02 Abril 2014
Os valdenses, em fuga da França, chegaram em Val Pellice, na Itália, por volta de 1200. E lá – grosso modo entre Cuneo e Turim – viveram por séculos encerrados como que em um gueto. Perseguidos e oprimidos. Vou ao encontro do teólogo Paolo Ricca com alguma vaga noção de história. Ele mora no distrito de Prati, de Roma, a poucas dezenas de metros da igreja valdense, da qual ele foi um importante ministro.
A reportagem é de Antonio Gnoli, publicada no jornal La Repubblica, 30-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Recentemente terminei de ler o seu livro mais recente e dedicado à Última Ceia, aquela que Jesus teve com os Apóstolos. Impressiona-me a dedicatória: "Aos médicos que me trataram nesses últimos anos". Anos nada fáceis para Ricca: "A doença é um vórtice que te suga. Tende a te aniquilar. Eu acreditava que não ia conseguir e que não estaria à altura daquela serenidade que uma profissão de fé te transmite. Lembro-me de ter pensado: tudo é muito grave. Como isso vai acabar? Eu não conseguia entender. Depois, a lenta recuperação e a volta à vida normal".
Jesus também, naquela Última Ceia, penso eu, volta à vida, e nunca como naquele evento o corpo e o espírito se misturaram tão intimamente. Mas, ao mesmo tempo, se dividiram nas interpretações que o cristianismo dará daquele episódio.
Eis a entrevista.
Professor, quem "pagou a conta" daquela Ceia?
Não foi uma janta no restaurante. Mas a conta foi paga um pouco por todos nós. No sentido de que esse evento dividiu os cristãos. Enquanto o pão e o vinho de Jesus deveriam unir.
É o destino dilacerado do cristianismo do qual os valdenses fazem parte.
A história dos valdenses é entalhada. No século XVI, eles aderiram à Reforma Protestante. Calvino deu a eles a confissão de fé, mas continuaram as perseguições. Em 1848, a comunidade obteve os direitos civis. Foi só depois do Concílio Vaticano II que os valdenses foram considerados assim como as outras confissões.
O senhor é valdense desde quando?
Desde sempre. Nasci em Torre Pellice, que é o centro do movimento valdense. A minha família chegou lá em 1600. Estabeleceu-se nos vales: lugares muitas vezes inacessíveis, tornados hospitaleiros pelo trabalho duro.
Portanto, uma família camponesa.
Meu avô, em certo ponto, emigrou para Nice e trabalhou como porteiro de hotel. Conseguiu fazer com que o meu pai estudasse para pastor. Minha mãe, de origem católica, se converteu e compartilhou o ministério com o marido.
O que significa ser um pastor?
Buscar realizar, diante da sua comunidade, que muitas vezes é composta por poucas ou muitas pessoas, o ensino e a pregação.
Concretamente?
Ajudar com retidão a viver as vidas dos outros. Enfrentar, com a mesma coerência, as suas alegrias e terrores, os conflitos e as esperanças. Vittorio Subilia, grande teólogo e meu professor, sentia uma certa alergia ao ouvir a palavra "pastor". Ele a considerava excessiva. Carregada de uma tarefa sobre-humana.
É isso mesmo?
É um trabalho dificilíssimo, que eu exerci por anos antes de me tornar professor de teologia.
Onde o senhor o desempenhou?
De 1962 a 1965, fui pastor em uma pequena comunidade, em Forano Sabino, não muito longe de Rieti. Naquele tempo, fui encarregado de acompanhar os trabalhos do Concílio Vaticano II e de escrever um comentário teológico. Depois, por cerca de uma década, fui pastor em Turim. Eram os anos da contestação. As pessoas abandonavam a Igreja. Muitas vezes eu me perguntava se estava fazendo bem o meu trabalho. Achava difícil o acordo entre as minhas palavras e as do Evangelho.
O senhor estava questionando a sua fé?
Eu não duvidava da fé, mas de mim mesmo. Do fato de não estar tão certo de conseguir.
Onde nasce a fé?
Ela não nasce do medo da morte, nem da incerteza do futuro. A fé é uma viagem que não se conclui no arco de uma vida. Quando começa a fé, também começa a inquietação. A fé nos torna inquietos, mas não duvidosos.
Qual é a diferença?
A dúvida é uma interrogação voltada a Deus. A inquietação é duvidar de si mesmos, do que se está fazendo, de que sociedade se pretende construir, de que herança se quer deixar aos próprios filhos. Desse ponto de vista, Deus se torna certeza. E não se sabe por quê.
Deus chama misteriosamente, como Abraão experimentou.
E ele não pode senão responder. Porque o chamado de Deus é mais forte do que todas as objeções possíveis.
O senhor vai admitir que o comportamento de Abraão pode ser visto como um caso da psiquiatria.
Não o nego. No fundo, não há nenhuma evidência de Deus, e, portanto, o seu agir efetivamente podem ser confundido não só com o de um louco, mas até mesmo como algo diabólico.
O que envolve a não evidência de Deus?
Que a fé é um salto. Mas não no escuro. Mas sim na palavra que vence porque convence.
"Sejam astutos como as serpentes e puros como as pombas", acho que Jesus diz isso. O senhor não acha que os dois planos conflitam?
Astúcia no sentido de uma exortação ao crente a ser inteligente. Enquanto a pureza é não pensar mal do outro.
A fé pode ser inútil?
Não é óbvio que, se não houvesse a fé, o mundo seria pior. Mas nem melhor. Jesus convidou os seus discípulos a serem servos inúteis. Portanto, a fé também pode ser inútil. Mas Deus não é inútil. A fé nele, sim, pode ser.
Não entendo a diferença.
Com a minha fé, mais ou menos vacilante, eu posso não servir para nada. É irrelevante o que eu poderia fazer. Mas Deus é a outra possibilidade. É o outro mundo para este mundo. A outra humanidade para esta humanidade. É preciso que eu não identifique o mundo e o outro comigo mesmo, que não faça do que me rodeia a projeção de meu eu, como se eu fosse um pequeno Deus. Deus é útil porque é o outro de mim.
Essas eram as posições do teólogo Karl Barth.
Na primeira fase do seu pensamento, efetivamente, Barth argumentou que o Outro é Deus e não é homem. Depois, nos anos em que eu o conheci, ele atenuou essa tese.
Onde o senhor o conheceu?
Eu acompanhei as suas aulas na Basileia nos anos 1950. Barth, apesar da grandeza dos seus estudos, foi um homem profundamente humilde. Dotado de uma autoironia e de uma consciência dos limites que me surpreenderam. Mas o seu comentário sobre a Carta aos Romanos é pura dinamite.
Falando de grandes teólogos protestantes, não podemos deixar de citar também o nome de Dietrich Bonhoeffer.
Bonhoeffer era luterano, enquanto Barth era próximo de Calvino e Zwingli. Ambos eram anti-hitlerianos convictos.
Houve um compromisso dos protestantes com o regime nazista?
A Igreja Evangélica, em boa parte, se nazificou. E foi contra a obediência às diretrizes do regime que, em 1934, durante o Sínodo de Barmen, nasceu uma Igreja Confessante que, em grande parte, se opôs primeiro aos cristãos alemães e depois à Alemanha hitleriana. Foi Karl Barth que tomou posição contra o nazismo, e isso provocou o seu afastamento da Universidade de Göttingen e o retorno à Suíça.
E Bonhoeffer?
Ele conspirou contra o regime participando do atentado do dia 20 de julho de 1944. A bomba explodiu, mas Hitler saiu quase incólume. Bonhoeffer foi preso e enforcado no ano seguinte.
Era certo que um teólogo, um pastor, compartilhasse um gesto de violência tão extrema?
Bonhoeffer nunca reivindicou um modelo de comportamento. Apenas aplicou o ditado luterano: peca fortemente, mas ainda mais fortemente alegra-te em Cristo. Ele foi um grande profeta do cristianismo de amanhã, que interpretou como um compromisso com os outros O seu ensino foi de grande ajuda para mim. Eu entendi o que significa a plenitude da fé em um mundo secularizado.
São palavras muito bonitas: a palavra que vence porque convence, o senhor disse antes. Mas, além da palavra, o que há? Com qual gesto, decisão, conteúdo o senhor a preenche?
Desde o início do meu ministério, foi o trabalho pela paz que me envolveu. Ou seja, a pregação da não violência como compromisso social e cultural.
Desculpe-me, mas ainda estamos no nível das palavras.
Conto-lhe uma pequena história. Há anos e de modo totalmente casual, conheci um monge budista. Ele tinha partido em peregrinação de Auschwitz para chegar a Hiroshima. Ele viajava sozinho. Vi-o na Praça de São Pedro. Sentado no chão. Batia o tambor e cantava as suas ladainhas. Os guardas o afastaram. O monge se deslocou para além da colunata. Mas lá também ele foi obrigado a ir embora. Irritava os fiéis, disseram os guardas.
E o que aconteceu?
Aproximei-me e lhe disse que, se quisesse, poderia recitar as suas orações na frente da nossa igreja valdense, e que ali ninguém o perturbaria. Depois, lhe perguntei onde ele iria dormir. Ele me respondeu que a rua era o seu leito. Eu o convidei à minha casa. Ele se levantava todas as manhãs às 6 horas e descia para a rua para as suas ladainhas. Quase todo o tempo, ele jejuou. Só no fim ele voltou a comer e a beber. E um dia me anunciou a sua partida. Inclinamo-nos em silêncio. E oficiamos e juntos, na igreja, um culto pela paz.
Ele era um homem profundamente religioso.
Era um homem justo. Perguntei-lhe para onde ele estava se dirigindo. Ele me respondeu ao Monte Sinai. Disse que, de Bari, tomaria um barca para Patras. Eu lhe perguntei se ali havia alguém que o esperaria. Sim, concluiu, Deus me espera. Por um breve momento, eu tive a bênção de estar ao lado daquele monge de que ninguém sabia de nada e que não interessava a ninguém. Foi uma lição extraordinária.
É uma bela história que eu invejo. Mas, ao mesmo tempo, penso que é preciso uma grandíssima fé para acreditar que Deus estava lá lhe esperando. Quantas vezes foi dito: Deus não estava ou não se sabe onde estava quando acontecia algo de terrível. Onde estava Deus quando Auschwitz explodiu em toda a sua tragédia brutal?
Deus não é responsável pelo que aconteceu, e ninguém pode lhe impedir de ser livre.
É verdade. Mas se Deus existe e se cala, é o seu silêncio que interrogamos e que nos oprime.
Esse silêncio, às vezes, eu sofri e repenso a experiência de Jó, marcada primeiro pelo silêncio de Deus, e dos amigos de Jó, que, insuportavelmente, o justificam. Depois, quando Deus fala, ele não responde à pergunta de Jó: por que tu atinges um inocente e te comportas como um Deus injusto? É a fé que é abalada. E não há uma explicação exauriente do infinito sofrimento do mundo.
E, no entanto, Jó continua acreditando.
A sua oração se torna protesto, mas não negação de Deus. Vem-me à mente o relato de um judeu que, depois da destruição do gueto de Varsóvia, dirige a Deus uma última oração: "Deus, tu fizeste tudo o que podias para que eu não te amasse mais. Morreram os meus entes queridos, minha esposa e meus filhos. Em breve, eu também vou morrer. Tu tentaste de tudo para me fazer perder a fé. Mas eu te amo assim mesmo".
Pode-se chamar isso de heroísmo da fé?
É o sobre-humano no humano. A esperança que não morre. Diante da doença, eu me perguntava: como vou me comportar? Fui testemunha de quê? Pensei nos últimos dias de Bonhoeffer. Antes de ser executado, ele realizou um culto com as poucas pessoas com as quais compartilhava a cela da prisão. Era apenas um rito de comiseração? Não acredito. Era o modo mais profundo de restabelecer a paz entre os homens, até mesmo dentro do sacrifício extremo da morte.
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''Quem não tem fé duvida de Deus. Quem acredita, duvida de si mesmo''. Entrevista com Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU