05 Março 2021
Pode um historiador se ocupar “cientificamente” do judeu Yehoshua ben Yosef que viveu no século I sob Augusto e Tibério e foi a origem de um dos mais importantes cultos religiosos da história da humanidade? Esse é o tema abordado por Fernando Bermejo-Rubio, em“L’invenzione di Gesù di Nazareth. Storia e finzione” [A invenção de Jesus de Nazaré. História e ficção], publicado pela Bollati Boringhieri.
O comentário é de Paolo Mieli, publicado por Corriere della Sera, 02-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Falar de “invenção”, especifica o autor, não significa defender que aquele homem nunca existiu. Mas sim expressar – desde o título do livro – o conceito de que a história daquele pregador (“presumivelmente real”) sofreu – ao longo dos tempos – tamanhas modificações que tornaram essa figura “dificilmente reconhecível”.
Deixemos claro desde já: que característica deveria ter uma obra “histórica” sobre uma figura sobre a qual existem milhares de trabalhos nas bibliotecas e nas livrarias do mundo e sobre a qual uma infinidade de novas monografias são publicadas todos os anos? A de poder ser “legitimada” perante o leitor. Uma legitimação ainda mais necessária a partir do momento em que – apesar das “recorrentes proclamações sensacionalistas” – nas últimas décadas, segundo o autor, não surgiram novas fontes, textuais ou arqueológicas, que “tornem urgente uma reavaliação” sobre o que foi dito e escrito anteriormente.
As “incríveis novidades” das quais muito se falou (o “Evangelho de Judas”, o suposto ossário de Tiago, o túmulo de Talpiot, o papiro com o “Evangelho da mulher de Jesus”), na opinião do autor, não ofereceram nada de relevante aos estudiosos.
Por outro lado, é evidente, escreve Bermejo-Rubio, “a falta de plausibilidade histórica da grande maioria das obras sobre Jesus”. Trata-se, continua ele, “principalmente de paráfrases dos relatos do Evangelho, dos quais tacitamente se aceita a veracidade essencial”.
Apesar da “exibição de erudição e de credenciais acadêmicas por parte dos seus autores”, tais textos “não oferecem nada mais do que um relato suspeitamente semelhante ao que se encontra em toda a doutrina cristã já a partir dos seus escritos fundadores”. Como se o historiador tivesse que aceitar dentro de uma caixa fechada o relato de “um herói espiritual e moral que se ergue sobre seus próprios contemporâneos”.
É evidente que, ainda hoje, a abordagem com que o assunto é tratado é intrínseca ao culto que “fez de Jesus um objeto de adoração”. E não seria sequer necessário ressaltar que, quando um estudioso decide se aplicar a Jesus, deveria tratar esse “objeto de estudo” com “o mesmo distanciamento reflexivo com que aborda qualquer assunto”.
As fontes que falam de Jesus “apresentam maiores dificuldades do que se dá a entender”, escreve Bermejo-Rubio, que considera equivocados aqueles que – como Ed Parish Sanders em “A verdadeira história de Jesus” (Ed. Clube do Autor) – definem as fontes concernentes ao Nazareno como “mais confiáveis do que as de Alexandre Magno”. São aqueles que, como Sanders, pontualiza Bermejo-Rubio, “esquecem muitos dados arqueológicos e epigráficos relativos ao Macedônio que, no caso de Jesus, não temos à disposição”.
Por outro lado, segundo o autor, tem razão aqueles que se mostram prudentes e se resguardam. Nisso ele concorda com outros importantes estudiosos que abordaram a questão. Qualquer pessoa que se ocupe desse personagem “escreve a partir de algum ponto de vista ideológico”, deixou claro John Meier em “Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico” (Imago Editora).
Quanto aos Evangelhos, Dale C. Allison Jr. – em “Cristo storico e Gesù teologico” [Cristo histórico e Jesus teológico] (Ed. Paideia) – reiterou que, quando os lemos, “devemos pensar não que Jesus disse isto ou aquilo, mas sim que Jesus fez coisas semelhantes a estas e disse coisas semelhantes àquelas”.
O biógrafo que representa Jesus “é sempre dogmático, de algum modo, no sentido pejorativo do termo”: essa é a drástica tese de Martin Kähler expressada em “Il cosiddetto Gesù storico e l’autentico Cristo biblico” [O chamado Jesus histórico e o autêntico Cristo bíblico] (D’Auria Editore).
Um elogio particular, de acordo com o autor, vai para aqueles que – como Raymond Edward Brown em “A morte do Messias” (Ed. Paulinas) – se limitam a constatar que algo que nos foi transmitido em relação à vida do Nazareno é ou não “verossímil” ou “plausível”.
No entanto, continua Bermejo-Rubio, “a grande maioria dos estudos sobre Jesus mostra uma evidente desenvoltura a esse respeito”. Embora a gênese e a afirmação da ciência comparada das religiões desde o início da era moderna deveriam ter garantido um suficiente distanciamento crítico, o mundo intelectual contemporâneo continua se mostrando, muito frequentemente, “incapaz de abordar com o devido rigor” a investigação sobre aquele judeu do século I.
De fato, “o fervor piedoso e a prosa ditirâmbica” com que ainda hoje é abordada a figura de Jesus, além da aura “rodeada de absoluta singularidade” que lhe é atribuída em obras que, segundo os autores, seguiriam um rigoroso critério histórico, não podem deixar de despertar “uma certa perplexidade em qualquer leitor dotado de senso crítico”.
Quase um século atrás, um aluno de Ernest Renan, Charles Guignebert, no seu “Jesus” (Ed. Einaudi), advertia contra a representação daquele pregador galileu como um personagem tão extraordinário “pelos dons do seu gênio”, tão fora do comum “pela profundidade do seu sentimento religioso e pela delicadeza da sua sensibilidade moral” a ponto de não poder ser comparado verdadeiramente “a nada de humano”.
Há nessa representação “ainda bastante comum mesmo entre os não crentes”, observava Guignebert, “como que uma sobrevivência muito tenaz da fé atávica na sua divindade”. Algo “muito constrangedor para a liberdade da crítica”.
Na realidade, “a mitificação de Jesus durou por tanto tempo e com tamanho desdobramento de meios que ainda hoje é difícil compreender o seu alcance até mesmo por mentes cultas e reflexivas”. Para se aproximar do personagem “ainda é preciso passar pelas representações consolidadas no imaginário da cultura ocidental, às vezes de modo tão subliminar que muitos habitantes da autodenominada sociedade secularizada ainda hoje não se emanciparam delas”.
O problema é que, “se Jesus não é apenas um personagem histórico, mas sobretudo um objeto de devoção religiosa”, escreve Bermejo-Rubio, é preciso levar em conta que essa devoção se deve ao fato de que “a memória dele foi radicalmente transformada mediante um complexo processo de exaltação lendária”.
Porém, os detalhes dessa metamorfose “ainda são ignorados ou conhecidos de modo impreciso não só pelo grande público, mas também por uma ampla gama de intelectuais”. Tanto que não são poucos os estudiosos que consideram esse processo de exaltação como “um fenômeno estupefaciente” e, em última análise, “incompreensível”.
Existem, segundo Bermejo-Rubio, poucas ideias mais reiteradas na historiografia corrente do que aquela segundo a qual Jesus, em muitas, muitíssimas ocasiões, foi “mal-entendido”. Isso foi defendido, mais ou menos explicitamente, por Oscar Cullmann, James Dunn, Rudolf Bultmann, Mircea Eliade, assim como, antes e depois deles, por centenas de exegetas e teólogos.
Jesus não foi – afirmam tais exegetas e teólogos – um “pregador apocalíptico” comparável a outros da sua época. Ele também não aspirou a uma “reconstituição nacional de Israel”. E também não quis que os seus discípulos se “armassem”. A sua mensagem absolutamente não tinha “implicações subversivas” para o Império Romano. Ele nunca alimentou pretensões “régio-messiânicas”. Equivocam-se também aqueles que acreditam que ele foi executado por um dos motivos acima mencionados.
Mas como foi possível um mal-entendido tão gigantesco? Os teóricos da “deturpação” argumentam que os seus discípulos – ou, mais em geral, os seus contemporâneos – se detiveram à letra e não compreenderam o “significado profundo” das suas palavras. Com efeito, no Evangelho de Marcos, os discípulos são apresentados várias vezes “como um grupo que não entende o que o mestre é, diz e faz”. Eles são mostrados como “incapazes de compreender” o sentido autêntico das parábolas e até dos milagres. E é o próprio Jesus quem os acusa de não compreenderem bem aquilo que ele queria dizer e de não conseguirem entender por causa do seu “coração endurecido”.
Tudo isso, defende Bermejo-Rubio, levanta “problemas intransponíveis” para quem quer se ocupar da figura histórica de Jesus. Se fosse verdade que Jesus foi mal-entendido em aspectos-chave da sua pregação, isso significaria que ele “foi um mestre extraordinariamente incompetente”, que “não soube transmitir as suas ideias de modo claro nem mesmo àqueles que ele mesmo escolhera como discípulos”. Isso também implica que os seus seguidores teriam sido “um bando de ineptos, incapazes de entender e de obter explicações do mestre”. Mais: teriam sido “pessoas evidentemente irresponsáveis, pois teriam seguido alguém cujos ensinamentos e propósitos eles não entendiam”.
A ideia que está no cerne da “teoria do mal-entendido” – isto é, a de um Jesus “didaticamente inepto, rodeado por um grupo de discentes desajeitados” – deveria ser “profundamente inquietante”. Aquilo que, de acordo com esses teóricos, os discípulos não teriam entendido no significado mais autêntico “refere-se a ensinamentos cuja incompreensão poderia ter tido consequências fatais no contexto da dominação imperial romana”.
Se Jesus não quis ser “rei no sentido davídico”, mas, em vez disso, permitiu que os seus ouvintes acreditassem que ele alimentava tal aspiração, ele teria cometido o erro de suscitar neles esperanças que ele não só “sabia que não estavam destinadas a se cumprir”, mas também que – ele podia facilmente imaginar – podiam “desencadear ações que as tropas romanas reprimiriam, presumivelmente de forma violenta”.
Consideremos, por exemplo, a chamada “entrada triunfal” em Jerusalém. Se tomarmos como certo que, naquela ocasião, ocorreu um diálogo entre Jesus e os seus discípulos no qual ele lhes ordenou que “adquirissem espadas”, um diálogo que se conclui bruscamente e sem maiores esclarecimentos – por exemplo, que ele estivesse falando metaforicamente –, “o galileu”, defende Bermejo-Rubio, “teria permitido que os seus seguidores o entendessem mal e comprassem espadas de verdade”.
Desse modo, além disso, ele os teria exposto à repressão das autoridades estabelecidas. Se “forem aceitas as pretensões atuais”, Jesus “não só teria criado confusão entre os discípulos”, mas também “teria permitido conscientemente que empreendessem ações destinadas a desembocar tanto em decepção quanto em retaliação por parte dos romanos”.
Em outras palavras, “o equívoco sobre as expectativas de Jesus” poderia ter levado os seus inutilmente a uma encruzilhada entre a vida e a morte. Assim sendo, o fato de o galileu ter suscitado expectativas que divergiam das suas verdadeiras intenções, sem se sentir no dever de esclarecer questões tão delicadas, “beira o inacreditável” (além de apresentá-lo como “um irresponsável desprovido de qualquer escrúpulo moral”).
Embora “não haja nenhuma razão para que o historiador tire conclusões desse tipo”, Bermejo-Rubio se apressa em especificar que é isso que se chega a pensar partindo do pressuposto de que “Jesus não foi entendido”. Uma tese que, “em última análise, é autodestrutiva”.
Portanto, a forma como a história da investigação de Jesus foi contada durante décadas – também para deixar de lado as obras anteriores ao Iluminismo – é, segundo Bermejo-Rubio, “insustentável”. E evidencia a necessidade de dispor de um “paradigma historiográfico alternativo”. Daí, explica o autor, a decisão de escrever um livro que não tem a pretensão de dizer uma palavra definitiva sobre a “verdadeira história” de Jesus, mas que se propõe, sobretudo, como um “ato de clareza em um âmbito confuso”. E como um “instrumento para quem, disposto a escapar do feitiço do mito, aspira a compreender o que uma reflexão graniticamente independente pode revelar sobre o personagem, independentemente das simplificações atuais”. Ainda muito pouco. Infelizmente.
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Estudando Jesus para além do mito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU