Quaresma: carregar a cruz com o espírito de alegria

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04 Março 2022

"Foi no discurso por ocasião da Festa de São José, na Sala Clementina, em 2010, que Bento XVI sugeriu o que qualificou como 'o mais adequado conteúdo possível ao período da quaresma': As sete palavras de Cristo na cruz, de Haydn. A obra de 1786, escrita para grande orquestra, sublinhou o papa, 'nos predispõe mesmo viver o Mistério central da fé cristã. As sete palavras de Cristo na cruz é, com efeito, um exemplo dentre os mais sublimes no campo musical, do modo como a arte e a fé podem se conjugar'".

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos

Na celebração da Páscoa em 2020, no primeiro ano da pandemia de Covid-19, muitos de nós fomos tocados pela oração solitária do Papa Francisco na Praça São Pedro, quando deu a benção e a indulgência plenária ao mundo. Na manhã seguinte, Andrea Bocelli, no concerto Music For Hope, realizado no Domo da Catedral de Milão, nos lembrou como, através da oração e da música, podemos abraçar o mundo ferido e manifestar a alegria de testemunhar o mistério da Páscoa.

 

 

 

Em discursos proferidos após concertos em capelas e catedrais durante o seu pontificado, o Papa Bento XVI fez menção ao espírito da música "para reavivar em nossos corações a alegria que brota da fé, para que cada um se torne testemunha convicta no quadro de sua vida cotidiana". 

Em 2006, na Alte Kapelle de Ratisbona, ele explicou que "através de suas músicas, os grandes compositores queriam, cada qual à sua maneira, glorificar a Deus". Johann Sebastian Bach, por exemplo, disse, "ao cabeçalho de uma grande quantidade de suas partituras, escreveu as letras S. D. G: Soli Deo Gloria - somente à gloria de Deus".

 

 

Em 2010, no Pátio do Palácio Pontifício de Castel-Gandolfo, depois da apresentação de O Requiem, de Mozart, ele definiu a obra do artista como "um dom da Graça de Deus, mas é também fruto da fé viva de Mozart que, particularmente em sua música sacra, conseguiu fazer transparecer a resposta luminosa do Amor divino, que dá esperança, mesmo quando a vida humana é assolada pelo sofrimento e pela morte". Um traço dessa fé foi ilustrado pelo Papa ao citar o trecho de uma carta do compositor a seu pai, em 1787:

 

"Eu me tornei, desde há alguns anos, tão familiar a essa sincera e mui cara amiga (a morte) que não apenas sua imagem não me causa nada de amedrontador, como, ao contrário, me reconforta, me acalma! Eu agradeço a meu Deus por me haver concedido poder reconhecer nela a chave de nossa alegria. Eu não me deito jamais sem pensar que amanhã, talvez, eu posso não estar mais aqui. E, contudo, nenhum daqueles que me conhecem e frequentam poderia dizer que sou um tipo rancoroso ou triste. E por essa fortuna eu agradeço todos os dias a meu Criador, e desejo-a de todo o coração a cada um dos meus semelhantes".

 

 

Em 2007, depois de ouvir a 9ª Sinfonia de Beethoven, Bento XVI relatou como este "patrimônio universal da humanidade" continua a suscitar sua admiração: "Depois de anos de isolamento ao longo dos quais Beethoven teve de combater a depressão e uma profunda amargura que ameaçavam abafar sua criatividade artística, em 1824 o compositor, já totalmente surdo, surpreende o público com uma composição que rompe com a forma tradicional da sinfonia e que, associando coros e solistas à orquestra, culmina num final extraordinário de otimismo e alegria". 

A obra Stabat Mater, de Giachino Rossini, mencionou o Papa em outro discurso na Sala Paulo VI, em 2011, "é uma grande meditação sobre o mistério da morte de Jesus e sobre a profunda dor de Maria. (...) A religiosidade de Rossini expressa uma vasta gama de sentimentos face aos mistérios de Cristo, com uma forte tensão emotiva".

 

 

Aos 71 anos, continuou, depois de compor outra obra sacra, a Pequena Missa Solene, Rossino escreveu: "Bom Deus, ei-la aqui concluída essa pobre Missa... Tu sabes bem que eu nasci para a ópera bufa! Pouca ciência, um pouco de coração, eis aí tudo. Sê bendito, pois, e concede-me o paraíso". 

Na mesma ocasião, ao comentar o Credo, de Vivaldi, ele deu uma breve aula sobre a profissão de fé cristã:

 

"'Creio', 'Amém': são as duas palavras pelas quais se inicia e conclui o Credo, a 'Profissão de fé' da Igreja, que acabamos de ouvir. Que quer dizer credo, 'eu creio'? É um verbo que tem diferentes significações: ele indica a aceitação de algo em meio às nossas próprias convicções, e o fato de confiar em alguém, ou de estarmos seguros. Mas quando nós o dizemos no Credo isso adquire um sentido mais profundo. Afirmamos com confiança o sentido verdadeiro da realidade que nos sustenta, que sustenta o mundo: significa acolher esse sentimento como um terreno sólido sobre o qual podemos nos fixar sem temer; é saber que o fundamento de tudo, de nós mesmos, não pode ser feito por nós, mas só pode ser recebido. E a fé cristã não diz 'eu creio em algo', mas sim 'eu creio em Alguém', no Deus que se revelou em Jesus; n'Ele eu percebo o verdadeiro sentido do mundo e esse crer implica toda a minha pessoa, que se dirige a Ele. A palavra 'Amém', em seguida, que em hebreu tem a mesma raiz que a palavra 'fé', retoma a mesma ideia: o fato de se repousar com confiança sobre a base sólida de Deus"

 

 

Mas foi no discurso por ocasião da Festa de São José, na Sala Clementina, em 2010, que Bento XVI sugeriu o que qualificou como "o mais adequado conteúdo possível ao período da quaresma": As sete palavras de Cristo na cruz, de Haydn. A obra de 1786, escrita para grande orquestra, sublinhou o papa, "nos predispõe mesmo viver o Mistério central da fé cristã. As sete palavras de Cristo na cruz é, com efeito, um exemplo dentre os mais sublimes no campo musical, do modo como a arte e a fé podem se conjugar. A invenção do músico é inteiramente inspirada e quase 'dirigida' pelos textos evangélicos, que culminam nas palavras pronunciadas por Jesus crucificado, antes de dar seu último suspiro".

  

  

 

No ano anterior, Bento XVI havia comentado composições de Vivaldi, Haydn e Mozart para o tempo da Páscoa. "A Sinfonia 95, de Haydn, parece conter em si um itinerário que nós poderíamos chamar de 'pascal'. Ela começa, com efeito, em dó menor e, através de um percurso sempre perfeitamente equilibrado, mas nem por isso menos dramático, chega a uma conclusão em dó maior. Isso nos faz pensar no itinerário da alma rumo à paz e à serenidade".

 

 

Em Ave Verum Corpus, de Mozart, observou, "a meditação cede espaço à contemplação: o olhar da alma se dirige ao Santíssimo Sacramento para reconhecer nele o Corpus Domini, o Corpo que foi verdadeiramente imolado sobre a cruz e do qual jorrou a fonte da salvação universal". Mozart, pontou, "compôs esse moteto pouco antes de morrer, e pode-se dizer que, nele, a música torna-se verdadeiramente uma prece, abandono do coração a Deus, com um senso profundo de paz".

 

 

Já na Sinfonia 35, "que amplifica a afirmação da vida sobre a morte", destacou, a primeira palavra é o Magnificat. "Saída do coração de Maria - Bem-amada de Deus por usa humildade - essa palavra tornou-se o canto cotidiano da Igreja, justamente à hora das vésperas, hora que convida à meditação sobre o sentido da vida e da história. Está claro que o Magnificat pressupõe a Ressurreição, ou seja, a vitória de Cristo: n'Ele Deus realizou suas promessas, e sua misericórdia se revelou em todo o seu poder paradoxal".

 

 

Em outro pronunciamento, em 2007, depois do oratório Resurrexi, Bento XVI refletiu sobre o acontecimento central da nossa fé. "O título Resurrexi, 'Eu ressuscitei', tirado do incipit latino da antífona de entrada da Missa Pascal, soa como Jesus apresentando-se a si mesmo na liturgia, fazendo-se reconhecer, justamente, em sua condição de Ressuscitado. O oratório renova os sentimentos de fascínio e alegria experimentados pelas primeiras testemunhas oculares da Ressurreição".

 

 

Na celebração de seus 80 anos, em 2007, Bento XVI refletiu sobre o caráter universal da música. Ela, observou, é "verdadeiramente a linguagem universal da beleza, capaz de unir os homens de boa vontade sobre toda a terra, levando-os a elevar o olhar, para se que abram ao Bem e ao Belo absolutos, que têm sua fonte última em Deus mesmo". 

Que a beleza da música nos inspire a carregar a cruz nesta Quaresma, com o espírito de alegria, que Ele mesmo nos envia.

 

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