27 Julho 2016
"O coração desta grande arquitetura histórico-teórica permanece sendo, no entanto, sempre Jesus de Nazaré, a quem foi consagrado não só a vida de muitos discípulos, as mentes de muitos pensadores, o trabalho de uma cadeia ininterrupta de artistas, o compromisso existencial de um número infinito de crentes, mas também as reações hostis de não poucos contestadores".
O comentário é de Gianfranco Ravasi, cardeal, teólogo, estudioso do hebraico e presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 24-07-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Benî hizzaer 'asot sefarîm harbeh e’n qets
"Meu filho, tome cuidado: nunca se termina de escrever
livros".
Poderíamos assumir esta admoestação, do velho e irônico Qohelet / Eclesiastes bíblico (Ecl 12,12), como lema universal da editoria, mesmo nestes tempos tão primorosamente digitais, passados do sílex das epígrafes ao silício dos tablets. A exortação deste sábio bíblico (ou melhor, do redator final do breve texto de apenas 2.987 palavras, no original hebraico) é sobretudo verdadeira para os livros que comentam as Sagradas Escrituras, cuja incessante produção é constantemente monitorada por revistas específicas, como por exemplo, Old Testament (e, em paralelo New Testament) Abstracts, ou o Internationale Zeitschriftenschau für Bibelwissenschaft und Internationale Grenzgebiete, agora substituídos pelas mais céleres bibliografias informáticas.
De vez em quando nós também fazemos alguma incursão neste oceano cartáceo, para explicar tanto a fertilidade da pesquisa exegético-teológica, geralmente desconhecida do mundo acadêmico "laico", dada a ausência de faculdades teológicas nas universidades públicas (ao contrário do que acontece em outros países), seja para mostrar a complexidade dessas investigações.
Muitas vezes era o tema de minhas conversas com um extraordinário erudito intelectual de alta qualidade, o falecido Beniamino Placido, de quem herdei a surpreendente seção bíblica de sua biblioteca, paradoxalmente preciosa, também para mim - apesar de eu ter passado a vida nestes estudos - pela sua apuradíssima seleção de ensaios dedicados à interação entre Bíblia e cultura.
No curto perfil bibliográfico que agora gostaria de esboçar, vou deter-me apenas em alguns exemplos do Novo Testamento. Partimos do núcleo duro do cristianismo assim formulado pelo apóstolo Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, vazia / vã é a nossa fé" (1 Cor 15,14.17). O evento pascal é difícil de decifrar e definir porque as fontes primárias disponíveis - isto é, os quatro Evangelhos - afirmam que Cristo ressuscitou, mas não dizem como; na verdade, preferem usar uma linguagem polimórfica, e ao lado da categoria "ressurreição", introduzem outras como "glorificação, exaltação, o vivente (com zoè, não com bíos)", na consciência da singularidade daquele ato que envolve história e transcendência.
Descobrimos particularmente claro o ensaio Gérard Rossé, que apostou diretamente na ressurreição de Jesus, na fórmula adotada pela maioria dos escritos do Novo Testamento, ancorada um padrão já conhecido pelas Escrituras Hebraicas.
O estudioso francês tem, assim, explorado todas as questões mais candentes que se enlaçam em torno a este lema com sua procissão de perguntas: qual é o módulo antropológico subjacente à figura do Ressuscitado (certamente não o neoplatônico)? Que significado deve ser atribuído ao túmulo vazio? Que valor têm as chamadas "aparições" do Ressuscitado? Que grau de confiança pode ser atribuído às testemunhas do evento da Páscoa? Qual o papel de Paulo na elaboração da doutrina de Cristo ressuscitado?
Como é evidente, são questões que sobrepõem história e fé e, portanto, requerem extrema cautela, não obstante o fato de que o ato da ressurreição em si considerado - como foi dito - não é narrado, exceto pelo Evangelho apócrifo de Pedro, cuidadosamente silenciado nos Evangelhos canônicos.
Para alguns leitores pode, portanto, parecer estranho, mas o poderoso Cristo que sobe do túmulo, da pintura de Piero della Francesca, em 1463, na sala do antigo Palácio da Prefeitura de sua cidade natal, Borgo Sansepolcro, e a infinita teoria de cenas semelhantes que pontuam a história da arte, não refletem o ditado evangélico primitivo. O fato é que o acontecimento pascal cristão - um pouco como paralela, mas diferente da exódica páscoa judaica - é a fonte geradora do cristianismo. O primeiro elo desta genealogia é representada pela pregação oral das primeiras testemunhas (o chamado Querigma, ou "anúncio"), que foi seguido pela trilogia dos Evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus, Lucas), enriquecidos, depois, com o testemunho do quarto Evangelho joanino.
A quem quiser uma das mais recentes sínteses dessas passagens, apontamos o subsídio dedicado aos Evangelhos Sinópticos e aos Atos dos Apóstolos de Massimo Grilli, da Universidade Gregoriana de Roma, que avalia as macroestruturas, as coordenadas histórico-ambientais e os motivos teológicos.
Para João, que baseia seu Evangelho nos dois polos simbólico- teológicos do “sete" sinais milagrosos e da ''hora” final, salientamos, ao invés, o belo perfil de Pierre Dumoulin, que por muito tempo ensinou na Rússia, Cazaquistão e Geórgia.
Paulo, a que já nos referimos, é a maior ponte não só para o Ocidente greco-romano, mas também para a história posterior do cristianismo, cujos anos decisivos da sua evolução foram aqueles que vão de 100 a 250. Estes são objeto de um ensaio ágil, mas pontual, de Pierre Prigent, da Universidade de Estrasburgo, que não hesita em entrar e introduzir-nos num emaranhado de eventos que envolvem mártires e apologistas, desvios gnósticos e marcionitas (relacionados sobretudo à hermenêutica do Novo Testamento), debates acalorados sobre a data da Páscoa e sobre o profetismo na Igreja, com o surgimento de um personagem como Montano, obscura figura da Frígia, capaz, porém, de conquistar um gênio como Tertuliano, e, finalmente, a definição do Canon das Escrituras que marca o ponto final nas flutuantes ondas das teologias. Prigent faz subir à tribuna do pensamento cristão uma tetralogia de grande nível intelectual: Irineu de Lyon, do robusto quadro metodológico, o citado Tertuliano, aquele fervoroso defensor do diálogo com a cultura que foi Clemente de Alexandria e o genial Orígenes, destinado a deixar uma incisiva marca na história da teologia cristã.
O coração desta grande arquitetura histórico-teórica permanece sendo, no entanto, sempre Jesus de Nazaré, a quem foi consagrado não só a vida de muitos discípulos, as mentes de muitos pensadores, o trabalho de uma cadeia ininterrupta de artistas, o compromisso existencial de um número infinito de crentes, mas também as reações hostis de não poucos contestadores. É curioso notar, por exemplo, que o arco mais amplo de páginas do diálogo de Dario Fo com Giuseppina Manin, sobre sua relação com Deus, é reservado apenas à cristologia um pouco desconjuntada, mas veemente, do autor de Mistero Buffo.
Mas, para um retrato mais criticamente relevante, assinalamos o agradável livro de um famoso teólogo francês, Joseph Doré, ex-arcebispo de Estrasburgo. O título é inequívoco: Gesù spiegato a tutti, assim como os capítulos-etapas que vão da história do protagonista à sua mensagem, da sua identidade à posteridade, ou seja, ao rastro que acompanha Cristo até os dias de hoje. O conjunto é distribuído numa bateria de oitenta perguntas, sem enfeites, onde giram, as questões as mais espinhosas.
A quem não O segue como Senhor devemos dizer, porém, que Jesus explicado em profundidade - como nota Doré - ajuda a "compreender melhor a existência humana" e seu sentido último. E isso não é pouca coisa.
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Jesus, em poucas palavras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU