06 Novembro 2025
O debate sobre o papel da Virgem Maria na obra da salvação arrastava-se há décadas e o Vaticano põe-lhe agora um ponto final. Não, a mãe de Jesus não é “mediadora de todas as graças”, e muito menos “corredentora”, diz uma nota doutrinal publicada esta terça-feira, 4 de novembro, pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, que parece querer pôr freios a alguns excessos que têm conduzido a uma espécie de “mariolatria” na Igreja Católica.
A reportagem é de Clara Raimundo, publicada por 7 Margens, 04-11-2025.
O documento, intitulado Mater Populi Fidelis (em português, “Mãe do povo fiel”), começou a ser preparado ainda durante o pontificado de Francisco e foi aprovado pelo Papa Leão XIV no passado dia 7 de outubro (memória litúrgica de Nossa Senhora do Rosário) após ter sido deliberado pelo Dicastério a 26 de março, poucos dias após Francisco receber alta hospitalar.
Assinada pelo prefeito do dicastério, cardeal Víctor Manuel Fernández, e pelo secretário da seção doutrinária, monsenhor Armando Matteo, a nota está disponível em sete línguas no sítio oficial do Vaticano. Nela se analisam os títulos frequentemente atribuídos a Maria, valorizando alguns deles, mas sobretudo alertando para os riscos inerentes a outros.
É o caso do título de “mediadora de todas as graças”, relativamente ao qual se afirma que “tem limites que não facilitam a correta compreensão do lugar único de Maria”, tendo em conta que “ela, a primeira redimida, não pode ter sido mediadora da graça que ela mesma recebeu”. De acordo com o Dicastério para a Doutrina da Fé, “este não é um pormenor de pequena importância, porque manifesta algo central: que também nela o dom da graça a precede, procedendo da iniciativa absolutamente gratuita da Trindade”.
Além disso, o documento acrescenta a existência de outro “perigo” associado àquele título: o de “ver a graça divina como se Maria se convertesse numa distribuidora dos bens ou energias espirituais em desconexão com a nossa relação pessoal com Jesus Cristo”.
Contudo, salvaguarda a nota agora divulgada, a expressão “graças”, quando se refere à ajuda materna de Maria em diferentes momentos da vida dos fiéis, “pode ter um sentido aceitável”. Isto porque “o plural expressa todos os auxílios, também materiais, que o Senhor pode dar-nos escutando as intercessões da Mãe; auxílios que, por sua vez, dispõem os corações para se abrirem ao amor de Deus. Deste modo, Maria, como mãe, tem uma presença na vida quotidiana dos fiéis muito superior à proximidade que possa ter qualquer outro santo”, explica o texto.
As “boas intenções” não chegam
Quanto ao título de “corredentora”, é verdade que já foi usado por diversos papas, reconhece a nota, mas “sem se deterem muito em explicá-lo”. João Paulo II empregou-o em pelo menos sete ocasiões, “relacionando-o especialmente com o valor salvífico da nossa dor oferecida junto à de Cristo, ao qual se une Maria sobretudo na Cruz”
Já Bento XVI, quando ainda era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1996, e diante da pergunta se era aceitável a petição do movimento Vox Populi Mariae Mediatrici para uma definição do chamado “quinto dogma de Maria” como corredentora ou mediadora de todas as graças, “respondeu no seu voto particular: ‘Negativo. O significado preciso dos títulos não é claro e a doutrina neles contida não está madura'”.
Mais tarde, em 2002, “expressou publicamente a sua opinião contrária a este título: ‘A fórmula Corredentora distancia-se em demasia da linguagem da Escritura e da Patrística e, portanto, provoca mal-entendidos… Tudo procede d’Ele, como dizem sobretudo as Cartas aos Efésios e aos Colossenses. Maria é o que é graças a Ele. A palavra Corredentora obscureceria essa origem'”. O então cardeal Ratzinger não negava que houvesse na proposta de uso deste título boas intenções e aspetos válidos, “porém sustentava que era um ‘vocábulo equívoco'”.
O Papa Francisco, por sua vez, expressou, em pelo menos três ocasiões, a sua clara oposição ao uso do título de corredentora, argumentando que Maria “jamais quis reter para si algo do seu Filho. Nunca se apresentou como corredentora. Não, discípula!”.
A nota conclui, assim, que “quando uma expressão requer muitas e constantes explicações, para evitar que se desvie de um significado correto, não presta um bom serviço à fé do Povo de Deus e torna-se inconveniente”. E acrescenta: “Neste caso, não ajuda a exaltar Maria como primeira e máxima colaboradora na obra da Redenção e da graça, porque o perigo de obscurecer o lugar exclusivo de Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem por nossa salvação, único capaz de oferecer ao Pai um sacrifício de valor infinito, não seria uma verdadeira honra à Mãe”.
Não por acaso, assinala ainda a declaração, “o Concílio Vaticano II evitou utilizar o título de Corredentora por razões dogmáticas, pastorais e ecuménicas”. E neste documento, que nasceu após “numerosas consultas e propostas que chegaram à Santa Sé nas últimas décadas sobre questões relacionadas com a devoção mariana”, há também “um particular esforço ecuménico”.
Recordando que o mesmo Dicastério para a Doutrina da Fé publicou em maio deste ano as Normas para proceder no discernimento de presumidos fenómenos sobrenaturais, a nota refere que é frequente que, “em relação a estes fenómenos, se utilizem determinados títulos e expressões referidas à Virgem Maria”. Também nestes casos, “não são sempre utilizados com precisão; às vezes muda-se o seu significado ou são mal interpretados”, alerta o documento, esclarecendo que mesmo quando a Igreja concede o nihil obstat, tais eventos “não se tornam objeto de fé”, e os fiéis “não são obrigados a venerá-los”.
Durante a apresentação deste trabalho, que decorreu na Cúria Geral da Companhia de Jesus, em Roma, o cardeal Víctor Manuel Fernández reconheceu que o mesmo “não agradará a todos”, apesar de ser “fruto de décadas de reflexão”. A reação inflamada de uma das pessoas que assistia à apresentação (ver vídeo abaixo, ao minuto 30) e as críticas que se multiplicam nas redes sociais são já prova disso.
O documento não deixa, no entanto, de assumir que a devoção à Virgem é um “tesouro da Igreja”, capaz de ajudar os fiéis a venerá-la como “uma deles”, partilhando com ela os seus sentimentos e “problemas”, e abrindo assim os seus corações “à graça que só Deus pode criar e comunicar nas profundezas de nossos corações”.
“Não queremos julgar os cristãos comuns como crentes de segunda classe porque não fizeram cursos de teologia ou porque não participam de estruturas eclesiais”, enfatizou o cardeal ao apresentar os principais pontos do texto. “Em vez disso, queremos aprender com eles uma confiança revigorante, a capacidade de se entregarem sem hesitação, a ternura viva do seu amor espontâneo pelo Senhor e por Sua Mãe.”
Mas “não é necessário inventar outros conceitos para enaltecer o papel de Maria na vida dos fiéis”, alertou o cardeal Fernández.
“Talvez este documento não agrade a todos”, afirmou, “mas sua força reside no equilíbrio: ao superar a oposição estéril entre o maximalismo e o minimalismo marianos, demonstra um cuidado autêntico com a fé do povo de Deus, sem sobrecarregá-la com questões teológicas que não tocam o âmago da sua experiência e do seu amor por Maria.”
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