02 Junho 2018
Durante 20 anos, o padre Francisco Javier Astaburuaga Ossa esteve ao lado das vítimas de abuso no Chile, tentando oferecer um apoio psicológico, espiritual e, sobretudo, jurídico. Anos e anos escutando a dor dos outros, mas sem guardar raiva ou rancor. Hoje, ele se apresenta como uma pessoa serena: “Nunca perdi a esperança”, continua repetindo aos jornalistas que se encontram com ele na Praça de São Pedro, e aos quais ele agradece “pelo serviço à verdade” e por “não terem montado um circo midiático”.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada em Vatican Insider, 01-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com uma mochila cinza esverdeado nas costas, mala com rodinhas na mão, o sacerdote de 57 anos, professor de Direito Canônico na Universidade Católica de Santiago, chegou a Roma junto com outros nove padres, incluindo alguns “vítimas de abusos sexuais, psicológicos e de poder”, para se encontrar com o Papa Francisco a partir dessa sexta-feira, 1º, até domingo, 3 de junho.
Ele nunca sofreu abusos (“Ninguém me fez nada”, diz ele sorrindo, com uma certa amargura). Chega ao Vaticano em veste de “acompanhador”, como ele esclarece. Isto é, continua desempenhando aquele papel que sempre desempenhou desde 2001, pouco depois de obter o doutorado em Roma, quando retornou ao seu país e, imediatamente, ficou do lado das vítimas (Juan Carlos Cruz e James Hamilton, em primeiro lugar), deparando-se várias vezes contra um muro de omissão, silêncio, acobertamento.
Você foi obstaculizado no seu trabalho?
Sim, muito.
Por quem em particular?
Bem, o papa escreve claramente na sua carta. Ou, melhor, nas suas cartas... Mas eu nunca perdi a esperança, e o fato de que, depois de 20 anos passados ao lado das vítimas, estou aqui é a demonstração disso.
Que expectativas você tem desta visita com o papa?
Acho que é uma oportunidade única dialogar com o Santo Padre e os outros sacerdotes. Queremos falar, e o papa deseja escutar. É um momento privilegiado.
E o que as vítimas esperam dessas conversas com Bergoglio?
A saúde do coração. É o mais importante. Poder continuar vivendo tranquilos depois da grande dor que sofreram.
Você citou antes a carta enviada pelo papa ao povo chileno, na qual Francisco pede uma “renovação eclesial”. O que você acha desse documento?
Parece-me excelente, é uma carta de grande profundidade pastoral, escrita com o coração. O papa faz um convite a todo o povo de Deus para que seja partícipe e corresponsável na transformação da Igreja. Isso envolve uma grande participação do laicato. Fiquei muito impressionado também ao ver como o Santo Padre se encarrega das dificuldades, dos nossos problemas, das culpas, das falhas e nos convida a seguir em frente. Todos juntos.
O Papa Francisco também fala de cumplicidade, silêncios, acobertamentos...
Sem dúvida, são temas sobre os quais falaremos nos nossos encontros destes dias, como, aliás, já aconteceu durante as conversas com os bispos da Conferência Episcopal. Eu acho que é importante que sempre haja uma confrontação. O papa escutou as vítimas, escutou os bispos, agora escuta um grupo de sacerdotes. Tudo se insere naquela dinâmica do caminho sinodal que o pontífice sempre invocou.
Você acompanhou Cruz e Hamilton...
Sim, justamente nos últimos dias falei com Jimmy e Juan Carlos [Hamilton e Cruz] antes de partir. Eles estavam contentes, mandam suas saudações para Francisco.
Como dizia, você acompanhou a eles e a outras vítimas durante cerca de 20 anos. É muito tempo. Quando encontrou obstáculos, você pensou alguma vez em renunciar, em desistir?
Não, nunca perdi a esperança. Acompanhar uma vítima de abuso durante décadas significa, acima de tudo, ter muita paciência, confiança em Deus, fé profunda a ser cultivada dia após dia, para não se deixar esmagar pelas dificuldades que, em todo esse tempo – repito –, foram numerosas e complexas. Deus sempre nos surpreende. Eu disse isto na semana passada: em três meses, a história mudou! Depois de tantos anos, nunca pensaria em ter a possibilidade de dialogar face a face com o Santo Padre sobre esses temas.
De todas as experiências que você coletou, qual foi a que mais lhe feriu?
Boa pergunta... Responder é difícil. Quando se escutam tantas dores, no fim, cria-se uma dor dentro de você, muito forte, um sofrimento profundo. Mas, repito, é preciso seguir em frente com esperança.
Nos últimos anos, você tentou entrar em contato com a cúpula da Santa Sé para pedir uma audiência com o papa?
Sim, muitíssimas vezes...
Mas...?
Não conseguimos organizar um encontro, mas o trabalho seguir em frente mesmo assim, por anos e anos. Estivemos continuamente em comunicação. Estes três dias aqui em Roma com o Papa Francisco são a coroação de todo um processo.
Você tem a impressão de que, a partir do declínio da Igreja chilena, o Papa Francisco está enviando uma mensagem também ao resto do mundo?
Acho que sim, a situação é paradigmática. E, lendo com atenção a carta a que nos referíamos, nota-se que o papa convoca à centralidade de Jesus Cristo, a renovar a fé, porque, sempre depois da experiência da cruz, há a ressurreição. Portanto, do papa, há um convite a ressuscitar. E é válido para a Igreja universal, não só para a chilena.
Nessa quinta-feira, chegou a comunicação de uma nova missão de Dom Scicluna e do padre Bertomeu, desta vez em Osorno. O que você acha?
Acho que é um gesto de profunda proximidade do papa ao Chile. Enviar, mais uma vez, dois dos seus delegados manifesta uma preocupação especial por parte do pontífice em encontrar soluções para esses problemas que pesam sobre toda a Igreja e a sociedade.
E, por sua vez, como você avalia a renúncia em massa de todos os bispos depois dos três dias no Vaticano?
Acho que foi um gesto muito forte, também verdadeiro e necessário. De todos os modos, todos esperamos a resolução do papa. Se é preciso fazer mudanças, que sejam feitas.
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Padre chileno que acompanha as vítimas de abuso há anos: ''Fui obstaculizado, mas agora mudou'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU