26 Março 2019
O enciclopédico cardeal exegeta Gianfranco Ravasi oferece neste livro (“Le sette parole di Gesù in croce” [As sete palavras de Jesus na cruz]) mais um ensaio dos seus profundos conhecimentos não apenas bíblicos, mas estendidos também a muitos campos das ciências, da literatura e da música em primeiro lugar.
O comentário é do teólogo italiano Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, publicado por Settimana News, 24-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Seguindo a ordem das sete palavras pronunciadas por Jesus na cruz, segundo os vários testemunhos evangélicos do moo como foram codificados pelo monge cartuxo Leopoldo da Saxônia – com a leve modificação de antecipar a palavra à mãe e ao Discípulo Amado em relação àquela dita ao ladrão arrependido –, Ravasi repassa os últimos momentos da vida de Jesus vividos sob a insígnia da dor atroz, mas também da grande fé e da entrega confiante ao Pai.
O autor põe como premissa às suas reflexões sobre as últimas sete palavras de Jesus na cruz um capítulo dedicado ao pano de fundo que intercorre na noite entre a quinta-feira e a sexta-feira. Reelaborando um artigo escrito para o L’Osservatore Romano de 28 de março de 2010, Ravasi refaz os eventos da prisão de Jesus e dos interrogatórios realizados à noite e no início da manhã, tanto em sede judaica quanto romana.
No seu percurso explicativo, muito sintético e rico em informações, Ravasi não acena à possibilidade de Jesus ter realizado a ceia de despedida ou uma refeição solene na noite de terça-feira (segundo o calendário essênio), deixando, desse modo, mais espaço para a ocorrência dos vários eventos.
Depois de descrever a complexa figura de Pilatos, como mostrado pelos Evangelhos e pela tradição posterior, o autor conclui o seu percurso com Jesus que chega, torturado e vilipendiado, à colina do Gólgota.
Ravasi lembra várias vezes que as narrativas evangélicas não são relatos de crônica, mas, como todas as histórias, são uma história interpretada, desta vez à luz da fé, para sugerir o significado profundo, teológico e escriturístico das pessoas e dos eventos em cena.
Típicos de Ravasi nesse volume são a frequente citação de biblistas, literatos, músicos, santos e místicos e, no campo bíblico, o amplo espaço dado às contribuições dos escritos apócrifos, preciosos pelas suas informações que refletem a atmosfera espiritual dos dois primeiros séculos da comunidade cristã.
Toda a história de Jesus na cruz é vivida por Jesus e interpretada pelos Evangelhos à luz da fé bíblica, especialmente aquela expressada nos Salmos. Na cruz, Jesus não busca vingança, mas perdão. Ravasi perscruta não apenas o aspecto bíblico disso, mas também psicológico, terapêutico e econômico.
Ao perdão, segue-se a entrega da mãe ao discípulo e, vice-versa, do Discípulo Amado à mãe. Debaixo da cruz, desponta a flor da Igreja.
Jesus promete o paraíso, isto é, a vida com ele, ao bom ladrão. Os apócrifos dariam aos ladrões os nomes de Tito e Dumaco, ou Disma/Edma (bom) e Cista/Gesta (mau); nas traduções posteriores, eles assumiriam nomes mais estranhos: Joathas/Zathanm (bom) e Camma/Cappatas (ruim)...
Jesus não morre desesperado, mas na dor atroz, física, moral e espiritual; ele sente humanamente a solidão espiritual também, mas, rezando com o início do Salmo 22, ele reza tudo. Morre não des-esperado, a-teu, mas rezando ao seu Deus, com abandono confiante no êxito feliz que o Salmo prevê no seu término.
Jesus rejeita a mirra/fel citado no Salmo, que o impediria de fazer o dom de si em plena consciência, enquanto provava o oxos, o vinagre amargo e ácido dos soldados.
O seu grito será confundido como a invocação de Elias, padroeiro dos moribundos. Solidão dramática, mas não desespero ateu.
Ao término dos seus sofrimentos, Jesus eleva o grito da sede, que Ravasi também parece interpretar como ápice da história da salvação (tenho sede de redimir os seres humanos). Eu prefiro ler o versículo no sentido de que, sabendo Jesus que tudo havia sido consumado para que a Escritura fosse consumada, então disse: “Tenho sede”. Grito intenso, certamente, muito significativo e simbólico, mas (com De La Potterie) não parece que dizer “tenho sede” represente o cumprimento das Escrituras...
É delicada a posição das vírgulas, a ser bem interpretada se ambas forem mantidas [“... sabendo que tudo estava consumado, para que se cumprisse a Escritura, Jesus disse: ‘Tenho sede’”; Jo 19, 28], enquanto a interpretação é facilitada se tirarmos a primeira (depois de “consumado”).
O drama da morte de Jesus, mas o seu fim não desesperado, é bem expressado por uma palavra que só Lucas lembra. Ele relata a frase com a qual Jesus expressa a plena entrega da própria vida ao Pai, como todo bom judeu faria nos séculos seguintes no fim do dia (e assim também os cristãos na liturgia das Completas). Jesus devolve ao Pai/Doador o próprio princípio vital, mas também toda a própria vida e a própria história, corroborada pela presença do Espírito Santo desde o batismo, passando pelas tentações e pela oração de louvor ao Pai.
Depois do capítulo introdutório (pp. 15-52) e concluídas as meditações sobre as sete palavras ditas por Jesus na cruz (pp. 54-186), no capítulo nono (pp. 187-220), Ravasi indaga sobre os eventos posteriores à morte de Jesus, delineando as figuras de José de Arimateia, de Nicodemos, das mulheres, de Pedro e João, de Maria Madalena, meditando sobre o mistério da ressurreição que, embora tendo suas raízes na história, tem a sua profundidade de sentido, o seu “florescimento”, em nível transcendental, “divino”. Por isso, as cristofanias (termo nunca usado por Ravasi, mas frequente nos autores) são de dois tipos: de reconhecimento e de envio à missão. Ressurreição não é evidentemente o mesmo que reanimação.
O capítulo décimo (pp. 221-244) é dedicado a uma reflexão sobre o escândalo da cruz, sinal de morte infame, mas símbolo também de redenção, de amor solidário e redentor, eixo central da teologia cristã, escândalo e glória, sabedoria paradoxal da qual nunca se se deve envergonhar. “A cruz para nós, a ressurreição diante de nós” (J. Moltmann). Per crucem ad lucem, diria o ditado medieval.
Não podia faltar um capítulo dedicado à retranscrição artística das sete palavras de Jesus na cruz: palavras, música, imagens. O livro se fecha com um comentário sobre a obra de Heinrich Schütz e sobre a obra-prima de Franz Joseph Haydn.
Algumas observações menores: na p. 25, antes de Caifás, houve o sumo sacerdote Simeão, filho de Kamit (17-18 d.C.); Ravasi prefere a identificação da sede do prefeito quando ele subia a Jerusalém no quartel da Fortaleza Antônia, mas muitos a identificam, ao contrário, com o Palácio dos Herodes situado na cidade alta; Pilatos é prefeito, mais do que procurador (pp. 31, 34, 37, 198; cf. a inscrição em pedra de Cesareia Marítima); na p. 229s, Jesus não “foi tratado como pecado”, mas “feito pecado”; seguindo as indicações de Vanhoye, em referência a Gl 3, 13, é melhor manter a metáfora pela qual Jesus se tornou “maldição” e não “maldito” (torna mais trágica a definição: “Foi a maldição em pessoa!” e separa ainda mais a metáfora da pessoa: Jesus não foi pessoalmente maldito).
É bom mencionar a teoria da substituição e de justiça forense elaborada por Anselmo de Aosta, mas retomar algumas expressões como “as justas exigências da justiça” soa realmente fora de lugar (p. 230; assim também na p. 239, onde há até uma tentativa de melhorar a compreensão; é melhor abandonar totalmente tal elaboração, que já causou danos durante um milênio inteiro). Na p. 238, o último dos autores da “Teologia contemporânea” é U. Perone, e não V. Perone.
Como sempre, o ditado de Ravasi é límpido, fascinante, documentado (até demais!) e, com as suas contextualizações bíblicas, histórico-críticas e culturais em geral, ele fornece um ótimo instrumento para viver com intensidade a Semana Santa.
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As sete palavras de Jesus na cruz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU