27 Março 2018
“Há uma característica muito curiosa no relato da Paixão de São Marcos, que ouvimos no Domingo de Ramos. Ele parece ser um fragmento de uma lembrança. Uma lembrança tão pessoal, tão vívida e cheia de vergonha que só poderia ter vindo da pessoa que viveu a experiência real.”
A reflexão é do padre estadunidense Terrance Klein, da Diocese de Dodge City e autor de Vanity Faith. O artigo foi publicado por America, 21-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O consenso entre os estudiosos é de que os Evangelhos não são relatos de testemunhas oculares. Ou, melhor, eles são aquilo que se poderia chamar de “relatos de segunda geração”. Eles foram compostos por cristãos que nunca conheceram Jesus, mas que haviam se convertido a ele por causa da pregação dos apóstolos. Não há nenhum escândalo ou choque nisso, porque os Evangelhos geralmente não se apresentam como relatos de testemunhas oculares. De fato, Lucas declara explicitamente que seu Evangelho é uma compilação de tais relatos, baseada na pregação apostólica (1, 1-4).
Os nomes que afixamos aos Evangelhos não fazem parte das próprias narrativas do Evangelho, e os estudiosos debatem continuamente sobre como um nome deveria ser apropriadamente atribuído a um dado texto, embora com pouca importância. É o mesmo Evangelho, seja qual for o nome do santo no título.
O Quarto Evangelho, o termo que os estudiosos preferem para o Evangelho de São João, é a forte exceção. Tendo sido o último a ser composto, no entanto, ele baseia sua autoridade no fato de ser o relato da testemunha ocular do “discípulo a quem Jesus amava”, que é como o próprio texto identifica seu autor. Assim, embora todos os quatro Evangelhos se baseiem em testemunhos oculares, apenas o Quarto reivindica que a testemunha ocular é ela mesma o principal autor do texto. No entanto, pode haver um segundo Evangelho composto por uma testemunha ocular, pelo menos em parte.
Há uma característica muito curiosa no relato da Paixão de São Marcos, que ouvimos no Domingo de Ramos. Ele parece ser o fragmento de uma lembrança. Uma lembrança tão pessoal, tão vívida e cheia de vergonha que só poderia ter vindo da pessoa que viveu a experiência real.
Sabemos há muito tempo que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser composto. Ele essencialmente inventou o gênero. Mateus e Lucas tomaram o texto de Marcos como ponto de partida, acrescentando ou subtraindo material de acordo com suas próprias fontes e perspectivas únicas. Juntos, esses três são chamados de Evangelhos sinóticos, porque, se você alinhar suas três narrativas em colunas comparativas, você pode ver que elas concorrem muito mais do que diferem. E são as diferenças que nos dizem muito sobre a perspectiva individual dos evangelistas.
A Igreja reveza os três Evangelhos sinóticos, lendo cada um deles a cada três anos no Domingo de Ramos. A única diferença observada pela maioria de nós é que a Paixão de Mateus é a mais longa, e que a de Marcos é a mais curta. Como seu Evangelho em geral, a narrativa da Paixão de João começa a partir de uma perspectiva diferente e muitas vezes diverge das outras. Esta é a Paixão que lemos em todas as Sextas-Feiras Santas.
Aqui está a curiosa característica da Paixão de Marcos, tão pessoal, tão vívida e tão vergonhosa. Ela está na cena do jardim, logo após a erupção da violência, quando um dos presentes “puxou a espada e feriu o empregado do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha” (14, 47; trad. Bíblia Pastoral).
Nós ouvimos:
“Então todos fugiram, abandonando Jesus. Um jovem, vestido só com um lençol, estava seguindo Jesus, e eles o prenderam. Mas o jovem largou o lençol, e fugiu nu” (14, 50-52).
Os Evangelhos falam com uma só voz sobre seus seguidores homens que abandonam Jesus. Um fato que fala tanto sobre sua veracidade, quanto sobre a probabilidade de que eles sejam relatos de segunda geração. É vergonhoso ter que admitir que a Igreja abandonou seu Senhor – mas é isso que você precisa fazer se quiser dizer a verdade. Fica um pouco mais fácil quando foi a primeira geração de crentes que falhou com ele, não a sua.
Mas quem é o jovem seguidor anônimo de Jesus? Ele foi pego naquilo que chamaríamos de sua roupa íntima e a deixa de bom grado para trás, correndo nu, com grande medo. É um detalhe muito pessoal. É o tipo de coisa de que apenas uma testemunha ocular – mais do que uma testemunha ocular, o próprio ator principal, que ainda sofre com a vergonha disso – se lembraria. É por isso que Mateus e Lucas cortam a passagem? Ela é pessoal demais, mais como uma confissão individual que não ajuda em nada a levar adiante suas próprias histórias?
Isso poderia significar que o autor do Evangelho de Marcos, pelo menos dessa cena, é o jovem que estava lá naquela noite e que deve lembrar, em todos os anos que se seguiram, a vergonha pessoal de saber que ele mesmo abandonou seu Senhor no momento decisivo. Seu corpo nu e jovem não foi a única coisa despida naquela noite. A profundidade de seu discipulado também o foi.
Mas agora um discípulo mais velho e mais comprometido nos conta a história daquela noite. Ele se lembra de sua vergonha cicatrizada porque quer dar testemunho do triunfo da graça. Ele quer compartilhar duas verdades com as gerações subsequentes de cristãos.
Primeiro, ele quer que não tomemos nosso discipulado como algo garantido. Nós achamos que ele é forte, mas ele foi realmente testado? Quando ele for posto a prova, estamos certos de que não correremos, de que não estaremos igualmente expostos?
Segundo, ele quer se dirigir àqueles que vivem com profundo pesar pelo seu discipulado passado (e isso diz respeito a muitos de nós!). Ele quer que saibamos que, se tivermos corrido, se tivermos sido expostos para todo o mundo ver, não é o nosso fracasso que mais importa. É a força de Cristo. Fomos reivindicados por Cristo. O que não podemos realizar por nós mesmos, nós podemos realizar nele. Cristo testemunha bravamente a verdade. Ele livremente derrama seu sangue no madeiro da cruz. Tudo o que devemos fazer, fracos e temerosos como somos, é agarrar-se a ele e à sua cruz.
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A lição do discípulo de Jesus que fugiu nu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU