01 Junho 2018
O grito das vítimas de abuso “chegou ao céu. Gostaria, mais uma vez, de agradecer publicamente a valentia e a perseverança de todas elas. Este último tempo é tempo de escuta e discernimento para chegar às raízes que permitiram que tais atrocidades ocorressem e se perpetuassem, e assim encontrar soluções ao escândalo dos abusos não com estratégias meramente de contenção – imprescindíveis, mas insuficientes – mas com todas as medidas necessárias para poder assumir o problema em a sua complexidade”.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada em Vatican Insider, 31-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Essa é uma passagem-chave da carta do Papa Francisco ao povo do Chile, um texto de oito páginas datado de 31 de maio de 2018, publicado no site do episcopado chileno às 12h (hora local em Santiago). Nela, fica claro que o problema dos abusos sexuais, de poder e de consciência no Chile não pode ser reduzido a alguns casos circunscritos, mas é uma doença mais profunda, ligada a um modo clerical de conceber a Igreja, que não será superado sem a colaboração de todos.
Bergoglio lembra as orações pedidas aos fiéis chilenos antes do encontro com os bispos ocorrido no Vaticano e que concluiu com a surpreendente decisão destes últimos de colocar novamente nas mãos do papa o seu mandato para deixá-lo livre para decidir.
“Apelar a vocês, pedir-lhes orações – escreve Francisco – não foi um recurso funcional, nem um simples gesto de boa vontade”, mas “eu quis colocar o tema onde tem que estar: a condição do Povo de Deus”.
Antes de falar diretamente sobre o tema dos abusos, o papa descreve a situação de uma Igreja doente de clericalismo. “Toda vez que tentamos suplantar, calar, menosprezar, ignorar ou reduzir a pequenas elites o Povo de Deus em sua totalidade e diferenças, construímos comunidades, planos pastorais, ênfases, teologias, espiritualidades, estruturas sem raízes, sem história, sem rostos, sem memória, sem corpo e, em última análise, sem vidas. Desenraizarmo-nos da vida do povo de Deus nos precipita na desolação e perversão da natureza eclesial; a luta contra uma cultura do abuso exige renovar essa certeza”.
“No povo de Deus – reafirma o pontífice – não existem cristãos de primeira, segunda ou terceira categoria. Sua participação ativa não é questão de concessões de boa vontade, mas é constitutiva da natureza eclesial. É impossível imaginar o futuro sem essa união operante em cada um de vocês, que certamente reivindica e exige formas renovadas de participação. (...) A renovação da hierarquia eclesial por si mesma não gera a transformação à qual o Espírito Santo nos impulsiona. Exige-nos promover conjuntamente uma transformação eclesial que envolva a todos nós.”
O problema não se resolve na raiz sem o envolvimento de todo o povo de Deus, não se resolve apenas com dispositivos técnicos ou novas normas, não se resolve sem conversão e disponibilidade à obra do Espírito Santo. Por isso, afirma Francisco, é preciso “olhar para o presente sem evasões, mas com valentia, com coragem, mas sabiamente, com tenacidade, mas sem violência, com paixão, mas sem fanatismo, com constância, mas sem ansiedade, e assim mudar tudo aquilo que hoje põe em perigo a integridade e a dignidade de cada pessoa; já que as soluções necessárias exigem encarar os problemas sem ficar presos neles ou, o que seria pior, repetir os mesmos mecanismos que queremos eliminar”.
Depois, o pontífice agradece às vítimas e às pessoas que lhes deram ouvidos. “Todo o processo de revisão e purificação que estamos vivendo é possível graças ao esforço e perseverança de pessoas concretas que, mesmo contra toda a esperança ou manchadas de descrédito, não se cansaram de buscar a verdade; refiro-me às vítimas dos abusos sexuais, de poder, de autoridade e àqueles que, em seu momento, acreditaram nelas e as acompanharam. Vítimas cujo clamor chegou ao céu”.
“Gostaria, mais uma vez, de agradecer publicamente – continua Francisco – a valentia e a perseverança de todos eles. Este último tempo é tempo de escuta e discernimento para chegar às raízes que permitiram que tais atrocidades ocorressem e se perpetuassem, e assim encontrar soluções para o escândalo dos abusos não com estratégias meramente de contenção – imprescindíveis, mas insuficientes – mas com todas as medidas necessárias para poder assumir o problema em sua complexidade.”
Francisco enfatiza o problema da falta de escuta às vítimas de abuso. “Creio que aqui reside uma das nossas principais faltas e omissões: o fato de não saber escutar as vítimas. Assim se construíram conclusões parciais, às quais faltavam elementos cruciais para um discernimento sadio e claro. Com vergonha, devo dizer que não soubemos escutar e reagir a tempo”.
A visita de Dom Scicluna e do Mons. Bertomeu, os dois prelados autores do inquérito que formou a base para a virada decidida pelo papa, “nasce ao constatar que existiam situações que não soubemos ver e escutar. Como Igreja, não podíamos seguir caminhando ignorando a dor de nossos irmãos”.
“Nesses encontros” com as vítimas, explica o papa, “constatei como a falta de reconhecimento/escuta de suas histórias, assim como o reconhecimento/aceitação dos erros e das omissões em todo o processo, nos impedem de seguir caminhando.” Um reconhecimento de Francisco que “quer ser mais do que uma expressão de boa vontade para com as vítimas, mas sim uma nova forma de nos colocarmos diante da vida, diante dos demais e diante de Deus”.
“O ‘nunca mais’ à cultura de abuso – escreve Bergoglio na carta aos chilenos –, assim como ao sistema de encobrimento que lhe permite se perpetuar, exige trabalhar entre todos para gerar uma cultura do habitação que impregne as nossas formas de nos relacionar, de rezar, de pensar, de viver a autoridade; nossos costumes e linguagens, e nossa relação com poder e o dinheiro.”
“Hoje sabemos que a melhor palavra que podemos dizer diante da dor causada – diz o papa – é o compromisso com a conversão pessoal, comunitária e social que aprenda a escutar e cuidar especialmente dos mais vulneráveis. Urge, portanto, gerar espaços onde a cultura do abuso e do encobrimento não seja o esquema dominante; onde não se confunda uma atitude crítica e questionadora com traição.”
Aqui, Francisco coloca o dedo na ferida das práticas eclesiais uniformizantes e pouco respeitosas das experiências e das exigências da base.
“Isso deve nos impulsionar, como Igreja, a buscar com humildade a todos os atores que configuram a realidade social e promover instâncias de diálogo e de confrontação construtiva para caminhar rumo a uma cultura do cuidado e da proteção. Pretender essa obra somente a partir dos nossos ou com nossas forças e ferramentas nos encerraria em perigosas dinâmicas voluntaristas que pereceriam no curto prazo.”
É um convite à Igreja para colaborar com a sociedade e com as autoridades públicas que se ocupam de criar um ambiente seguro para os menores.
O papa exorta “todos os cristãos e especialmente os responsáveis por centros de formação educativa terciária, de educação formal e não formal, centros de saúde, institutos de formação e universidades a unir esforços nas dioceses e com a sociedade civil toda para promover lúcida e estrategicamente uma cultura do cuidado e da proteção. Que cada um desses espaços promova uma nova mentalidade”.
“A cultura do abuso e do encobrimento é incompatível com a lógica do Evangelho – reitera Bergoglio – já que a salvação oferecida por Cristo é sempre uma oferta, um dom que reivindica e exige liberdade. Lavando os pés dos discípulos é como Cristo nos mostra o rosto de Deus. Nunca por coação nem por obrigação, mas por serviço. Digamo-lo claramente: todos os meios que atentem contra a liberdade e integridade das pessoas são antievangélicos.”
“Convido a todos os centros de formação religiosa, faculdades teológicas, institutos terciários, seminários, casas de formação e de espiritualidade a promover uma reflexão teológica que seja capaz de estar à altura do tempo presente, a promover uma fé madura, adulta e que assuma o húmus vital do Povo de Deus com suas buscas e questionamentos.”
Assim, Francisco quer “promover comunidades capazes de lutar contra situações abusivas; comunidades em que o intercâmbio, a discussão, a confrontação sejam bem-vindos. Seremos fecundos na medida em que potencializarmos comunidades abertas a partir de seu interior e assim se libertem de pensamentos fechados e autorreferenciais cheios de promessas e miragens que prometem vida, mas que, em última análise, favorecem a cultura do abuso”.
Por fim, após recordar a importância da pastoral popular como antídoto ao clericalismo que “busca sempre controlar e frear a unção de Deus sobre seu povo”, Francisco convida a olhar também para o bem que existe e para os “muitos fiéis leigos, consagrados, consagradas, sacerdotes, bispos que dão a vida por amor nas zonas mais recônditas da querida terra chilena”.
O convite, que ecoa o discurso do próprio Bergoglio aos consagrados em Santiago do Chile, proferido durante a viagem de janeiro passado, é a “não dissimular, esconder ou encobrir as nossas chagas. Uma Igreja chagada é capaz de compreender e de se comover com as chagas do mundo de hoje, torná-las suas, sofrê-las, acompanhá-las e mover-se para buscar curá-las. Uma Igreja com chagas não se põe no centro, não se crê perfeita, não buscar encobrir ou dissimular seu mal, mas põe ali o único que pode curar as feridas e tem um nome: Jesus Cristo”.
“Essa certeza é a que nos moverá – conclui o pontífice – a buscar (...) o compromisso de gerar uma cultura em que cada pessoa tenha direito de respirar um ar livre de todo tipo de abusos. Uma cultura livre de encobrimentos que acabam viciando todas as nossas relações. Uma cultura que, diante do pecado, gere uma dinâmica de arrependimento, misericórdia e perdão, e, diante do delito, a denúncia, o juízo e a sanção.”
Isto é, o oposto do silêncio, da cobertura, do descrédito das vítimas, da defesa autorreferencial com atitudes de casta, que infelizmente foram verificados no Chile, e não só no Chile.
Para ler a íntegra da carta, no original, em espanhol, clique aqui.
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Papa escreve aos chilenos e agradece pela coragem das vítimas de abuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU