23 Agosto 2019
Os diretores executivos de 181 das mais importantes multinacionais dos Estados Unidos, incluindo a Blackrock, Amazon, Whirlpool e GM, assinaram um manifesto nos últimos dias, publicado pela Business Roundtable, associação que conta entre os seus sócios com os gigantes da economia mundial, no qual se afirma que o lucro e o primado dos acionistas não podem mais ser os únicos princípios que norteiam uma empresa.
Trata-se de uma reviravolta bastante radical, se levarmos em conta que, a partir 1997, a Business Roundtable, em todos os documentos, sempre apoiou e aprovou o princípio do “primado dos acionistas”. Até hoje, as grandes empresas só existiam para servir aos interesses dos detentores do seu capital.
Com essa nova declaração, os diretores executivos se comprometem em liderar as suas empresas em benefício de todas as partes interessadas, a saber: clientes, empregados, fornecedores e toda a comunidade de referência. Sobre a notícia, pedimos um comentário do economista Stefano Zamagni.
Zamagni é economista italiano, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e presidente da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. É autor de inúmeros livros, incluindo, em português, “Economia civil: eficiência, equidade e felicidade” (Ed. Cidade Nova, 2010), em coautoria com Luigino Bruni.
O artigo é publicado por Settimana News, 22-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A notícia de que 200 das principais empresas de Wall Street e gigantes financeiros como JP Morgan, Amazon, BlackRock e General Motors publicaram um documento nos qual se convocam as empresas a não buscarem apenas o aumento dos lucros dos acionistas é boa. Porém, não é totalmente inesperada.
Há algum tempo, de fato, há pelo menos 10 anos, no mundo anglo-saxão, vão se difundindo posicionamentos desse teor. Há menos de um ano, por exemplo, o maior fundo de investimento dos EUA enviou uma carta com um conteúdo muito semelhante aos seus acionistas.
A notícia faz jus à concepção ainda dominante, segundo a qual as empresas só existem apenas para promover o interesse dos próprios acionistas. A ideia de maximizar o lucro é um pilar fundamental do pensamento liberal e neoliberal, que é o paradigma ainda dominante no campo econômico. Assim, encontrar 200 grandes empresas que se posicionam contra o mito do chamado “primado do acionista” é uma notícia que deve ser saudada com interesse.
Obviamente, devemos nos perguntar: como nasceu esse mito do “primado do acionista”? Até os anos 1970, de fato, não era assim... Basta consultar artigos, livros, ensaios escritos antes daqueles anos: a empresa tinha que servir aos interesses da comunidade em que se desenvolvia. Mas hoje ninguém se lembra disso nem evidencia mais. Trata-se, portanto, de um mito que surgiu nos anos 1970 graças ao trabalho de um grupo de economistas acadêmicos norte-americanos (que tinham sua sede em Chicago), que, com os seus escritos e modelos matemáticos, acreditavam ter demonstrado – com base científica – como a empresa que maximiza o lucro, na realidade, promove o bem de toda a comunidade, porque utiliza os recursos do modo mais eficiente, criando o máximo de valor agregado.
Daí o conhecido aforisma segundo o qual, se a maré subir, todos os barcos – até mesmo os menores – subirão em consequência. Se mais valor agregado for produzido, haverá mais para todos.
Durante 50 anos, vivemos à sombra desse mito, alimentado por aquela que assume o nome de “Trickle-Down” Theory, teoria da “recaída favorável” ou do “gotejamento”, segundo a qual quando o líquido (a riqueza) dentro do copo cresce, em certo ponto transborda e escorre para baixo, provocando recaídas favoráveis também sobre os mais pobres.
Os economistas de que falo – alguns dos quais conheci pessoalmente – carregam uma grave responsabilidade por essas teorias, e eu espero, pelo menos, que as tenham elaborado e defendido de boa-fé. Porque produziram desastres por causa da fé posta em um modelo matemático. Esses economistas acabaram dando uma cobertura científica aos desejos menos nobres dos empresários mais ricos e inescrupulosos da época.
Por que esse mito é, na realidade, falso? Por pelo menos três razões.
Uma de caráter jurídico: nenhuma legislação do mundo – repito, nenhuma – impõe às empresas vínculos legais para maximizar o lucro. Uma segunda de caráter econômico: a empresa obtém o lucro graças ao concurso de uma pluralidade de sujeitos. Não só quem coloca o capital; mas também quem oferece o próprio trabalho; quem compra as mercadorias ou os serviços; e também o território, a comunidade local, que, se não for organizada adequadamente, não permite que a empresa nasça e se desenvolva.
O lucro, portanto, é fruto de todas essas quatro classes de stakeholders, e é óbvio que não se pode esperar exclusivamente em um dos sujeitos. Trata-se de uma lógica elementar que até mesmo uma criança entende: se permitirmos que apenas um único sujeito desfrute do lucro exclusivamente, legitima-se um verdadeiro furto em detrimento das outras partes envolvidas. A empresa não depende apenas do capital.
Por fim, há uma razão de caráter ético: a propriedade privada só tem sentido em vista do bem comum e não do bem particular de um grupo. É verdade – como se diz – que a doutrina social da Igreja justifica a propriedade privada; mas o faz para maximizar o bem comum, e não o lucro de uma categoria particular (os mais ricos).
Essas coisas já estavam todas escritas desde 2009 na encíclica Caritas in veritate, de Bento XVI. As mesmas denúncias foram reiteradas com força e clareza por Francisco na Evangelii gaudium e na Laudato si’. No número 54 da Evangelii gaudium, lemos: “alguns defendem ainda as teorias da ‘recaída favorável’ que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar”.
Apraz-me enfatizar isso mais uma vez exatamente agora. Porque, quando esses documentos foram publicados, levantou-se um coro de críticas, até mesmo por parte de economistas católicos, segundo os quais era bom que os papas não se ocupassem de economia e se dedicassem a outra coisa. Hoje, as mesmas coisas são escritas por 200 grandes empresas. Pois bem, agora, os economistas que zombaram do papa deveriam pelo menos ter a humildade de admitir que estavam errados! Isso pode acontecer na vida... mas eu temo que ninguém será capaz desse nobre gesto.
O que dizer? Que me alegra poder constatar como a doutrina social da Igreja, mais uma vez, soube jogar antecipadamente, denunciando que está cientificamente errada a tese subjacente ao modelo econômico que regulou a vida das nossas sociedades nos últimos 30 anos. É o destino da profecia: ver antecipadamente as coisas que acontecerão, mas não ser acreditada, ser zombada ou silenciada (como ocorreu com o profeta Jeremias). Mas, no fim, as contas voltam.
Acredito que o mundo católico deve se incentivar com essa nova refutação da tese segundo a qual a economia seria regulada por leis naturais e intocáveis. Um paradigma que minou as nossas sociedades e arruinou a cultura católica.
Ouço hoje esta pergunta ser reproposta: mas essas 200 empresas assinaram por convicção ou fizeram isso de modo instrumental, por algum interesse? Que é a pergunta dos hipócritas, que confundem os planos. Não podendo julgar a consciência de ninguém, nunca saberemos as razões...
Mas o importante é que essas coisas foram escritas e assinadas, independentemente do julgamento sobre a consciência. Deve nos interessar que hoje se diga às empresas que elas existem a serviço de uma prosperidade inclusiva, de todos, não apenas de alguns em detrimento de outros.
Na psicologia, existe uma teoria segundo a qual, devido à repetição de um gesto (bom), uma pessoa, embora inicialmente cética, se convence da sua bondade. É o fundamento de toda pedagogia: nós todos fazemos com que as crianças repitam gestos sem a pretensão de que estejam convencidos, porque queremos que os aprendam para depois assumi-los livremente como se fossem seus. É o caminho da virtude, ou, melhor, de um habitus que se desenvolve através da repetição de um gesto bom. E é mais um incentivo para o pensamento cristão, para que se convença de que será capaz de dar, no futuro próximo, um passo importante em matéria econômica.
A esse respeito, no próximo mês de março, o papa quis convocar a Assis alguns jovens empreendedores (todos com menos de 35 anos) para abordar junto com eles essas temáticas. É a primeira vez que isso ocorre, e me surpreende que, nas nossas comunidades, não se esteja falando disso. De fato, trata-se de um evento de porte revolucionário. Porque o papa não os convoca para lhes dar uma lição de moral, mas porque quer enfrentar com eles esses temas econômicos e ecológicos de porte mundial. E quer jovens, porque serão eles que vão mudar as coisas.
Entristece-me constatar que a Igreja italiana não se expressa sobre esses temas. O clero, infelizmente, não estuda mais... Mas são questões que tocam a vida e sobre as quais as pessoas gostariam de ouvir uma palavra sensata capaz de fundamentar a esperança evangélica em um mundo diferente, mais solidário e, portanto, mais humano.
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O “primado dos acionistas”: um (falso) mito no fim da linha? Artigo de Stefano Zamagni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU