10 Setembro 2024
"Sem o seu 'sim', não teria havido a encarnação. Parte de Maria a realização do projeto de Deus de fazer dela a digna morada de sua Palavra", escreve a teóloga italiana Cettina Militello, vice-presidente da Fondazione Accademia Via Prechritudinis, em artigo publicado no caderno Donne Chiesa Mondo do jornal L’Osservatore Romano, setembro de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Celebramos a Natividade de Maria em 8 de setembro, uma das mais antigas festas marianas. Temos notícias dela já no século IV, em Jerusalém, coincidindo com a festa da dedicação da basílica de Santa Ana, construída no suposto local da casa de Joaquim e Ana, indicados pelos apócrifos como seus pais. No Ocidente, ela foi celebrada a partir do século VII por iniciativa de Sérgio I, um papa de origem siríaca.
Obviamente, não sabemos quando Maria nasceu. As datas de seu ciclo, assim como as do ciclo do Senhor (e de São João), são todas hipotéticas e ligadas a ciclos astrais e/ou agrários, felizes transignificações de festividades pagãs. Tudo o que sabemos sobre Maria é o que os apócrifos nos narram, e não se trata de dados “históricos”, como, aliás, também nem mesmo o são aqueles dos Evangelhos.
O 8 de setembro está, portanto, ligado à piedade popular. Desde muito cedo, o povo de Deus tentou preencher os “silêncios” das narrativas dos Evangelhos prestando atenção a detalhes imaginários, mas edificantes. A celebração do nascimento da Mãe do Senhor faz parte dessa tensão em relação a eventos reais, dos quais não sabemos o onde, o quando e o como. Sem o seu “sim”, não teria havido a encarnação. Parte de Maria a realização do projeto de Deus de fazer dela a digna morada de sua Palavra.
Essas razões teológicas de peso aumentam a veneração, sem esquecer que a presença de Maria constitui um corretivo para a leitura univocamente patriarcal da salvação. Por meio dela, o povo de Deus recuperou aquele “feminino divino” que foi excluído das religiões do Livro.
Disso decorre um apego transbordante a ela, às vezes próximo do imaginário e supersticioso. Diante de um fenômeno, às vezes pesado e embaraçoso, nem mesmo dez anos após o fim do Concílio Vaticano II, Paulo VI quis que fosse elaborado um documento que recalibrasse a devoção mariana. Era uma questão de valorizar as advertências já presentes nos parágrafos finais da Lumen Gentium. A constituição dogmática sobre a Igreja havia aceitado a prática mariológica, restituindo para a Igreja a mãe do Senhor como seu membro eminente e singular, seu tipo e modelo; mas, mesmo assim, citando Pio XII, um papa de intensa devoção mariana, advertiu sobre a necessidade, ecumênica, mas não só, de abandonar todo exagero vão e crédulo.
O crescimento da atenção a Maria, de fato, mistura-se ao longo dos séculos com manifestações imaginárias e imaginadas. A própria iconografia nos propicia uma maneira diferente de ver a Mãe do Senhor.
No início, a inscreve nas absides, enfatizando sua contiguidade com a Igreja; durante séculos, depois, a associa ao Filho, enfatizando seus privilégios; finalmente, na modernidade, ela é novamente desenhada e enfatizada sozinha, enquanto, em polêmica com o minimalismo da Reforma, cresce a ênfase sobre a sua função, juntamente com o incremento das práticas devotas. Não por acaso, nós, católicos romanos, fomos acusados de substituí-la pelo Espírito Santo em um excesso de prerrogativas que, na verdade, lhe pertencem. Acrescente-se a isso a multiplicação de visões verdadeiras ou presumidas, de peregrinações .... sem mencionar as infinitas flexões com as quais várias famílias religiosas se ligam a Maria. Em tudo isso, também devemos ler nas entrelinhas uma certa visão da mulher e da mulher-mãe, assumida como antídoto para o crescimento da consciência das mulheres e sua emancipação.
A exortação apostólica Marialis Cultus, cujo 50º aniversário se comemora, promulgada em 2 de fevereiro de 1974, nas suas três partes, continua sendo, em minha opinião, o mais belo documento até hoje elaborado para lançar luz sobre a Mãe do Senhor. Nele se respira o entusiasmo conciliar e toda a virada antropológica própria daqueles anos. Pela primeira vez, fora dos estereótipos devotos, abre-se espaço para a imagem teológica de Maria.
Paulo VI presta atenção ao “Culto da Virgem Maria na liturgia”, de acordo com uma dupla leitura: a “Virgem na liturgia romana restaurada”; Maria como “modelo da Igreja no exercício do culto”. São realmente sugestivos os parágrafos em que a propõe como Virgem que sabe ouvir, Virgem dada à oração, Virgem Mãe, Virgem oferente. “Exemplar de toda a Igreja no exercício do culto divino, (...) mestra de vida espiritual para cada um dos cristão (...) Maria (...) é, acima de tudo, um modelo do culto que consiste em fazer da própria vida um culto a Deus”.
Dirigido para promover “a renovação da piedade mariana”, o documento se desenvolve de acordo com três notas e quatro orientações. A “nota trinitária, cristológica e eclesial no culto à Virgem” recorda a natureza do culto cristão - sempre ad Patrem per Filium in Spiritu Sancto -, não sem uma ênfase explícita ao Espírito que voltou a ser protagonista da piedade e da pesquisa teológica. Seguem-se, e esta é a parte mais original, as “Quatro orientações para o culto da Virgem: bíblica, litúrgica, ecumênica, antropológica”. Para Paulo VI, é fundamental reconduzir Maria ao testemunho da Escritura, assim como é importante ligar a devoção a ela ao tempo litúrgico. Não menos relevante é a necessidade, já mencionada, de evitar qualquer coisa que possa criar obstáculo ao diálogo ecumênico. Para minha geração, a Marialis Cultus permanece ligada à orientação antropológica. De fato, ali se especifica que Maria não foi proposta à imitação dos fiéis por causa do tipo de vida que levou ou do ambiente em que se desenrolou, hoje superado em quase toda parte do mundo, mas sim porque “nas condições concretas da sua vida (...) aderiu (...) à vontade de Deus (Lc 1,38); porque soube acolher a sua palavra e pô-la em prática; porque sua ação foi animada pela caridade e pelo espírito de serviço; porque, em suma, foi a primeira e mais perfeita discípula de Cristo”.
O papa está bem ciente das dificuldades e reservas que a nascente teologia feminista opõe à imagem de Maria e, justamente por isso, distingue sua imagem evangélica das representações culturais dela como virgem esposa mãe. “A Igreja”, afirma, “não se liga aos esquemas representativos das várias épocas culturais, nem às particulares concepções antropológicas que lhes estão subjacentes; ademais, compreende bem que algumas expressões de tal culto, perfeitamente válidas em si mesmas, são menos adaptadas aos homens que pertencem a épocas e civilizações diversas” (n.36). “A nossa época (...) é chamada a aquilatar o próprio conhecimento da realidade com a palavra de Deus e (...) confrontar as suas concepções antropológicas e os problemas que daí derivam com a figura da Virgem Maria, conforme ela está proposta no Evangelho. Desse modo, a leitura das divinas Escrituras (...) tendo presentes as aquisições das ciências humanas e as várias situações do mundo contemporâneo, levará a descobrir que Maria pode bem ser tomada como modelo naquilo por que anelam os homens do nosso tempo”.
O resultado para as mulheres contemporâneas, desejosas de participar com poder de decisão nas opções da comunidade, é a descoberta de Maria como mulher que dá seu consentimento ativo e responsável a Deus; cuja escolha virginal não significou o fechamento aos valores do estado matrimonial... . Uma mulher nem submissa nem alienada; uma mulher forte que conheceu o sofrimento, a pobreza, o exílio... Em suma, uma Maria que encarna os valores da teologia da libertação contemporânea. Os exemplos oferecidos na esteira das Escrituras comprovam como “a figura da Virgem Santíssima não desilude algumas aspirações profundas dos homens do nosso tempo, e até lhes oferece o modelo acabado do discípulo do Senhor: obreiro da cidade terrena e temporal, e, simultaneamente, peregrino solerte também, em direção à cidade celeste e eterna; promotor da justiça que liberta o oprimido e da caridade que socorre o necessitado, mas, sobretudo, testemunha operosa do amor, que educa Cristo nos corações”.
A última parte oferece “Indicações acerca dos pios exercícios do Angelus e do Santo Rosário” (III).
A exortação termina lembrando como a piedade para com a Virgem Maria é um elemento intrínseco do culto cristão. A devoção a ela é “um auxílio poderoso para o homem em marcha... Ela, a Mulher nova, está ao lado de Cristo, o Homem novo, em cujo mistério, somente, encontra verdadeira luz o mistério do homem...”.
Não é difícil perceber nessas expressões um eco da Gaudium et Spes. E novamente essa constituição evoca as expressões que se seguem: “Para o homem contemporâneo, - não raro atormentado entre a angústia e a esperança, prostrado mesmo pela sensação das próprias limitações e assaltado por aspirações sem limites, perturbado na mente e dividido em seu coração, com o espírito suspenso perante o enigma da morte, oprimido pela solidão e, simultaneamente, a tender para a comunhão, presa da náusea e do tédio, a bem-aventurada Virgem Maria contemplada no enquadramento das vicissitudes evangélicas em que interveio e na realidade que já alcançou na Cidade de Deus, proporciona-lhe uma visão serenadora e uma palavra tranquilizante: a da vitória da esperança sobre a angústia, da comunhão sobre a solidão, da paz sobre a perturbação da alegria e da beleza sobre o tédio e a náusea, das perspectivas eternas sobre as temporais e, enfim, da vida sobre a morte”.
Por mais estranho que possa parecer para nós, a Marialis Cultus não foi acolhida pelas mulheres em seu valor inovador. Por outro lado, o Ano Internacional da Mulher, embora celebrado em 1975, sempre teve em 1974 o pródromo da admissão aos ministérios “laicais” apenas dos viri probati. O ano de 1976 veria a publicação da Inter Insigniores, o documento que, embora deixasse a questão em aberto, invocava a perpétua tradição de recusar a admissão das mulheres ao ministério ordenado.
Mais uma vez, portanto, a ênfase em Maria, embora expressa nas modalidades consoantes com a virada conciliar, deixava as mulheres à margem da subjetividade eclesial, quase como se apenas uma mulher fosse suficiente. A força subversiva do Magnificat, embora reconhecida e enfatizada, não bastava para mudar a sua posição eclesial.
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O dia em que Maria nasceu. Artigo de Cettina Militello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU