O Evangelho segundo Pasolini: a obra-prima sagrada. Artigo de Antonio Spadaro

Pasolini | Foto: Almanaque Literário

08 Março 2022

 

A tradução cinematográfica do texto de Mateus é a obra-prima de Pasolini. Uma obra “irracional”, porque liberta de tudo o que não seja a intuição de uma beleza imediata, pura, aquela que o diretor encontra na página evangélica. E no rosto bizantino do Cristo protagonista.

 

A opinião é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado por La Repubblica, 05-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O Pasolini leitor da página sagrada é um homem movido não pela pietas, mas por um instinto. Ao produtor Alfredo Bini, o diretor escreveu em junho de 1963: “Para mim, a beleza é sempre uma ‘beleza moral’; mas essa beleza sempre chega até nós mediada: pela poesia, ou pela filosofia, ou pela prática; o único caso de ‘beleza moral’ não mediada, mas imediata, em estado puro, eu experimentei no Evangelho”. Ele falou do seu desejo de fazer um filme sobre isso como uma “furiosa onda irracionalista”.

 

O “Evangelho segundo Mateus” como obra irracional significa simplesmente que está livre de tudo o que não seja a intuição de uma beleza imediata, pura, aquela que Pasolini encontra precisamente na página evangélica. Não há ideologia nem poesia, por mais que o diretor a defina como obra poética. Elas não se sustentam. Assim que terminei a primeira leitura do texto de Mateus – escreveu ele – senti imediatamente “uma energia terrível, quase física”, um “aumento de vitalidade”. O Evangelho de Pasolini é, portanto, obra de um “ímpeto pré-gramatical”.

 

“Eu dava a Cristo / toda a minha ingenuidade e o meu sangue”, escreveu ele no pequeno poema “A religião do meu tempo”. Em uma poesia de 1942, ele havia definido Jesus como “obscura luz” que gerava um “inconsciente amor”. Nesse movimento instintivo, portanto, devemos avançar, no seu sangue.

 

Pasolini é instintivamente evangélico, e a única forma de entendê-lo (e dizê-lo) é estética, usando “cortes narrativos de uma violência e de uma epicidade quase mágicas, presentes no próprio texto do Evangelho”. Assim, ele começa as filmagens “em um estado de exaltação e de susto”.

 

Cena do filme o Evangelho segundo São Mateus (Foto: Divulgação)

 

Mas quem é esse Jesus? Podemos deduzir isso a partir do fato de que Pasolini não sabia como filmar as Bem-aventuranças: ele mesmo o confessou. Não tem traços nem rudes nem doces. Enrique Irazoqui, que o interpreta aos 19 anos, encarna uma intensidade, uma tensão extrema entre o bizantino e o barroco, que encontra uma síntese na anatomia de El Greco.

 

O diretor filma aquela cena com uma série de closes daquele rosto, hierático e orgulhoso, cortado a seco contra um céu escuro. Às vezes, a voz de Jesus luta contra o barulho do vento, que tenta dominá-la. Há desespero, urgência raivosa, clarividência solitária, dilacerante e angustiada. Foi isso, aliás, que fascinou Nick Cave quando comentou o Evangelho de Marcos. O Cristo de Pasolini é aquele que não veio trazer a paz, portanto, mas a espada.

 

Para encontrar a cifra certa, no verão de 1963, Pasolini fez uma viagem à Terra Santa para se preparar para a realização do filme, já iminente. “Me intriga a escolha que Cristo fez de um lugar tão terrivelmente árido, tão terrivelmente despojado, tão terrivelmente desprovido de qualquer comodidade”, disse ele a quem o acompanhava, Pe. Andrea Carraro, da Pro Civitate Christiana de Assis.

 

“Veja, Pe. Andrea, a palavra espiritual tem para nós dois um significado um pouco diferente”, disse-lhe o diretor. “Para o senhor, espiritual significa algo íntimo e religioso. Para mim, espiritual corresponde a estético.”

 

E a conclusão é um oxímoro e um paradoxo: a paisagem decepciona o diretor do “Evangelho segundo Mateus”. Essa é a revelação “estética”. Por três vezes, ele usa o advérbio “terrivelmente” para descrever o plano geral dos seus olhos na terra de Jesus. Tudo parece “queimado na matéria e no espírito”.

 

Pasolini nas gravações do filme o Evangelho segundo São Mateus (Foto: Divulgação)

 

Mas aonde essa intuição o leva? Ele confessa: “A minha ideia de que, quanto menores e mais humildes são as coisas, mais profundas e belas elas são, encontra aqui uma confirmação que eu não esperava. Entendi que essa ideia é ainda mais verdadeira do que eu imaginava. A ideia daquelas quatro colinas despojadas da pregação tornou-se para mim uma ideia estética e, por isso, espiritual”.

 

Aqui está todo o Evangelho segundo Pasolini. A paisagem já é Evangelho: a ligação instintiva com a página de Mateus evidencia-se também na relação com a terra, com o seu gosto terrível, a sua aridez, a absurda beleza daquelas quatro colinas despojadas. E ele não sabe ainda que esse instinto era o mesmo do seu Jesus. Então, na caminhonete que percorre a estrada entre Jerusalém e Belém, o Pe. Andrea faz com que ele leia São Paulo: “Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no mundo, para confundir o que é forte. E aquilo que o mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o mundo pensa que é importante”.

 

A partir desse tormento, Pasolini tomou a decisão de escolher o mundo arcaico que havia encontrado ainda intacto no início dos anos 1960 no sul da Itália – o Lácio, a Puglia, a Basilicata e a Calábria – como lugar equivalente à Palestina dos tempos de Jesus. E filmou sob um sol “ferozmente antigo”.

 

Essa beleza selvagem – “brute beauty”, diria Gerard Manley Hopkins – é a extrema resistência ao moderno, ao compromisso, às nuances, à delicadeza de qualquer conforto. E a sacralidade muitas vezes se conjuga, assim, em forma de escândalo, no sentido etimológico do termo, isto é, tropeço, como em uma pedra.

 

Cena do filme o Evangelho segundo São Mateus (Foto: Divulgação)

 

Os contrastes predominam em todos os níveis. Também no nível das objetivas das câmeras de filmagem que oscilam subitamente da teleobjetiva – usada após escalar nos arredores das cascatas do córrego Chia, perto de Viterbo –, que esmaga as figuras e as torna pictóricas; e o seu oposto, a 25, para os primeiros planos, que deforma os rostos dando-lhes um “afinamento liberty” em busca de um “expressivo excesso” de clareza, de nitidez de contorno, de estiramento das linhas. Isto é, o oposto daquilo que ele sempre havia procurado nos primeiros planos. Seguem-se os planos gerais e os detalhes, inteiros e primeiros planos. O Evangelho requer a contradição, a liberdade exasperada, um caos estilístico novo, uma conversão, em suma.

 

Também em nível sonoro. Alternam-se os diálogos e os discursos, ocupando grande parte do filme, a linguagem muda das imagens e a trilha sonora composta como um mosaico pelos coros da “Paixão segundo Mateus”, de Bach, alternados com trechos da “Missa Luba” executada em latim por indígenas da África Central, cantos populares, composições de autores antigos e modernos.

 

 

 

A adoração dos Reis Magos é acompanhada pelo spiritual Sometimes I Feel like a Motherless Child, cantado pela folksinger Odette, e a entrada em cena do Jesus adulto nas margens do Jordão é acompanhada pela Maurerische Trauermusik K 477, de Mozart. Há uma instintualidade litúrgica que seleciona os trechos e cria nexos pelo faro.

 

 

 

Esse é o Evangelho, não a poesia, não a ideologia, não a coerência estilística (que pode ser uma forma de ideologia). Pasolini, portanto, é verdadeiramente teólogo e exegeta. A sua lectio evangélica é feita, por um lado, de um literalismo absoluto: entre os muitos filmes feitos sobre a vida e a paixão de Jesus, o de Pasolini é o único no qual o protagonista e os outros interlocutores usam palavras escritas no Evangelho, sem recorrer a paráfrases ou transposições. Por outro lado, o seu gesto absolutamente criativo liberta o sentido das palavras e a sua interpretação com a força das imagens. Em todo o caso, uma coisa estava clara para ele: “Tendo decidido ser absolutamente fiel ao texto de Mateus, tinha que representar um Cristo que não fosse apenas homem, mas que fosse homem e Deus”.

 

Pasolini (Foto: Divulgação)

 

O significado não é hiperurânico, como às vezes algumas leituras evangélicas espiritualizadas. Tem como pano de fundo a Itália daqueles tempos. Na virada dos anos 1950 e 1960, a Itália estava queimando rapidamente as etapas de uma transformação de país agrícola em país industrializado, com uma violenta e irreversível transformação social e cultural, da qual Pasolini é a testemunha mais afiada e sofrida.

 

A interpretação, portanto, tende à atualização, quase um midrash. Desde a pregação de João Batista, que serve de prelúdio para a de Jesus, que se dirige aos notáveis do tempo, Pasolini permite entrever nas entrelinhas os notáveis italianos daquele tempo. João, que tem o rosto escavado de Mario Socrate, exclama: “Raça de víboras!”.

 

Do grito do Batista, chegamos ao grito de Jesus na cruz, visto em subjetiva por Nossa Senhora, aqui interpretada por Susanna Colussi, a mãe do diretor (outra figura da identificação de Pasolini com o seu Jesus?). No ápice da agonia, a tela escurece. Um longo pedaço de filme preto substitui as imagens, enquanto na trilha sonora ressoa uma voz que lança aos espectadores a última provocação: “O coração deste povo se tornou insensível, e endureceram os seus ouvidos, e fecharam os olhos para não ver com os olhos e não ouvir com os ouvidos”.

 

E a ressurreição? Pasolini não queria representá-la. Mas, depois, converteu-se superando a tentação – verdadeiramente diabólica – de representá-la como uma subjetiva mental dos apóstolos que recordam Jesus como ele era antes da sua morte, ou como a aparição de um fantasma. A ressurreição no filme está toda no túmulo vazio que se reflete no olhar de Maria, a mãe do diretor, em um dos sorrisos mais belos da história do cinema. E a alegre corrida dos discípulos rumo a Jesus que aparece para dizer: “Eu estou convosco até o fim do mundo”.

 

Pasolini não para no grito, ele o supera. O instinto, o “ímpeto pré-gramatical” lhe presenteia a sintaxe da revolução.

 

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