06 Dezembro 2025
"A Imaculada Conceição de Maria revela no melhor dos modos a inusitada gratuidade divina. Maria foi concebida sem o pecado original por ter sido, na verdade, redimida de modo ainda mais sublime por Deus Pai em Jesus Cristo na virtude do Espírito Santo. Por esta razão, Maria não se eleva à esfera do divino para nos deixar abandonados e entregues à própria sorte"
O artigo é de Sinivaldo Silva Tavares.
Sinivaldo Silva Tavares, frade franciscano, é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum (1998) e pós-doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2018). De 1999 a 2011 foi professor de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia dos franciscanos em Petrópolis. Desde 2012, é professor e pesquisador junto ao Programa de Pós-graduação em Teologia da FAJE.
É membro dos grupos de pesquisa: “Ecoteologia, religião e consciência planetária” (FAJE); “Transdisciplinaridade, Ecologia integral e Justiça socioambiental” (UNISINOS) e “Common Home and new ways of living interculturally” (Universidade Católica Portuguesa). Possui mais de dez livros publicados, dentre os quais: A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo. A contribuição da Teologia da Libertação latino-americana (2002); Jesus, Parábola de Deus. Cristologia narrativa (2007); Trindade e Criação (2007); Teologia da Criação. Outro olhar – novas relações (2010); Evangelização e interculturalidade (2010); Evangelizar em Diálogo. Novos cenários a partir do paradigma ecológico (2014); Cuidar da Casa Comum. Chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si’ (com A. Murad) (2016); Ecologia e decolonialidade. Implicações mútuas (2022). Possui ainda inúmeros estudos publicados em revistas especializadas e em obras
coletivas.
Sinivaldo Silva Tavares | Foto: Arquivo Pessoal
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Eis o artigo.
O sentido da solenidade litúrgica da Imaculada Conceição de Maria, que as comunidades eclesiais de tradição católica celebram no dia 8 de dezembro, necessita ser compreendido, não a partir do pecado original, como muitos insistem equivocadamente, mas no interior do horizonte da graça e da benevolência do Deus de Jesus Cristo. Conceber a Imaculada Conceição de Maria a partir do pecado original trairia, de fato, uma específica compreensão da salvação cristã que, durante muito tempo, deu centralidade à ideia de mérito, projetando em Maria a imagem de mulher toda especial e, portanto, distante e alheia à sorte dos demais seres humanos.
Caso insistamos em interpretar a Imaculada Conceição da Mãe de Jesus como um privilégio condicionado única e exclusivamente à isenção do pecado, jamais alcançaremos compreender o que afirma a Constituição dogmática sobre a Igreja, a Lumen gentium: “Em vista dos méritos de seu Filho foi redimida de um modo mais sublime e unida a Ele por um vínculo estreito e indissolúvel, é dotada com a suma missão e dignidade de ser Mãe do Filho de Deus, e por isso filha predileta do Pai e sacrário do Espírito Santo. Por este dom de graça exímia supera de muito todas as outras criaturas, celestes e terrestres. Mas ao mesmo tempo está unida, na estirpe de Adão, com todos os homens a serem salvos” (LG 53).
É necessário, portanto, purificar a fé na Imaculada Conceição de toda “ganga maculista”. O fato de ter sido preservada do pecado original por antecipação não distancia Maria da humanidade pecadora. Ao contrário, torna-a mais sensível e solidária à nossa condição humana decaída e, enquanto tal, necessitada da graça e da redenção divinas. Tem, de fato, razão o Catecismo Holandês, quando afirma: “Maria não conheceu a culpa original. Foi concebida imaculada. Vivendo num mundo pecador, ela foi atingida pelas dores do mundo, mas não pela sua malvadez. Nossa irmã no sofrimento, não o é no mal. Ela venceu inteiramente o mal com o bem. Naturalmente o fez graças à redenção de Cristo”.
Reconhece-se, portanto, a solidariedade entre Maria e nós. Por ter sido criada pelo Pai “toda santa imune de toda mancha de pecado, predestinada a ser a Mãe do Seu Filho e como que plasmada pelo Espírito Santo e formada nova criatura” (LG 56), ela se revela intimamente ligada a cada pessoa e a todas as pessoas por um vínculo deveras estreito. O fato de ter sido “dotada desde o primeiro instante de sua conceição de uma santidade inteiramente singular” (LG 56) não a distancia dos demais seres humanos, mas, ao contrário, une-a ainda mais a eles por estreitos laços de solidariedade.
Consequentemente, a doutrina da Imaculada Conceição não deve ser de modo algum compreendida como um privilégio que recai unicamente sobre a pessoa de Maria. Não se trata, portanto, de uma espécie di status de superioridade conferido por Deus única e exclusivamente à pessoa de Maria, excluindo-a daquela comunhão solidária com todos os demais seres humanos. Para que, enfim, emerja o significado mais profundo da Imaculada Conceição de Maria é necessário concebê-lo inserido no seio das relações que compõem harmoniosamente a vida de Maria: com o Pai, com seu filho Jesus, com o Espírito Santo, consigo própria, conosco, com a história e, ainda, com a inteira realidade criada.
A Imaculada Conceição de Maria revela no melhor dos modos a inusitada gratuidade divina. Maria foi concebida sem o pecado original por ter sido, na verdade, redimida de modo ainda mais sublime por Deus Pai em Jesus Cristo na virtude do Espírito Santo. Por esta razão, Maria não se eleva à esfera do divino para nos deixar abandonados e entregues à própria sorte. Ao contrário, Maria é agraciada pelo Pai e predestinada a ser a Mãe do Seu único Filho e como que plasmada pelo Espírito Santo. Neste sentido, pelo fato de ter sido concebida sem a mancha do pecado original, Maria exprime quão imensa é a misericórdia do Pai e quão incomensurável é sua disponibilidade ao perdão. Maria é, em suma, a pessoa que mais foi perdoada: recebeu uma remissão tão plena que a protegeu de toda culpa. De fato, ao ser preservada do pecado original, Maria experimentou mais ainda a solidariedade reconciliadora de Cristo Salvador do que os demais humanos, redimidos de seus pecados.
A doutrina da Imaculada Conceição nos ensina ainda que o amor de Deus chega ao ponto de penetrar a vida de uma pessoa sem violentar minimamente sua liberdade e nem mesmo ofuscar sua singularidade pessoal. De fato, quando visita alguém, Deus o plenifica com sua graça, potencializando ao máximo e no melhor dos modos o que aí encontra de mais singular e pessoal. Esta é, fundamentalmente, a razão pela qual, ao plenificar a existência de Maria com Sua Graça, Deus fez com que nela desabrochasse sua singular santidade pessoal. Neste sentido, a Imaculada Conceição de Maria revela o desígnio de Deus, sua peculiar pedagogia – que poderia muito bem ser descrita como uma espécie de maiêutica – no trato não apenas com pessoas humanas, mas ainda com todas as criaturas. Assim, Maria pode com razão ser chamada de mulher “toda de Deus e, ao mesmo tempo, tão humana”.
A Imaculada Conceição de Maria exprime ainda o cuidado amoroso e terno de Deus para com cada uma de suas criaturas e para com todas elas. Neste sentido, preservando Maria da contaminação de todo e qualquer pecado, Deus fez dela uma nova criatura. Em Maria se concretizou, portanto, aquele sonho que, desde tempos imemoráveis, Deus acalentou e esperou vê-lo realizado em cada pessoa humana e em todos as pessoas, seus filhos e filhas diletos. Em Maria, portanto, a interpelação fundamentalmente positiva do Pai encontrou terreno fecundo em termos de acolhida generosa e de radical predisposição para encarnar suas interpelações.
A Imaculada Conceição de Maria constitui, enfim, a expressão mais plena do sim de Deus que ecoa em toda a criação. Se as verberações mais perfeitas de Deus encontraram em Maria acolhida perfeita a ponto de produzir ressonâncias harmônicas, podemos, então, acreditar que o projeto de Deus está em curso e que a inteira realidade criada está grávida de sua presença. Não por acaso Theillard de Chardin considera Maria a “pérola do Cosmos” pois, segundo ele, ela emerge como o elemento catalizador de todas as pulsões que forcejam o avançar da história numa direção fundamentalmente boa. E, por isso, a história não se perde por meio de inserções em atalhos abortivos da evolução do Cosmos, verdadeiros caminhos de involução e dispersão. Em Maria, segundo Chardin, percebemos que a verdadeira direção justa e positiva da história é Jesus Cristo, ponto para o qual convergem todas as forças de complexificação do Cosmos.
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