O processo de financeirização da economia brasileira, iniciado nos anos 2000, ficou ainda mais intenso a partir de 2014, com o aumento da financeirização de serviços públicos, como educação, saúde e previdência, diz Denise Gentil à IHU On-Line. Segundo ela, a contração dos serviços sociais por parte do Estado abriu “uma série de possibilidades para a oferta privada nas áreas de habitação, previdência, saúde e educação” e quem passou a tomar conta das áreas que o Estado “deliberadamente” abandonou foram os fundos de previdência e os fundos de investimentos, principalmente Fundos de Investimento em Participação - FIP. Esses fundos, predominantemente estrangeiros, “ingressam no Brasil, compram participações em empresas brasileiras dos setores de saúde e educação, injetam recursos e depois abrem o capital na bolsa de valores para quem quiser ‘investir’”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU participando do “Ciclo de Debates. Reforma da Previdência. Qual a reforma necessária?”, Denise explica como funciona o processo de financeirização. Ele inicia, diz, quando “o governo faz uma política importante de transferência de renda para combater a pobreza, mas essa transferência de renda, que se transformou no eixo central da política social (e não a oferta de serviços sociais universais), acaba por servir de colateral para a tomada de crédito, porque, de um lado, há uma insuficiência da oferta de serviços públicos e, de outro, há a baixa renda de salários que caracteriza a economia brasileira”.
A educação superior privada é um exemplo do sucesso da financeirização no Brasil. Embora programas como o Prouni, o Reuni e o Fies tenham favorecido o crescimento do número de jovens com diploma entre 2002 e 2014, eles também impulsionaram uma mudança no modo de operação das universidades privadas. “Até 2006, as faculdades e universidades eram entidades de pessoas físicas ou instituições sem fins lucrativos. Daí em diante, os grandes grupos do setor mudam de perfil e abrem seu capital na Bovespa, o que ocorreu principalmente ao longo dos anos de 2008 e 2009. Private equities internacionais passam a comprar participação nessas corporações, e o processo de financeirização na educação se alastra pelo empurrão estratégico do Fies”, menciona.
De acordo com a economista, “a progressão acelerada de alunos de graduação financiados pelo Fies é assombrosa. Se tomarmos quatro importantes grupos privados de capital aberto — Kroton, Estácio, Anima, Ser Educacional — até 2010, a participação de beneficiários do Fies era inferior a 11%. Em cinco anos, aumenta exponencialmente, superando, em todos os casos analisados, 40% em 2015. O grupo Kroton passou a contar com mais de 60% de seus alunos de graduação financiados pelo Fies em 2014. Houve, ao mesmo tempo, uma ascensão do preço das ações dessas mesmas empresas, a partir de 2010, valor que acompanha a oferta crescente de crédito pelo Fies. Entre 2009 e 2017, as ações da Kroton valorizaram 769% e as da Estácio 238%, enquanto o Ibovespa variou 28,4% no período”.
Denise ressalta ainda que o ensino universitário privado “foi sendo financeirizado com o estímulo de recursos públicos”. E informa: “Em 2014, a totalidade do gasto federal com educação superior somou R$ 34 bilhões, ao passo que outros R$ 14 bilhões, ou o equivalente a 41,1%, foram repassados ao Fies como empréstimos aos alunos, entrando diretamente nos cofres dos fundos, mas poderiam ter criado vagas para os estudantes nas universidades públicas, em vez de gerar endividamento para as famílias dos estudantes. Em 2019, 60% ou três em cada cinco devedores do Fies estão com parcelas atrasadas. O atraso no pagamento do Fies chega a R$ 13 bilhões”.
Denise Gentil durante entrevista no IHU (Foto: Cristina Guerini | IHU)
Denise Lobato Gentil possui bacharelado em Economia pelo Centro de Estudos Superiores do Estado do Pará, mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará - UFPA e doutorado em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde atualmente é professora. É autora de diversos artigos acadêmicos e organizadora do livro Produto Potencial e Investimento (Rio de Janeiro: Ipea, 2009).
IHU On-Line — O título da sua palestra é “Reforma da Previdência e o Brasil dos anos 2000. A financeirização da política social”. O que caracteriza o Brasil dos anos 2000, como tem se dado a financeirização das políticas sociais desde esse período e que relações existem entre financeirização das políticas e reforma da previdência?
Denise Gentil — O tema da palestra é fruto de três pesquisas que fiz nos últimos tempos sobre a financeirização da política social, sobre a qualidade do modelo atuarial adotado pelo governo e os impactos das reformas da previdência propostas desde 2017. Essas pesquisas deram origem a duas notas técnicas e a dois artigos, que fazem uma avaliação dos números que o governo utiliza para impor uma reforma tão cruel para os brasileiros como a reforma da previdência. Houve em nós, pesquisadores, uma curiosidade de saber se os números que o governo estava apresentando como base para justificar a implementação das mudanças na política, tais como redução do valor de benefícios, aumento do tempo de contribuição, idade mais elevada para a aposentadoria e o aumento das alíquotas de contribuição previdenciária etc., eram verdadeiros. Então, fomos atrás do modelo atuarial do governo e chegamos a conclusões devastadoras.
O resultado dessas pesquisas são as duas notas técnicas publicadas pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil - Anfip, em 2017 e 2019. Esses trabalhos foram produzidos por equipes de engenheiros e economistas e tivemos que fazer uma espécie de engenharia reversa nos dados do governo para poder auditar o modelo atuarial e as projeções. Sobre a questão da financeirização das políticas sociais, saiu um artigo, de autoria da professora Lena Lavinas e meu, na revista Novos Estudos Cebrap, de 2018, intitulado “Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização”.
IHU On-Line — Quais os resultados apresentados por essas pesquisas e o que eles demonstram sobre como e quando iniciou o processo de financeirização das políticas públicas no país?
Denise Gentil — Com relação à financeirização, o que percebemos é que, nos anos 2000, aconteceu no Brasil algo que estava ocorrendo no mundo e na América Latina em geral, que é um processo acelerado de financeirização da economia. Como enxergamos esse processo e como ele atinge as políticas sociais? Em primeiro lugar, percebemos que na América Latina houve uma onda em que governos de conciliação econômica foram sendo substituídos paulatinamente por governos mais polarizados. No caso brasileiro, isso fica mais visível a partir de 2014. Mas ficou muito claro que a polarização também estava acontecendo na Argentina, Peru, Colômbia, Equador, Paraguai, Chile e que as políticas adotadas nesses países implicavam perda de direitos previdenciários, flexibilização das regras trabalhistas de forma muito dramática, generalização da terceirização, estímulo aos trabalhos temporários, destituídos de proteção previdenciária e trabalhista, e destruição dos sindicatos. Além disso, percebemos também uma política na direção de cortes de gastos sociais ou de congelamento dos orçamentos públicos. No caso brasileiro, a Emenda Constitucional do Teto de Gastos é marcante: de 2014 para cá já vinha acontecendo uma redução dos gastos, mas o novo regime fiscal do Teto de Gastos implantado em 2017, que entrou em vigor para gastos sociais (em educação e saúde) em 2018, é a versão mais radical do neoliberalismo aplicado às finanças públicas, atingindo também, de forma drástica, o setor de infraestrutura.
Outro traço que marca essa política é o fato de que ela empurra a população na direção de planos privados de saúde, de fundos de capitalização previdenciários e para o ensino privado. Isso acontece porque há uma perda deliberada da capacidade do Estado de ofertar bens e serviços públicos em função dos cortes de gastos. O que resta desse Estado reduzido ao mínimo é a oferta de serviços deteriorados. Isso faz com que a população vá, progressivamente, atender suas necessidades no mercado, pagando preços exorbitantes. Houve também uma mudança na regra de correção do salário mínimo: ele passou a ser corrigido apenas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC a partir de 2019, causando uma redução no valor e, por consequência, uma redução do salário médio e enfraquecimento financeiro e político dos sindicatos. Então, todo esse conjunto de políticas provoca a desaceleração da economia e incremento do desemprego e, consequentemente, uma taxa de exploração dos trabalhadores muito mais violenta, o que faz com que eles se submetam a condições cada vez mais degradantes de trabalho e a condições cada vez mais decadentes de serviços públicos. Esse é o espectro da financeirização. Mas como de fato ela acontece? É mais ou menos assim: quando a financeirização chega às engrenagens do sistema produtivo nacional, ela remodela toda a estrutura da economia brasileira e a política social também.
IHU On-Line — A crítica à financeirização das políticas sociais ficou mais forte depois de dois mandatos do governo Lula. Como entende esse fenômeno e o que o caracteriza?
Denise Gentil — Esse processo começou nos anos 2000. A financeirização já acontecia antes, mas começa a ficar mais clara dos anos 2000 para cá e ganha ainda maior intensidade a partir de 2014. No caso da política social, isso fica mais evidente com a política de ajuste fiscal, que vai significar uma redução de certos gastos na área social e aumento em outros gastos sociais. O orçamento da política social foi reestruturado, assim há uma redução relativa da oferta de serviços públicos essenciais do Estado e um aumento das transferências de renda para as famílias. Portanto, passa a haver uma precarização da educação pública, da saúde pública, da habitação e do saneamento básico e um fortalecimento das transferências de renda — via Bolsa Família, Previdência Social, Benefício de Prestação Continuada - BPC e, não devemos esquecer, das transferências na forma de pagamento de juros às famílias de alta renda. Portanto, há uma reestruturação do orçamento. O paradoxo é este: os gastos sociais continuaram crescendo, mas eles são remodelados pela financeirização. E, nesse processo, a renda financeira (juros) também ganha espaço cada vez maior.
Como age a financeirização? Com a contração da oferta dos serviços públicos, abre-se uma série de possibilidades para a oferta privada nas áreas de habitação, previdência, saúde e educação, e quem vai tomar conta desse espaço que o Estado deliberadamente abandona são os grandes fundos de previdência e os fundos de investimentos, principalmente Fundos de Investimento em Participação – FIP. Esses fundos são predominantemente estrangeiros que ingressam no Brasil, compram participações em empresas brasileiras dos setores de saúde e educação, injetam recursos e depois abrem o capital na bolsa de valores para quem quiser “investir”. O valor das ações em bolsa subiu muito. Com isso, há uma mudança na lógica das instituições: o que importa não é mais a qualidade dos hospitais, dos laboratórios e dos serviços de educação que são ofertados por essas empresas; a lógica passa a ser a da capacidade de gerar ganho de capital e, em menor proporção, lucro para os acionistas. Portanto, é uma outra dinâmica, é uma dinâmica financeirizada porque tudo vira ativo financeiro; a educação e a saúde são ativos financeiros. Assim, os FIPs compram hospitais, laboratórios, redes de saúde e grandes faculdades privadas e transformam completamente a lógica da dinâmica social do país. Por seu turno, a proteção social aos idosos também vira um ativo financeiro em expansão com o processo de envelhecimento da população, o que levou os fundos abertos de previdência a terem seus patrimônios multiplicados em mais de cinco vezes entre 2006 e 2018.
Se a oferta de serviços passa a ser privada, como é que ficam os brasileiros que não têm acesso a esses serviços, que agora são predominantemente pagos? Aumentou a oferta pública? Aumentou um pouco, mas aumentou muito mais a oferta privada de educação superior. O gasto público com saúde não caiu, está congelado, mas em patamares muito baixos frente ao crescimento populacional e, simultaneamente, aumentou muito mais o gasto privado com saúde. A pesquisa da profa. Lena Lavinas mostrou que o processo de financeirização é feito da seguinte forma: o governo faz uma política importante de transferência de renda para combater a pobreza, mas essa transferência de renda, que se transformou no eixo central da política social (e não a oferta de serviços sociais universais), acaba por servir de colateral para a tomada de crédito, porque, de um lado, há uma insuficiência da oferta de serviços públicos e, de outro, há a baixa renda de salários que caracteriza a economia brasileira, ainda que o salário mínimo tenha se recuperado nos governos petistas.
Já que os serviços essenciais fornecidos às famílias foram se privatizando — mais do que isso, se financeirizando, com a ampla presença de fundos de investimento e fundos abertos e fechados de previdência —, como a sociedade brasileira iria reagir? Para complementar os salários, o governo possibilita a oferta de crédito pelos bancos públicos, que abriram canais que chamamos de financeirização por endividamento das famílias. A população que vai receber a aposentadoria, o salário de servidor público e as transferências sociais é quem vai tomar o crédito. Então, a expansão do crédito foi muito grande no Brasil, a ponto de passarmos de 22% da relação crédito/PIB no Brasil, em 2002, para 53,7% em 2015 — e, assim, o crédito passou a ser um complemento fundamental da renda para aquisição de bens industrializados (celulares, televisores, eletrodomésticos etc.), mas também de serviços essenciais que deveriam estar sendo ofertados gratuitamente pelo Estado. Assim, ao mesmo tempo que o crédito complementa a renda e dá às famílias a possibilidade de consumir, gerando uma política econômica de consumo de massa que se notabilizou nos anos 2000 e que se mostrou relativamente dinâmica por um curto período, esse tipo de política endivida as famílias a taxas de juros elevadíssimas e provoca um retrocesso nas funções tradicionais do Estado de bem-estar social no Brasil.
Portanto, há uma mercantilização na oferta da educação e da saúde e, ao mesmo tempo, um aumento da precarização das famílias, porque elas passam a se transformar em famílias endividadas que precisam, repetidamente, entrar num crédito rotativo com taxas de juros cada vez mais altas, criando uma bola de neve de instabilidade econômica e de fragilização social agudas. O número de inadimplentes no Brasil em julho de 2019 chegou a 63,3 milhões de pessoas ou 40,3% da população adulta, segundo dados do Serasa. Isso caracteriza a financeirização: bens e serviços públicos se transformam em ativo financeiro e a relação credor/devedor passa a ser uma das relações mais importantes dentro dessa engrenagem financeirizante da economia.
IHU On-Line — A financeirização é fruto do próprio funcionamento da economia, ou de decisões políticas?
Denise Gentil — A financeirização é fruto das ingerências do mercado financeiro, isto é, das estratégias das elites rentistas e das instituições financeiras sobre a estrutura econômica do país; mas é, simultaneamente, decorrência do modo de articulação da política econômica e da política social cujos desenhos passam a ser ditados pelo poder e pela racionalidade do capital financeiro. Essas duas coisas são inseparáveis e penetram as várias dimensões da vida social: expandindo a dívida pública, com a remuneração dos títulos públicos a juros elevadíssimos; ampliando a relação devedor-credor ao estimular o consumo de massa num contexto dos mais elevados “spreads” bancários do mundo; impondo a lógica dos acionistas nas corporações financeiras e produtivas; ampliando as transações financeiras associadas à proliferação de serviços à população antes fornecidos pelo Estado. Enfim, não tem como escapar da expressão que virou lugar comum: “tudo vira ativo financeiro”, inclusive direitos sociais.
IHU On-Line — Quais são as alternativas à financeirização da política social?
Denise Gentil — Não consigo enxergar uma saída alternativa de curto prazo; é a mesma coisa que você me perguntar: “Professora, como se faz a desfinanceirização?” É uma jornada complexa. Teríamos que mudar o regime de acumulação e construir uma sociedade que contrariasse a financeirização. Sem essa ruptura não haverá recuperação econômica nem ascensão social para a grande maioria da população. Contrariar a financeirização significa constituir um poder popular que construa uma intervenção alternativa do Estado, em favor da democracia das instituições públicas, de tal forma que: se valorizasse o combate à pobreza e à desigualdade a ponto de torná-los o objetivo central da intervenção estatal; a educação e a saúde fossem direitos sociais universais de elevada prioridade, acima dos mercados e em favor das necessidades dos despossuídos; a política macroeconômica tivesse como meta o pleno emprego, o aumento da massa salarial, o crescimento da produtividade e o avanço da ciência e da tecnologia. Enfim, a desfinanceirização implica uma nova organização social que, lamentavelmente, não será conquistada sem que antes ocorram grandes disputas de interesses e acirramento de conflitos. O Chile virou o exemplo clássico das consequências nefastas da financeirização que é produto do neoliberalismo.
IHU On-Line — A população que recebe altos salários apoia e adere à financeirização?
Denise Gentil — Sem dúvida, porque se beneficia da renda financeira. Arquitetou-se um consenso nos segmentos de alta renda de que a estratégia econômica essencial é fazer ajuste fiscal por meio do corte de gastos sociais para controlar a dívida pública, manter o nível de preços em patamares reduzidos, comprimir salários, desonerar ou eliminar tributos das classes de alta renda e das empresas e retirar qualquer regulamento que supostamente trave a expansão econômica. A economia não precisa crescer, gerar empregos e progresso tecnológico, apenas gerar renda financeira elevada. Então, a lógica da busca por pleno emprego, crescimento e desenvolvimento econômico, de busca por políticas de combate à pobreza e à desigualdade, tudo isso é negado à população e passam a predominar o poder e a lógica do capital financeiro. Políticas sociais que já foram consideradas o motor da economia são, agora, obstáculos ao crescimento.
Se para favorecer o rentismo for preciso provocar desemprego, reduzir salários, aniquilar sindicatos, destruir a indústria nacional e dizimar o Estado de bem-estar social, isso será feito e está sendo feito. Assim, uma nova ideologia foi se tornando hegemônica, pregando o Estado policial, violento e repressor — é um Estado que vai ter que lidar com o descontentamento de uma enorme parcela da população excedente que será marginalizada e, portanto, descartada. E, de fato, o estabelecimento de um teto de despesas, a flexibilização da legislação trabalhista, a privatização da saúde, educação, infraestrutura, riquezas minerais e recursos energéticos que o Estado implementa, tem um caráter brutalmente excludente: gera um elevadíssimo desemprego de 12,3 milhões de pessoas; 28 milhões de trabalhadores subutilizados e 5 milhões de desalentados; 50 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, o equivalente a 25% da população. Essas pessoas estão diante de políticas devastadoras e humilhantes. É uma população excedente, supérflua, que é despachada para o sistema prisional, para a informalidade, para a morte pela violência policial, enfim, para o limbo social e o extermínio. Este é o Estado da financeirização: agigantado para os rentistas e mínimo para os mais pobres.
IHU On-Line — Quais são as falhas e acertos no processo de implantação do Estado de bem-estar social no Brasil? Alguns teóricos avaliam que o Estado de bem-estar social brasileiro é mínimo e outros afirmam que a Constituição de 88 prometeu demais nessa área. Qual seu diagnóstico?
Denise Gentil — Estou do lado dos que dizem que criamos um mini Welfare State em 1988, que tinha um tripé: saúde pública, assistência social e previdência social. O sistema de seguridade social foi tão bem montado que, até o ano de 2015, gerava enormes superávits. Para se ter uma ideia, entre 2007 e 2015, o sistema de seguridade social gerou um acúmulo de superávits de R$ 720 bilhões medidos a preços de 2016. Isso nos permite ver a sua potência arrecadatória. Não estou dizendo isso para enaltecer o sistema, porque um sistema de seguridade social não deve gerar superávit, não é esse o seu objetivo, mas o sistema que tínhamos, gerava, sim, superávits ou não haveria nenhuma lógica em se criar a Desvinculação de Receitas da União - DRU e outros mecanismos antidemocráticos de desvio de receitas. E quanto mais a economia crescia, mais sólido o sistema se mostrava, formando um círculo virtuoso nas finanças públicas em que o aumento do gasto gerava um volume muito maior de receitas. Portanto, é uma falácia dizer que esse sistema não tinha suporte financeiro para tantas promessas; é exatamente o oposto: tinha uma capacidade arrecadatória gigantesca que, em alguns anos, superou o orçamento da saúde da esfera federal e, portanto, poderia ter sido criada uma política social universal, com oferta ampliada de serviços públicos e pagamento de benefícios muito melhores para as famílias.
Esse sistema foi aniquilado pelos interesses financeiros, porque suas receitas foram desviadas para atender a outras despesas da União, que vão desde juros da dívida pública até o pagamento de qualquer gasto dos demais setores do orçamento. Portanto, houve vazamentos de receitas do sistema. Além disso, o governo precisou deteriorar esse sistema para pressionar pelas reformas que o mercado financeiro exigia. Além da elevação da DRU de 20% para 30%, o governo não cobrava as dívidas das grandes corporações, deixando acumular uma dívida ativa previdenciária que, em 2018, alcançou R$ 427 bilhões; não combatia a sonegação de contribuições sociais, estimada em R$ 500 bilhões ao ano; fez desonerações tributárias em escala gigantesca com recursos da seguridade social que alcançou a cifra de R$ 288 bilhões ao ano em 2018.
O déficit foi provocado pelo próprio governo, porque os interesses do mercado financeiro impuseram uma política social que, de um lado, destruía a arrecadação de tributos e, de outro, provocava a redução dos benefícios e deterioração da qualidade da oferta dos serviços. Essa estratégia abria mercado para o setor privado, principalmente para os fundos de previdência aberta, fundos private equities no setor de saúde e planos de saúde, como expliquei anteriormente. Enquanto existisse uma previdência pública sólida, tanto para os servidores públicos quanto para os trabalhadores do setor privado, e um sistema universal de saúde, não seria possível ampliar o mercado dos fundos de previdência aberta nem privatizar de forma acelerada a saúde via fundos private equities.
Além disso, não se elimina um sistema só com políticas que deterioram a qualidade dos serviços e desfalcam as receitas, mas também com propaganda enganosa. A grande mídia incutiu na mente das pessoas que a Constituição criou um Welfare State que prometia mais do que podia dar; e que, agora, essa Constituição não cabe mais no orçamento e, pior, está quebrando o país e impedindo o crescimento. Essa é a falsificação da realidade na qual o mercado financeiro quer que a sociedade acredite para gerar conformismo, resignação, adesões, sem questionamentos às reformas e, assim, imobilizar a reação dos descontentes e revoltados.
IHU On-Line — Pode nos dar exemplos de financeirização da política social hoje no Brasil?
Denise Gentil — Em nosso artigo publicado pela Novos Estudos Cebrap, avaliamos três setores — previdência, saúde e educação. Vamos exemplificar em um dos fronts mais importantes da financeirização, que é a educação superior.
O percentual de brasileiros com 25 anos ou mais com diploma universitário praticamente dobrou entre 2002 e 2014, passando de 7,6% para 13,3%, segundo dados da Pnad. O número de estudantes universitários, nesse mesmo período, subiu de 3 milhões para 6,48 milhões. Nesse processo, o Prouni, o Reuni e o Fies tiveram inquestionável contribuição. O Fies, o programa de crédito estudantil, se torna o vetor prioritário no apoio à expansão da oferta na rede privada. Até 2006, as faculdades e universidades eram entidades de pessoas físicas ou instituições sem fins lucrativos. Daí em diante, os grandes grupos do setor mudam de perfil e abrem seu capital na Bovespa, o que ocorreu principalmente ao longo dos anos de 2008 e 2009. Private equities internacionais passam a comprar participação nessas corporações, e o processo de financeirização na educação se alastra pelo empurrão estratégico do Fies.
A progressão acelerada de alunos de graduação financiados pelo Fies é assombrosa. Se tomarmos quatro importantes grupos privados de capital aberto — Kroton, Estácio, Anima, Ser Educacional — até 2010, a participação de beneficiários do Fies era inferior a 11%. Em cinco anos, aumentou exponencialmente, superando, em todos os casos analisados, 40% em 2015. O grupo Kroton passou a contar com mais de 60% de seus alunos de graduação financiados pelo Fies em 2014. Houve, ao mesmo tempo, uma ascensão do preço das ações dessas mesmas empresas, a partir de 2010, valor que acompanha a oferta crescente de crédito pelo Fies. Entre 2009 e 2017, as ações da Kroton valorizaram 769% e as da Estácio 238%, enquanto o Ibovespa variou 28,4% no período.
Esse movimento combinou lançamentos de IPOs, gerando receitas que, por sua vez, alimentaram aquisições a partir de 2011, numa velocidade impressionante, criando processos de concentração e financeirização. Qual é a questão? É que um setor, antes pensado como um direito de cidadania, foi se transformando por completo, fazendo com que um serviço essencial fosse progressivamente sendo financeirizado com o estímulo de recursos públicos. Em 2014, a totalidade do gasto federal com educação superior somou R$ 34 bilhões, ao passo que outros R$ 14 bilhões, ou o equivalente a 41,1%, foram repassados ao Fies como empréstimos aos alunos, entrando diretamente nos cofres dos fundos — mas poderiam ter criado vagas para os estudantes nas universidades públicas, em vez de gerar endividamento para as famílias dos estudantes. Em 2019, 60% ou três em cada cinco devedores do Fies estão com parcelas atrasadas. O atraso no pagamento do Fies chega a R$ 13 bilhões.
Tabela elaborada pela entrevistada
No setor de saúde, a financeirização é bem semelhante ao que ocorreu no setor de educação. Apesar de termos um sistema gratuito e universal, o gasto público, em 2014, correspondia a 46% de todo o dispêndio com saúde e atendimento médico no Brasil. A média mundial é mais alta, equivalendo a 60,1% do dispêndio total com saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, ao final de 2014, 50,4 milhões de pessoas possuíam um plano privado de saúde e 20,3 milhões possuíam exclusivamente planos odontológicos, contra, respectivamente, 31,5 milhões e 3,6 milhões em dezembro de 2002. Portanto, 28% da população brasileira estava coberta por algum tipo de seguro privado. O valor de mercado das empresas de planos de saúde e das seguradoras somava, em 2015, R$ 40,4 bilhões contra R$ 12,2 bilhões em 2002 (a preços de 2015), tendo triplicado em treze anos.
Esse processo recebeu fartos estímulos do governo federal por meio de várias medidas de incentivo à medicina privada. Como, por exemplo, as desonerações tributárias em saúde, que haviam se tornado ilimitadas no imposto de renda de pessoa física e jurídica; os novos critérios mais vantajosos para a concessão de certificados de filantropia privada na área médico‑laboratorial hospitalar; a correção de preços dos planos de saúde acima da inflação média do setor e da economia como ocorreu entre 2007 e 2016, quando a ANS autorizou um reajuste acumulado de 127,8% para os planos de saúde, contra um IPCA médio de 82,63%, sendo que o IPCA-saúde foi de 91,13%. As empresas privadas (hospitais e redes de laboratórios) se capitalizaram rapidamente, através da aquisição e injeção de recursos por Fundos de Investimento em Participações - FIP e da posterior abertura de capital na bolsa de valores. A isso somou‑se uma onda de aquisições e fusões que tem elevado a concentração no setor e a internacionalização.
Portanto, percebe-se que um dos tentáculos da dinâmica da financeirização da política social no Brasil pode ser revelado pelos dados de compra de empresas dos setores de saúde e educação por fundos de investimentos e por investidores estrangeiros que atuam no mercado de capitais. As ações em bolsa foram massivamente adquiridas por capital externo (mais de 70% das emissões entre 2007 e 2011, e 55% no período de 2013 a 2016) e por fundos de investimentos (entre 15% e 41% no período 2007 e 2016). Significa dizer que aproximadamente 85% das ações foram compradas por instituições que não estão implicadas com a qualidade da provisão desses serviços. O interesse está concentrado nos dividendos das empresas (caso minoritário) e na revenda das ações no mercado secundário. Falar de privatização já não dá conta de explicar esse processo de transferência de competências, que antes estavam nas mãos do Estado, para empresas voltadas para o lucro e para ganhos de capital de grandes grupos financeiros internacionais.
Outro caso bem clássico de financeirização está no setor de previdência. Temos uma situação em que várias reformas foram feitas desde os anos 1990 até esta última do governo Bolsonaro, uma após a outra, com o objetivo de reduzir a capacidade e o alcance desse sistema, abrindo espaço para os planos de previdência complementar. Em 1998, na era FHC, a reforma da previdência previu a possibilidade de limitação dos benefícios do Regime Próprio dos Servidores Públicos - RPPS ao teto do Regime Geral de Previdência Social - RGPS dos trabalhadores do setor privado, cujo valor é de R$ 5.839,45, desde que fosse oferecido um plano de previdência complementar aos servidores. O alvo principal do mercado financeiro era a uniformização desse teto dos dois regimes públicos (dos servidores e dos trabalhadores da iniciativa privada), o que passou a entrar em vigor após 2013. A partir desse ano, o servidor que ganha acima do teto do RGPS poderia vincular‑se ao fundo de pensão fechado do funcionalismo, com contrapartida paritária do governo. O novo regime de capitalização dos servidores públicos foi denominado Funpresp-Exe. Será o maior fundo de pensão da América Latina.
O estabelecimento do teto de aposentadorias em R$ 5.839,45 é, sem dúvida, o mecanismo mais efetivo de estímulo à acumulação financeira nos fundos privados de previdência complementar aberta, já que a renda de algumas camadas de servidores públicos e da classe média e alta supera em muito esse limite válido para ambos os regimes. Enquanto existissem dois regimes públicos de repartição simples, solidários e financeiramente sólidos, se restringiria o potencial de expansão dos fundos privados de previdência. Essa amarra pode ser destravada pelo estabelecimento de um teto de benefício num patamar baixo, insuficiente para atender a demanda da classe média e alta por proteção na idade avançada, fazendo com que ocorresse uma drenagem da maior parte da renda das famílias mais abastadas para os fundos de capitalização que se revelam de baixa rentabilidade e elevada volatilidade. Somente entre 2007 e 2017, o saldo de captação líquida dos fundos de previdência aberta saltou de R$ 14,8 bilhões para R$ 49,7 bilhões em valores constantes. O patrimônio líquido dos fundos de previdência aberta passou de R$ 145,4 bilhões, em 2006, para R$ 873,7 em 2019 (Anbima, dados de 2019).
A tendência é a previdência pública encolher, perdendo atratividade. Agora, com a nova reforma recém-aprovada em outubro de 2019, esse fundo, o Funpresp-Exe, que hoje é fechado e gerido por servidores públicos, poderá se transformar em um fundo aberto de capitalização privada, ou seja, em um fundo gerido pelos bancos. Sua abertura significa a conquista pelo mercado financeiro de uma fatia da classe média que tem um salário estável, relativamente alto em relação ao mercado, que ainda não tinha sido capturada — os servidores públicos. Onde são aplicados os recursos dos fundos de previdência complementar? Em títulos públicos: 92% das aplicações dos fundos de previdência aberta estão em títulos públicos. É uma estratégia muito poderosa, de captura da estrutura pública pelos interesses privados.
O governo não comenta, no debate, o valor de quase um bilhão de desonerações que ele concedeu desde 2003 até 2018. Por que o Estado não reverte as desonerações no momento em que o sistema entrou em déficit? Por que o governo não leva em consideração os R$ 720 bilhões de superávits desviados do sistema de seguridade social entre 2005 e 2015? Para onde foram esses recursos? Por que agora o governo simplesmente propõe uma reforma que implicará um corte brutal na renda de aposentadorias e pensões num momento de crise econômica em que a população está desempregada, precisando do seguro desemprego, de escolas gratuitas, de saúde pública, pois está adoecendo mais em função da pobreza e dos baixos salários etc.?
IHU On-Line — O governo ainda dispõe desses valores?
Denise Gentil — Dispõe, sim, mas só os utilizará se reverter a política fiscal atual, o que obviamente não fará. O governo tem em caixa, hoje, na conta única do Tesouro Nacional no Banco Central, R$ 1,2 trilhão, que, em parte, é o acúmulo de superávits de anos anteriores da Seguridade Social. Esses recursos estão líquidos no caixa do Banco Central, mas inutilizáveis em função da meta fiscal de resultado primário e do teto dos gastos. Agora que a economia está em crise, com altas taxas de desemprego e pobreza profunda, o governo deveria transferir renda para a população, ampliar a oferta de serviços públicos, criar frentes de trabalho, mas a proposta é outra: é reformar para cortar gastos, porém, sem limitar o gasto financeiro com juros e amortização da dívida. No acumulado dos últimos 12 meses até agosto de 2019, o governo pagou R$ 349 bilhões de juros da dívida pública, o correspondente a 5% do PIB, e até dezembro será muito mais. Os interesses dos rentistas são sagrados, inquestionáveis, inatingíveis pelo ajuste fiscal. Para os pobres, é opressão fiscal; para os ricos, são os privilégios financeiros da política fiscal.
Então, a estratégia é esta: provocar o desemprego, retirar a capacidade de luta dos sindicatos e dos movimentos sociais, baixar os salários para intimidar e oprimir a população, retirando sua capacidade de reação, porque, do contrário, não seria possível fazer as reformas previdenciária e trabalhista que implicarão em aposentadorias miseráveis, salários aviltantes e condições de trabalho degradantes. O governo prefere dizer para a população que essa é uma lógica das finanças públicas saudáveis, que o mercado é mais eficiente e que privatizar gerará mais recursos para o investimento público, que é necessário cortar na carte para reverter a trajetória da dívida pública, e toda uma ladainha neoliberal retrógrada. Mas a dívida pública é um passivo para o Estado que, ao mesmo tempo, é ativo do setor privado, é riqueza do sistema financeiro. Logo, a intenção não é reduzir a dívida pública, mas fazer a austeridade fiscal sobre os ombros dos mais pobres e assim abrir espaço para elevar o gasto financeiro com a compressão dos demais gastos primários, em busca da tranquilidade para a especulação com títulos públicos. A austeridade coloca a democracia em risco. Há um profundo conflito entre dois interesses contraditórios — direitos sociais e juros —, indicando que uma conciliação entre a estabilidade social e econômica na democracia é um projeto utópico e, que, portanto, o capitalismo financeirizado não comporta a democracia, nem políticas sociais universais.
IHU On-Line — Que tipo de reforma da previdência o Brasil precisaria na atual conjuntura, considerando as mudanças no mundo do trabalho e a expectativa de vida da população?
Denise Gentil — A Reforma de que o país precisa não pode ter corte de gastos, porque estamos diante de uma recessão que já vem se estendendo há cinco anos. Se a reforma não pode vir pelo gasto, tem que vir pelo lado da receita. Então, há duas saídas fundamentais para o problema previdenciário. A primeira é a busca pelo crescimento, usando de políticas macroeconômicas não recessivas, que gerem o pleno emprego da força de trabalho. O aumento da receita previdenciária será consequência da retomada sustentável do crescimento. Isso significa lidar com uma política monetária de juros muito menores e uma política fiscal de aumento de gastos que tenham um elevado multiplicador, de forma a gerar mais PIB e mais renda. Há estudos mostrando quais são os gastos com alto impacto multiplicador: investimento público, educação, saúde, Bolsa Família, BPC, previdência, são gastos com alto impacto multiplicador na economia. O equilíbrio fiscal decorrerá do crescimento; ele não precede o crescimento, porque a recessão não leva ao equilíbrio fiscal; ao contrário, ela o aprofunda.
A segunda saída do lado das receitas é uma reforma tributária, porque o mercado de trabalho está mudando substancialmente com a automação e a substituição da força de trabalho por robôs, por computadores. O fato de que agora estamos enfrentando a eliminação de determinadas profissões e a substituição por máquinas significa que enfrentaremos um desemprego estrutural no futuro; haverá uma grande quantidade de pessoas que estarão aptas e desejosas e não conseguirão um posto de trabalho. Então, qual é o futuro de um sistema de proteção social? Será necessária a substituição da tributação sobre a folha de salários por outras formas de tributação sobre lucros elevados, dividendos, grandes fortunas, heranças e ativos financeiros. Será também necessário gerar empregos no setor de serviços, porque é ali que vai estar a fonte de empregos, no cuidado com crianças e idosos, na educação e no turismo. A recuperação do meio ambiente é decisiva para gerar emprego e renda. Os empregos não estarão na agricultura nem na indústria, que vão se hipermecanizar.
Assista à íntegra da conferência Reforma da Previdência e o Brasil dos anos 2000. A financeirização da política social, proferida pela professora Denise Gentil no IHU: