07 Março 2022
Satanás quer reduzir o Santo, o Todo-Poderoso a um psicopata megalomaníaco. O diabo brinca neuroticamente de realidade virtual para seduzir a Deus e para fazer com que ele se torne um avatar manipulável de si mesmo. Jesus está sempre fora de enquadramento, com uma atitude impessoal e robótica. Não existe nenhum verdadeiro contato entre os dois: apenas uma distância abismal.
O comentário é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 06-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Jesus se afasta do rio Jordão. Lucas nos faz ver o Mestre de costas. Ele havia acabado de ser imerso nas águas para receber o batismo de João Batista. Para onde Jesus vai? Lucas nos diz que ele está cheio do Espírito Santo, que o está guiando para o deserto.
Água e areia, rio e deserto. O contraste não poderia ser mais forte. O sentido dos opostos nos introduz ao drama maior: o Espírito Santo e o demônio. De fato, Jesus, animado pelo Espírito, vai para ficar 40 dias no deserto e ser tentado pelo diabo. Não sabemos nada sobre esse buraco negro na vida de Deus.
Sabemos apenas que ele não comeu nada naqueles dias. Não nos é permitido entrar em um conflito abismal feito de imensa solidão. Jesus não se alimenta: é como se estivesse blindado para enfrentar a luta. Qualquer escritor dedicaria páginas a essa guerra metafísica.
O evangelista Lucas, não. Ele se detém um passo antes: não é ficção, de fato. É o verdadeiro combate espiritual, que só a alma pode intuir.
Chegamos imediatamente ao fim dos 40 dias, a mesma duração do dilúvio universal e da peregrinação do povo de Israel no deserto após a saída do Egito: água e areia. E o que Lucas pode nos dizer é que Jesus teve fome: tem contrações no estômago. E é nesse detalhe que se desenrola a luta visível aos nossos olhos entre Deus e Satanás.
O diabo, de fato, não desiste e se insinua dizendo-lhe: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. Você é poderoso, atue e mude a realidade a seu favor! E Jesus responde: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”.
A cena se desloca. Estávamos até aqui no nível das pedras, embaixo. Então o diabo o conduz para o alto. E, lá de cima, veem-se em um instante todos os reinos da terra. O diabo aproveita a vista deslumbrante para impressionar Jesus e levá-lo à beira de um precipício: “Tudo isto será teu”, ele lhe diz: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, se te prostrares diante de mim em adoração”. Jesus não responde com palavras suas, mas cita a Escritura. É objetivo, frio, lúcido, impessoal. Não se entra em diálogo com a tentação. Jesus é um robô de citações bíblicas: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’”.
O diabo então o leva a Jerusalém. Voando, talvez. Com as asas ou com a imaginação de um transporte elétrico totalmente espiritual e dramático? Ele o coloca no ponto mais alto do templo. O diabo tem fixação pela altura, porque ela pega na cabeça, embriaga pela sensação de domínio que oferece. E lhe propõe a mostrar o seu poder divino com um show acrobático. O diabo quer espetáculo, show off. Desfruta do poder demonstrado: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado”. Satanás quer a entrada em cena dos anjos e da corte celeste totalmente vestida de penas, strass, rendas e rococós. Jesus não se abala, permanece rígido, impessoal: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”. E é a última tentação de Cristo.
Satanás quer reduzir o Santo, o Todo-Poderoso a um psicopata megalomaníaco. O diabo brinca neuroticamente de realidade virtual para seduzir a Deus e para fazer com que ele se torne um avatar manipulável de si mesmo. Jesus está sempre fora de enquadramento, com uma atitude impessoal e robótica. Não existe nenhum verdadeiro contato entre os dois: apenas uma distância abismal.
Termina assim. O diabo esgotou todas as tentações.
Ele se afasta, portanto. Mas – e aí vem a ameaça – até o momento marcado...
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No deserto, o diabo tenta Jesus brincando de “realidade virtual”. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU