso que a qualidade moral e cívica de um povo é medida pela sua capacidade de não obrigar os trabalhadores individuais a ter que escolher entre consciência e pão, não deixá-los sozinhos em seus infernos tendo que confiar apenas no próprio heroísmo ético individual.
Os povos civilizados combatem os trabalhos incivilizados no plano civil e político. Hoje no mundo inteiro e em nosso país há muitos, demais trabalhadores em trabalhos errados e incivilizados - nas salas de jogos, em tantos empregos do comércio de armas, os muitos 'guardiões' de porcos e de pocilgas - que têm aumentado nos últimos dez anos de crise (as graves e longas crises reduzem os trabalhos dignos e aumentam os indignos). Esses trabalhadores são realmente pobres, de renda, mas também de liberdade, porque a primeira forma de pobreza, lembra-nos Amartya Sen, é a falta de liberdade de poder ter a vida que queremos ter. Muitos trabalhadores não gostam de seu trabalho indigno, mas não se encontram na condição de liberdade para poder deixá-lo. Seria preciso uma nova consciência coletiva, mais atenta ao trabalho e à sua dignidade, para resgatá-los da escravidão. Mas é precisamente esse tipo de consciência civil sobre o trabalho e do trabalho a que mais nos falta nesse tempo da globalização dos mercados e da indiferença. Somos cercados pelo trabalho humano, mas o 'vemos' muito pouco, porque estamos civilmente e moralmente distraídos ou míopes. O trabalho é o principal ambiente onde passamos a nossa existência, desde o primeiro dia até o último. Mas nós nem sempre estamos suficientemente atentos à qualidade moral e à natureza ética desse trabalho.
Dedicamos uma atenção cada vez maior aos rótulos dos produtos alimentícios e cosméticos para saber as calorias e as propriedades químicas, mas estamos cada vez menos interessados hoje do que há trinta anos quanto aos ‘rótulos morais’ das mercadorias, aos 'açúcares de justiça' e às 'calorias éticas'. Nas últimas três décadas, nos deixamos muito rapidamente convencer que a democracia tinha pouco a ver com as mercadorias e os mercados. Acreditamos em quem nos dizia que as técnicas e os instrumentos poderiam gerir a economia. E assim, não permitindo que a democracia entrasse nas fábricas, escritórios, bancos, supermercados e lojas on-line, progressivamente reduzimos o espaço, até torná-lo ínfimo. Os direitos e as liberdades também, e principalmente, são aqueles dos trabalhadores das roupas que vestimos, dos agricultores das frutas e dos tomates que comemos, dos soldados das guerras por trás do petróleo (e, logo, da água) que consumimos.
Precisamos começar a olhar de forma diferente para o nosso trabalho e o dos outros, para aprender a apresentar ao trabalho perguntas novas, mais civis, mais políticas, mais éticas. E não nos contentarmos com as respostas fáceis demais. A humanidade cresceu todas as vezes que alguém começou a fazer novas perguntas para as pessoas e as coisas, e soube como transformá-las em questões coletivas. Estas questões coletivas acabaram por gerar respostas, que quando eram banais eram enviados de volta para o remetente.
Até que, algumas vezes e até mesmo séculos depois do dia da primeira pergunta, nos convenceram, e imediatamente foram geradas novas perguntas. Hoje é a festa de todos os trabalhadores, por isso é também a festa dos trabalhadores de trabalhos indignos, porque a indignidade de um trabalho nem sempre torna indignos os seus trabalhadores.
E porque todos os dias, ações melhores e mais luminosas conseguem clarear, por alguns instantes, a escuridão de muitos trabalhos ruins. Mesmo em Auschwitz, sempre nos lembrará Primo Levi, um pedreiro conseguiu erguer um muro reto. A pessoa é maior do que o seu trabalho, sempre e de qualquer trabalho. Principalmente é maior e digna aquela que não escolheu, mas apenas aceitou para não morrer.
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Se isso é trabalho. Artigo de Luigino Bruno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU