O grito de Jesus na cruz: um convite para ouvir e viver a Paixão do mundo

Foto: Vatican News

Por: Patricia Fachin | 07 Abril 2022

 
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34-39). O grito de Jesus na cruz, narrado pelos evangelistas e, particularmente por Marcos nesta formulação, ressoa ainda hoje entre todos que buscam compreender tais palavras a partir do seu significado teológico, mas também entre aqueles que, na vivência do sofrimento e dos acontecimentos inexplicáveis, sentem não só a mão de Deus pesar sobre si mesmos, mas, vivenciam a angústia, o abandono e a incerteza sobre a própria existência divina.

 

Assim, o grito de Jesus na cruz na Sexta-Feira da Paixão é atualizado não somente a cada Sexta-Feira Santa, quando os cristãos anunciam novamente a morte de Cristo, mas, no cotidiano da vida, no grito de dor de cada um que sofre, seja carregando a cruz ou negando-a, nos atos de injustiça e violência praticados pelo mundo, e nas inúmeras fatalidades incompreensíveis ao nosso entendimento humano, como o sofrimento e a morte de crianças e inocentes.

 


Cristo crucificado com a Virgem, João e Maria Madalena | Pintura de Juan de Juanes (Foto: MutualArt)

 

Particularidade do Evangelho de Marcos

 

Segundo o teólogo Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, o grito narrado no Evangelho de Marcos tem uma particularidade: mostra que Jesus é "uma pessoa real e não uma ideia". Em artigo publicado no sítio Settimana News e reproduzido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele ressalta os aspectos destacados pelo evangelista na narrativa da Paixão. "O autor enfoca a relação que Jesus tem com o Pai. Marcos observa que muitas vezes Jesus se retirava para orar sozinho, em lugares apartados. No entanto, o conteúdo da oração nos é dado apenas no momento do Getsêmani e no momento da cruz".

 

"E foram a um lugar cujo nome é Getsêmani. E ele disse a seus discípulos: 'Sentai-vos aqui enquanto vou orar'. E, levando consigo Pedro, Tiago e João, começou a apavorar-se e a angustiar-se. E disse-lhes: 'A minha alma está triste até a morte. Permanecei aqui e vigiai'. E, indo um pouco adiante, caiu por terra, e orava para que, se possível, passasse dele a hora. E dizia: 'Abba! Ó Pai! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres'. Ao voltar, encontra-os dormindo e diz a Pedro: 'Simão, estás dormindo? Não foste capaz de vigiar por uma hora? Vigiai e orai para que não entreis em tentação: pois o espírito está pronto, mas mas a carne é fraca'".

 

Significado do abandono e do silêncio

 

O Evangelho de Marcos, pontua o teólogo, também nos diz algo sobre a ação de Deus nos momentos de sofrimento e da própria morte. "Marcos não descreve a morte nobre de um herói, mas sim de um homem real que sofre e sente a solidão. Deus responde com o silêncio. Não se ouvem palavras nem presença. Deus não ajuda visivelmente quem lhe é fiel e invoca a sua presença".

 

Entretanto, o que significa dizer que Deus não ajuda visivelmente quando não permite que Jesus desça da cruz, tal como O desafiaram os que presenciaram aquele fato, exclamando: "Desce desta cruz, se és o Filho de Deus!" (Mt 27, 40)?

  

Na interpretação de Mela, o grito de Jesus e a resposta do Pai através do silêncio e aparente abandono tem como finalidade três ensinamentos.

 

1. "A cruz não é a última página do Evangelho. Deus ressuscitou Jesus, um mistério tão grande que a princípio causou transtorno entre as mulheres. Jesus sabia que a paixão e a morte o aguardavam, mas também a ressurreição. Marcos convida a não ter pressa em dizer que depois haverá a ressurreição. Ele deixa para um tempo oportuno o leitor junto com Jesus que sofre, que sente desorientação, medo e angústia, tristeza e com a pergunta 'por quê?'. Não se deve ter pressa em chegar à ressurreição".

 

2. "A segunda realidade é o convite a olhar para a história do ponto de vista de Deus: ele não deve ser colocado no banco dos réus. Deus vê o Filho morrer e não intervém em favor daquele Filho que ama e que havia revelado no batismo e na transfiguração. 'Agora Deus para, estabelece um limite; é um Deus tão fiel à humanidade que não força a liberdade dos homens, mesmo quando eles colocam à morte o seu Filho' (p. 130). Imagem dramática, mas muito respeitosa do nosso ser pessoas humanas".

 

3. "A terceira realidade é tirada de Mc 1,35, em que se recorda como Jesus, depois do dia de Cafarnaum, se levantou e rezava (no tempo imperfeito de duração e de repetição) de manhã cedo, em um lugar deserto. O mistério de um Deus que parece abandonar seu Filho não se resolve apenas no plano intelectual (cf. O livro de Jó). Deus é grande demais para ser encerrado em raciocínios humanos. Broccardo nota como, além de um discurso racional, há algo mais, ou seja, uma dimensão relacional".

 

  

 

A conclusão final do teólogo é a mesma do Papa Francisco, manifesta na homilia da última Páscoa, quando convidou cada cristão a regressar à Galileia porque embora tenha sido crucificado e morto, Cristo vive e nos precede na Galileia. Para compreender o significado dessas palavras, explica Roberto Mela, temos que ir além do grito de Jesus na cruz e observar o que acontece depois, como Deus responde, após cada súplica, com sua mão providente. Para isso, precisamos nos assemelhar a Jesus na vivência relacional com o Pai, que não consiste somente em clamar e nos sentirmos abandonados, mas, na relação, compreender o significado do silêncio e ouvir o que é dito no próprio silêncio, na cruz, na crucificação, na morte e na realização da Sua vontade. "De fato, no final do Evangelho, Marcos convida a recomeçar um percurso, regressando à Galileia. 'O Evangelho segundo Marcos é um itinerário, um percurso, em que se entende vivendo; é entendido ao estar juntos; consegue-se entrar num mistério tão grande como aquele de um Deus que não intervém apenas ficando com ele, apenas 'acordando de madrugada, quando ainda era escuro, e retirando-se só com ele'. Obviamente, não há como dizer por quanto tempo será necessário fazer isso; mas assim se espera a resposta”.

 

 

Religião X Evangelho

 

As reflexões de Ademir Guedes Azevedo, missionário passionista e mestre em teologia fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, apontam para uma questão fundamental na vivência desta relação com Deus, tal como foi vivida na radicalidade pelo Cristo crucificado. "O aparente abandono do Filho em sua cruz ensina que a fé não é religião, mas uma experiência do espírito que se purifica de tudo. A religião explica, mas na cruz não há mais a linguagem, apenas o silêncio cortante".

 

Esse mesmo ponto foi expresso pelo teólogo José María Castillo na conferência intitulada "A crise do cristianismo e o poder sedutor do Evangelho. A existência cristã no mundo contemporâneo", transmitida virtualmente na página eletrônica do IHU na sexta-feira passada, 01-04-2022. Disse ele: "O problema que temos que nos confrontar é que o Evangelho de Jesus (origem do cristianismo) se fundiu e confundiu com a religião. (...) Religião e Evangelho são duas formas de buscar a relação com Deus", mas muitas pessoas "vivem a religião e não o Evangelho". No centro da religião, adverte, está o sujeito. No centro do Evangelho, "a boa notícia para os que sofrem".

 

 

Páscoa IHU: as incertezas e esperanças do tempo presente

 

"O grito de abandono de Jesus na Cruz e o silêncio de Deus. Reflexões à Luz do Evangelho de Marcos" é o tema da palestra virtual que será ministrada hoje, 07-04-2021, pelo Prof. Dr. Junior Vasconcelos do Amaral, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG, e transmitida na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e nas redes sociais do IHU. O evento integra a programação de Páscoa do IHU, que tem como objetivo refletir sobre as incertezas e esperanças do tempo presente, especialmente na atual conjuntura, em que as consequências da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os efeitos do novo regime climático e o aumento das desigualdades ampliam o sofrimento e o número de pessoas que padecem.

 

Doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, Amaral é autor da tese intitulada "Análise Narrativa da Paixão de Jesus no Evangelho de Marcos". Especialista em estudos de narratologia bíblica, participa do Grupo de Pesquisa Bíblia em Literatura Cristã e do Grupo de Pesquisa em Bíblia (Pragmalinguistica).

 

 

O grito de Jesus na cruz no Evangelho de Marcos

 

O grito de Jesus na cruz, especialmente a partir da narrativa de Marcos, já foi tema de outros eventos, artigos e publicações do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

O Cadernos Teologia Pública número 89, publicado em 2014, reúne três entrevistas sobre a temática. A partir de diferentes contextos socioculturais, a teóloga Francine Bigaouette, do Curso de Teologia do Seminário da Diocese de Chosica, Peru, e os teólogos Alexander Nava, da Universidade do Arizona, EUA, e Carlos Dreher, da Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo, refletem teologicamente sobre o significado do grito de Jesus na cruz em perspectivas distintas, porém complementares, na apresentação de uma resposta da teologia cristã à realidade do mal e do sofrimento.

 

 

Os três interpretaram o sentido e o significado do grito “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

 

Para Francine Bigaouette, as palavras de Jesus indicam que é justamente no momento em que nos sentimos abandonados por Deus, que Ele se revela. "Em Jesus na cruz como amaldiçoado de Deus, em Jesus em sofrimento por sentir-se definitivamente separado do Pai, Deus vem justo ao lugar em que se encontra aquele que não está ou deixou de estar em relação com Ele e que, por essa razão, deveria ser, segundo a Lei, abandonado e rejeitado por Ele. Deus vem para suscitar nesse lugar a resposta que o ser humano, entregue a si mesmo, é incapaz de lhe dar: a resposta da fé. No clamor de Jesus na cruz, o silêncio de Deus diante da morte de seu Filho se faz ouvir como a palavra-ápice pela qual Ele nos revela a profundeza inaudita de seu respeito e de seu amor por nós".

 

Segundo o teólogo Alexander Nava, o grito expressa dois acontecimentos subsequentes: a morte agonizante de Jesus e o fim dos sacrifícios do templo. Para a comunidade de Marcos, esclarece, "a morte de Jesus é vista como o sacrifício final. O rompimento do templo também é significativo no contexto histórico do Evangelho de Marcos".

 

O teólogo e pastor Carlos Dreher destaca que o grito de Jesus "nos apresenta o verdadeiro homem, de carne e osso, que sofre da mesma maneira que qualquer ser humano sofre", mas também a nossa incapacidade de compreender as ações e as razões de Deus em sua providência. “Não é à toa que Paulo afirma que essa Palavra da Cruz é ‘escândalo para os judeus e loucura para os gentios’. O mundo não consegue compreender que Deus se revele na fraqueza. Porém, Ele, insistentemente, nos mostra que é Deus de perto, e não de longe. É Deus encarnado, que arma uma tenda no meio de nós, que vê o sofrimento, ouve os calmos e desce até o fundo do poço por nós”. A morte de Jesus na cruz, reitera, revela que “Deus está conosco também no sofrimento, também na cruz”, porque “Deus não ‘silencia’ diante do sofrimento humano, tampouco se ausenta. Ele está, sempre, no meio de nós. (...) Ele estava nas câmaras de gás do holocausto, Ele estava em meio aos povos indígenas brutalmente assassinados pelos conquistadores, e ainda está no meio deles. Ele está em meio aos pobres do mundo inteiro".

 

 

As sete palavras de Jesus na cruz

 

Ao analisar as sete palavras de Jesus na cruz, o jesuíta Adroaldo Palaoro ressaltou que "o grito de Jesus na Cruz condensa o grito da humanidade sofredora; é o próprio Deus que grita seu abandono". A pergunta que dirigimos a Deus ou a nós mesmos quando nos perguntamos sobre o grito de Cristo, diz Palaoro, também pode ser a pergunta de Deus para nós: "Todos perguntamos: 'Onde está Deus no sofrimento, na violência, na morte...? E Deus responde, perguntando: 'Onde está você no meu sofrimento, na violência que sofro, na morte... de meus filhos/as?'”

 

O grito de Cristo, interpreta, é, na verdade, um convite para que cada um assuma um "compromisso solidário" em sua própria vida: "Deixar ressoar este grito de Jesus: quais são os gritos surdos que brotam da realidade hoje?"

 

 

 

Páscoa IHU: próximos eventos

 

Dois eventos ainda serão realizados na 19ª edição da Programação de Páscoa IHU. Na próxima segunda-feira, 11-04-2022, o Prof. Dr. Faustino Teixeira e o Prof. Dr. Rodrigo Petronio participarão de um debate sobre o centenário de Pasolini, comentando o filme O Evangelho segundo Mateus.

 

 

No dia 20-04-2022, Eduardo Hoornaert, membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina - CEHILA, entidade autônoma fundada em 1973 em Quito, Equador, ministrará a palestra virtual "O futuro do cristianismo: o encontro entre evangelho e religião". Em artigo publicado na página eletrônica do IHU recentemente, o historiador reflete sobre a crise do cristianismo na atualidade e recorre a uma declaração de José Comblin em conferência no auditório da Universidade Católica - UCA, em El Salvador, para esclarecer seu ponto: "'Evangelho não é religião'. A um público entristecido pela política reinante em seu país e pela oposição do Vaticano, José exclama: ‘Evangelho não é religião. A evolução política e religiosa pode nos deixar tristes, o evangelho nunca!’".

 

 

A programação de Páscoa IHU está disponível aqui.

 

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