Dietrich Bonhoeffer (+09-04-1945), o teólogo mártir

Arte: IHU

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin | 14 Abril 2022

 

Quem sou eu?
A própria pergunta nesta solidão
de mim parece pretender zombar.
Quem quer que sempre eu seja,
tu me conheces, ó meu Deus,
sou teu.

 

Este fragmento de um dos poemas do teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, assassinado pelo Terceiro Reich durante a Segunda Guerra Mundial em 09 de abril de 1945, expressa sua identidade e sua teologia. Enforcado pelos nazistas aos 39 anos, Bonhoeffer orientou sua vida a partir da questão que ainda não saiu de moda e com a qual os cristãos voltam a se confrontar com a emergência da guerra entre a Ucrânia e a Rússia, mas também com o aumento da pobreza e das mazelas sociais, do sofrimento e da violência que nunca se ausentam: “O que é o cristianismo, ou ainda, quem é de fato Cristo para nós hoje?”

 

O relato do médico que foi testemunha ocular dos últimos minutos da vida do teólogo confirma sua adesão radical:

 

"Através da porta entreaberta em uma sala dos barracos, eu vi o pastor Bonhoeffer, antes de vestir o seu uniforme da prisão, ajoelhar-se no chão para rezar a Deus com fervor. Fiquei profundamente tocado pelo modo com que esse homem amável rezava, tão devoto e seguro de que Deus ouvia a sua oração. No lugar da execução, ele disse outra breve oração e, depois, subiu os degraus para o patíbulo, corajoso composto. A sua morte se seguiu depois de poucos segundos. Nos quase 50 anos de profissão médica, eu nunca tinha visto um homem morrer tão totalmente submisso à vontade de Deus".

 

A ascensão de Hitler ao poder na Alemanha dividiu a comunidade cristã do país à época. Bonhoeffer decidiu permanecer na Igreja Confessante, contrária ao nazismo e à legislação contra os judeus, enquanto outros optaram por seguir o novo messias. As escolhas decorrentes dessa decisão o conduziram ao encarceramento em 1943.

 

De bons poderes
(Música de Siegfried Fietz para a poesia de Dietrich Bonhoeffer. Versão brasileira de Ilson Kayser)

 

De bons poderes fiel e em paz cercado,
tranquilo consolado, sem pesar,
ao vosso lado nestes dias quero
estar, convosco em ano novo entrar.

 

Maravilhosamente bem guardados,
confiantes esperamos o porvir
De noite e dia em Deus aconchegados
e assim em cada dia que surgir.

 

Ainda nos oprimem dias idos,
fantasmas do passado sobrevêm.
Ó Deus, concede aos homens desvalidos
a salvação que aguarda lá no além.

 

Maravilhosamente bem...

 

E caso o amargo cálice servires,
de sofrimento a transbordar, então
mui gratos, sem tremer, conforme o queres,
o recebemos de tua boa mão.

 

Maravilhosamente bem...

 

Porém, se queres dar-nos alegrias
no mundo, ainda, com o seu fulgor,
então lembrar queremos idos dias,
e a vida tua só será, Senhor.

 

Maravilhosamente bem...

 

E que ardam hoje cálidas as velas
que vieste em nossas trevas acender.
E a todos nós reúne - que o concedas!
A noite tua luz há de vencer.

 

Maravilhosamente bem...

 

E quando agora a calma nos envolve,
do mundo ouçamos o celeste som
que imperceptível sobre nós se estende,
dos filhos teus a glória em alto tom.

 

Maravilhosamente bem...

 

 


Oposição ao nazismo

 

Segundo Nicoletta Capozza, filósofa italiana especialista na obra do teólogo e professora do Instituto Superior de Ciências Religiosas em Verona, "Bonhoeffer soube estar e viver no limite e na contradição, em solidariedade com os irmãos sofredores, sem virar o rosto para o outro lado, sem se fechar, sem ignorar os seus gritos. E, por isso, foi enforcado no campo de Flossenbürg no dia 9 de abril de 1945".

 

A oposição de Bonhoeffer ao nazismo e seu martírio durante a Segunda Guerra Mundial foram fundamentados na crença de que "Deus se manifesta apenas em e por meio de Jesus Cristo" e de que a "Encarnação e a Ressurreição não destroem o mundo, mas sim o afirmam", disse Marcia Pally, professora na Universidade de Nova York, em artigo publicado no início deste ano no La Croix International, reproduzido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

 

A memória de Bonhoeffer, mas sua própria vida, atualizam o mistério da Paixão de Cristo, que se atualiza todos os dias na história da humanidade, entre aqueles que, como ele, são torturados, desprezados, assassinados e descartados. Para quem não professa a mesma fé do teólogo cristão, por vezes é difícil compreender sua radicalidade na vivência do Evangelho: depois de concluir o doutorado com apenas 21 anos, tendo uma carreira universitária promissora pela frente, escolheu dar a vida pregando na Igreja Confessante e combatendo um regime político cujo poder ofendia a Deus, sem nenhuma perspectiva sobre o próprio futuro. As palavras que ele proclamou no rádio em 1º de fevereiro de 1933, ao vivo, depois da ascensão de Hitler ao poder, expressam exatamente isso e continuam sendo uma advertência para todos que buscam um messias na política:

 

“Se o Führer se deixar levar pelos governados a ser o seu ídolo – e o governado sempre esperará isso dele –, a imagem do líder (Führer) descambará para a do tentador (Verführer)... Governante e governo que se divinizam afrontam a Deus”.

 

Segundo Alessandro Zaccuri, na contestação ao apoio das confissões cristãs ao nazismo, Bonhoeffer alertava que "nas igrejas não pode haver 'altares laterais para a adoração dos homens'".

 

 

Dimensão cristológica: a teologia da encarnação e da cruz

 

De acordo com Nicoletta Capozza, as pesquisas desenvolvidas ao longo dos anos 1980 e 1990 sobre a obra de Bonhoeffer redescobriram "a dimensão profundamente cristológica da reflexão bonhoefferiana, cujo desenvolvimento é revisto na sua profunda unitariedade como teologia da encarnação e da cruz, aberta à questão da relação com o outro e da implicação responsável na história".

 

Três expressões dão o tom das reflexões teológicas e das ações de Bonhoeffer: "descentramento", "coragem" e "o olhar a partir de baixo.

 

Ela explica cada uma delas, começando pelo "descentramento":

 

"Descentramento, acima de tudo. Na época da busca pela identidade, quando o mantra mais difundido é 'realizar-se', quando o imperativo categórico parece ter se tornado 'aproveite todas as possibilidades que a vida oferece para desenvolver todas as suas potencialidades', Bonhoeffer, com as suas escolhas e os seus escritos, propõe o exemplo de uma vida despedaçada, cortada, que permaneceu 'em potência', tanto na esfera pessoal dos afetos, porque Bonhoeffer jamais conseguiria levar a cumprimento o casamento com a noiva Maria von Wedemeyer, tanto na esfera profissional, porque o teólogo não poderia elaborar completamente as intuições dos últimos anos e colher os seus frutos.

 

Bonhoeffer propõe uma vida que permaneceu como fragmento, na qual o ponto focal não está na própria identidade, mas, precisamente, no descentramento, não naquilo que realizou para si, mas naquilo que deixou, não naquilo que alcançou, mas naquilo do qual se desligou (a carreira universitária, a segurança econômica e social, a família e o amor, a liberdade, a vida…) não por uma vontade dolorista, mas apenas para ser fiel ao seguimento de Cristo".

 

 

No artigo publicado no L’Osservatore Romano, Nicoletta Capozza citou um trecho de uma carta que Bonhoeffer escreveu da prisão em 21 de julho de 1944, um dia após o atentado fracassado contra Hitler, ao amigo Bethge. Naquelas linhas, expressa a profunda convicção que orientou sua vida, a ponto de ele próprio dá-la:

 

“Quando renunciamos completamente a fazer algo de nós mesmos – um santo, um pecador arrependido ou um homem da Igreja (uma assim chamada figura sacerdotal), um justo ou um injusto, um doente ou um sadio – (...) então jogamo-nos completamente nos braços de Deus, então não levamos mais a sério os próprios sofrimentos, mas os sofrimentos de Deus no mundo, então vigiamos com Cristo no Getsêmani, e, creio eu, esta é a fé, está a metanoia/μετάνοια, e assim nos tornamos homens, nos tornamos cristãos”.

 

Em outras palavras, Nicoletta traduz o pensamento de Bonhoeffer e de tantos que optaram pelo mesmo caminho:

 

"Tornamo-nos plenamente homens e mulheres quando renunciamos a fazer algo de nós, quando aceitamos abandonar o modelo de sucesso que a sociedade mais ou menos nos impõe, quando não olhamos para as próprias dores e para os próprios sofrimentos, mas conseguimos afastar o olhar de nós mesmos para orientá-lo ao mundo, para a dor dos outros; e nos tornamos cristãos quando, dessa dor, reconhecem-se os sofrimentos de Deus no mundo (Mt 25,31-46). A realização da própria vida se dá no êxodo de si mesmo. Este é o ensinamento de Bonhoeffer".

 

Coragem

 

A segunda palavra, pontua, pode servir como uma âncora não só no atual momento histórico em que as incertezas e inseguranças voltam a assombrar o horizonte do futuro, mas para nos lembrar que a era dos seguros nos fez perder a dimensão e o sentido do que coragem significa.

 

"A segunda palavra, depois, é: coragem. Trata-se de uma palavra que está sofrendo uma grande crise nos últimos anos: estamos na era dos seguros (seguro de vida, seguro do carro, patrimonial, seguro-saúde...), seguros mais ou menos obrigatórios, que tem como finalidade afastar cada vez mais a linha do perigo, até quase apagá-la. E, junto com o perigo, também se apaga a coragem.

 

No início do terceiro milênio, a coragem parece uma virtude fora de moda: não se pede aos jovens a coragem de enfrentar a vida, mas sim as competências adequadas para se defenderem dos desafios do mundo. A educação e a escola visam, em primeiro lugar, a 'armar' as crianças e os adolescentes para uma batalha em que as variáveis devem ser o máximo possível controláveis.

 

Na realidade, como escreve o psicanalista argentino Miguel Benasayag, em 'Funzionare o esistere?' [Funcionar ou existir?], 'em cada constelação da existência, se não houver um mínimo de coragem, afunda-se no nada'. Não é possível eliminar o medo do escuro simplesmente acendendo a luz. Chega um momento em que a escuridão deve ser enfrentada, simplesmente, com coragem e sem garantias. Sem coragem, não se pode assumir responsabilidades e, portanto, não é possível se tornar homens e mulheres adultos, maduros, capazes de estar de pé, apesar e junto com todas as próprias fragilidades".

 

 

“O olhar a partir de baixo”

 

A terceira expressão empregada por Bonhoeffer está diretamente conectada com a primeira. Para "olhar a partir de baixo" é preciso descentrar-se. Esse discurso, conforme menciona a pesquisadora, está na boca e nas ações do Papa Francisco todos os dias, quando não só convoca os cristãos ao exercício da caridade e da política com responsabilidade, mas quando ele próprio se junta aos excluídos ou intercede por eles.

 

"A terceira palavra que Bonhoeffer nos entrega e que nos interpela particularmente é 'o olhar a partir de baixo'. Em um texto redigido pouco antes da sua prisão, o teólogo resistente escreveu: 'Continua sendo uma experiência de valor excepcional o fato de ter aprendido, enfim, a olhar para os grandes eventos da história universal a partir de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados , dos impotentes, dos oprimidos e dos ridicularizados, em uma palavra, dos sofredores'.

 

Como lembrou o Papa Francisco na bênção Urbi et Orbi do dia 27 de março de 2020, se 'estamos todos no mesmo barco', o testemunho de Bonhoeffer, e com ele de todos os mártires, nos diz que não é a partir da primeira classe que se pode entrever a direção que o navio toma, mas sim da posição do mastro, que está no alto, como a cruz para os cristãos".

 

 

 

Por causa das suas convicções, disse o ensaísta e crítico literário italiano Pietro Citati, "Dietrich Bonhoeffer sabia que, para ele, só existia um caminho: o que o levaria à forca, assim como o caminho de Cristo o levara à cruz. Mas nunca pensou que Deus o tinha abandonado. Por mais que fosse apaixonado e ardente, Bonhoeffer compreendeu que estava na mais profunda solidão: a solidão em que vive um homem com relação ao Deus vivo. Aqui ninguém podia ajudá-lo: ninguém podia levantá-lo de coisa alguma. Aqui Deus lhe impunha um peso que ele tinha que carregar sozinho".

 

Justiça social, fraternidade sem fronteiras e compaixão pelo sofrimento

 

Em reportagem publicada no Trentino, Vincenzo Passerini classificou a teologia de Bonhoeffer como "uma das mais altas do século XX" porque "caminharia junto com o compromisso pessoal na vida cotidiana, de acordo com os ditames do Sermão da Montanha. Justiça social, fraternidade sem fronteiras, compaixão pelo sofrimento". Nesta teologia, Deus volta a ocupar o lugar central: "Não podemos, diz Bonhoeffer, usar Deus como tapa-buracos. Ele nos deixa a plena responsabilidade do mundo, afirma ele em uma época terrível, em que muitos se escondem com as melhores e mais devotas intenções".

 

Essa responsabilidade foi assumida pelo teólogo na radicalidade, como manifesta na carta que escreveu para Eberhard Bethge, antes da sua execução:

 

“É o fim. Para mim, o início da vida”.

 

Teólogo mártir

 

Em artigo publicado no jornal Avvenire em 2014, o teólogo valdense italiano Paolo Ricca chamou atenção para esta particularidade: "Bonhoeffer é um dos poucos teólogos mártires, não só do nosso século, mas também de toda a história cristã". Segundo ele, os martírios de teólogos foram casos raros na história da Igreja. "Tivemos teólogos mártires na Igreja antiga: pensemos em Justino ou em Cipriano; tivemos entre os anabatistas do século XVI – pensemos em Balthasar Hubmeier e Michael Sattler –, mas se tratam de exceções".

 

Bonhoeffer, comenta, "viveu pessoalmente aquilo que ele diz em Resistência e submissão, isto é: ‘Entramos em um tempo em que o pensamento não pode mais ser o luxo do espectador, mas deve se colocar inteiramente a serviço da ação’". E compara: "Em geral, os acadêmicos, mesmo aqueles que pertencem à academia teológica, não se expõem às tempestades da história e mesmo em situações de conflito acabam sempre salvando a própria pele, seja pelo seu status social, geralmente privilegiado, seja por uma particular inclinação ao pensamento cortesão que muitas vezes caracteriza os acadêmicos de todos os tipos [...]. Ora, Bonhoeffer, que tinha diante de si uma brilhante carreira universitária, em certo ponto abandonou a cátedra, encontrou-se na luta da história do seu povo e acabou na forca do campo de extermínio de Flossenbürg, com apenas 39 anos de idade, na madrugada de 9 de abril de 1945 [...]".

 

 

De acordo com Eraldo Affinati, escritor e professor que trabalha com jovens estrangeiros, autor de Un teologo contro Hitler [Um teólogo contra Hitler] (Ed. Mondadori, 2002), "estamos falando de um indivíduo especial, que pensou e viveu um cristianismo radical, capaz de envolver a todos, até mesmo os não crentes. (...) Bonhoeffer nos ensinou a percorrer os velhos sendeiros dos Padres, renovando-os à luz dos nossos dias. Quem lê a Bíblia multiplica a própria energia, não subtrai nada de si mesmo, mas acrescenta, aumenta, intensifica. Essa intuição também é um legado precioso de Dietrich Bonhoeffer".

 

Fazendo coro a essas análises, o teólogo italiano Giovanni Chifari, professor do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Foggia, Itália, acrescentou que "para Bonhoeffer, a presença eucarística de Cristo não apresentou o perfil sacramental, mas se manifestou mediante o sacrifício da própria existência”.

 

 

Para o irmão François de Taizé, "o que chama a atenção em Bonhoeffer é a sua semelhança com os Padres da Igreja, os pensadores cristãos dos primeiros séculos. Os Padres da Igreja desenvolveram todo o seu trabalho partindo da busca de uma unidade de vida. Eram capazes de reflexões intelectuais extremamente profundas, mas, ao mesmo tempo, rezavam muito e estavam plenamente integrados na vida da Igreja do seu tempo. Encontramos isso em Bonhoeffer. Intelectualmente, era quase superdotado. Mas, ao mesmo tempo, esse homem rezou muito, meditou as Escrituras todos os dias, até os últimos momentos da sua vida. Ele as compreendia, como disse Gregório Magno uma vez, como uma carta de Deus que lhe era endereçada".

 

 

Segundo François de Taizé, apesar de a família do teólogo não compartilhar suas crenças e de ele próprio ter se decepcionado com as direções da Igreja durante o nazismo, Bonhoeffer não se afastou de suas convicções. "Mesmo que ele viesse de uma família na qual os homens – o seu pai, os seus irmãos – eram praticamente agnósticos, mesmo que a sua Igreja, a Igreja Protestante da Alemanha, o tivesse decepcionado muito no momento do nazismo e que ele tivesse sofrido muito com isso, ele viveu plenamente na Igreja".

 

Seus estudos, complementa, estiveram diretamente relacionados à sua existência e vivência na Igreja. "Sua tese de doutorado, Sanctorum communio, tem algo de excepcional para a época: um jovem estudante de 21 anos escreve uma reflexão dogmática sobre a sociologia da Igreja partindo de Cristo. Refletir a partir de Cristo sobre o que a Igreja deveria ser parece incongruente. Muito mais do que uma instituição, a Igreja é, para ele, o Cristo, existente sob a forma da Igreja".


 

 

 Uma experiência de escuta, resistência e entrega ao irmão alcança Deus

Por João Vitor Santos

 

A vida de Dietrich Bonhoeffer pode ser lida como uma experiência de escuta daquilo que não era dito, mas sentido. Talvez o teólogo tenha realmente sido capaz de auscultar Deus na batida do coração de quem está próximo.

 

Quem não sabe escutar o irmão, bem depressa deixará de ser capaz de escutar o próprio Deus - Dietrich Bonhöeffer 

 

Na teologia, parece ter ouvido algo que não cabia em caminhos que lhe eram oferecidos, decidindo assim abrir outros. Mas, é em meio ao caldo de ódio e intolerância que ele pareceu perceber que algo não iria bem. Mesmo antes da eclosão do nazismo e toda a força totalitária que sufoca lenta e violentamente qualquer voz dissonante, já percebera que o solo vinha aos poucos sendo preparado para aquilo que a humanidade poderia conceber como de pior. Hoje, quando olhamos para a invasão russa à Ucrânia, é inevitável pensar que esse caldo também já vinha sendo preparado, sendo engrossado aos poucos por intolerância e ódio num mundo em transformação que, ao invés de arrefecer esses sentimentos, faz surgir sujeitos capazes de tirar proveito ao alimentá-los.

 

 

Olhando para um passado recente, a Guerra em Donbass, em 2014, quando pró-russos, russos e ucranianos se enfrentam, percebemos que essa pode ter sido apenas a ponta desse iceberg muito maior que hoje volta a ameaçar a paz e uma ideia, embora ocidentalizante, de ordem mundial. Mas nem a dor e sofrimento daquele tempo fez verdadeiramente escutar o que havia de vir e fomos, como disse próprio Bonhöeffer, perdendo a capacidade de ouvir os sinais divinos naqueles que são terrenos.

 

 

 

As imagens do vídeo acima podem confundir e parecer que são de hoje, mas o pedido de paz é de sete anos atrás. Olhando atentamente para essas cenas e pensando na teologia de Dietrich Bonhöeffer, é possível conceber que ele não se insurge somente a Hitler, mas ao mal humano que este representa.

 

 

 

Mas por que voltar a Bonhöeffer? Talvez a sua experiência e sua capacidade de escutar as dores do mundo possam nos inspirar nesse momento de tanta dor. Dor que vem de um mundo em transformação, em que a vida se acelera em um querer cada vez mais que acaba exaurindo o planeta e devastando todas as formas de vida subjugadas a serviço da humanidade. Não à toa somos confrontados com uma pandemia, uma peste que soa como a voz da natureza tentando mostrar o que realmente somos. Porém, ainda assim, nossas respostas parecem ser no sentido de acelerar o que pode haver de pior, como uma corrida contra o tempo para homens que possam ainda mostrar seu poder antes do fim da humanidade.

 

 

 

Diante da II Guerra, do ódio e do mal encarnado, Bonhöeffer provou e insistiu para que fossem ouvidos não mais sussurros, e sim gritos e pedidos de socorro. Poderia ter desistido, sucumbido, pois em seus escritos há claros sinais desse desânimo. 

 

“...cansado e vazio de orar, ao pensar, ao agir, desanimando e pronto para dizer adeus a tudo isso...” - Dietrich Bonhöeffer

 

Estaria ele pensando e pondo em xeque até mesmo o lugar da oração? E a religião? Bem, ao olharmos como o Patriarca Kirill, líder da Igreja Ortodoxa Russa, se posiciona acerca da invasão russa à Ucrânia e seus endossos a formas totalitárias podemos perceber que essa não é uma preocupação do passado. Não se trata de separar a religião da política ou da Igreja, mas buscar, talvez no próprio Bonhöeffer, um lugar para a religião, a fé e a oração desse tempo de desterro.

 

“A igreja não pode se limitar a cuidar dos feridos que um louco fez ao volante, é preciso arrancar o louco do volante” - Dietrich Bonhöeffer

 

Talvez, seja esse o caminho. Orar com ação, pensar na força da fé e na concretude dos atos como forma de conceber caminhos que debelem o ódio encarnado. E pensar que sempre haverá transformação, desde que assumamos nosso papel como verdadeiros discípulos. É como o teólogo espanhol José María Castillo disse, em conferência promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a partir de sua leitura de Bonhöeffer: Jesus pede que os discípulos o sigam, sem constituir teses ou regras para isso. Apenas chama a viver como e com ele.

  

 

 

 

A tese de Bonhöeffer é que, quando Jesus encontrou-se com os discípulos, se aproximaram pescadores ou, como Mateus, cobradores de impostos, mas cada um tinha sua vida. Jesus se aproxima e diz apenas uma palavra: "siga-me". Não dá explicações, não diz para que chama, por que, o que vai fazer, quais os deveres, simplesmente "siga-me". O significado mais profundo do que Jesus deu a esse mundo não é teoria nenhuma, é uma forma de vida: "siga-me". Ele pedia seguimento, e ao que o queria lhe seguir, para abandonar tudo e seguir, acompanhar Jesus e viver como ele vivia - José María Castillo

  

Bonhöeffer encontrou esse caminho. Para ele, que desde cedo ouvia os sussurros, os sons da guerra eram demais para se calar diante de tudo. Por isso, se coloca como esse fiel discípulo.

 

 

 

Assumir-se como verdadeiro discípulo de Jesus lhe custou a vida. Por isso, a entrega que o teólogo fez não deve ser esquecida, e ele deve ser pensado não somente como aquele religioso que entra para a história como mártir que pregou a fé, mas também como aquele humano que, seguindo Jesus, foi capaz de ouvir a dor do mundo e se colocar nela numa entrega que não foi em vão.

  

 

Bem pouco depois do assassinato de Bonhöeffer, o regime cai. O mundo se transforma, a paz parece voltar, mas, talvez, lá no fundo não tenhamos resolvido questões e extirpado raízes do mal na terra. Aliás, nem se sabe se isso é possível. O possível, quem sabe, seja um estado constante de entrega, de escuta, de cuidado para que essa raiz não germine, cresça e floresça. Eis mais uma chave para ler Bonhöeffer e não deixar sua experiência se apagar na história.

 

Quem sabe sua resistência possa também ser lida como a esperança de que ainda haveria de ser possível ouvir novamente outras vozes. Quem sabe é nisso que residia o fomento de sua conspiração da inteligência militar contra Hitler, pois pode, de novo, em meio ao mal, ouvir algo de bom e crer naquilo.

 

 

 

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