14 Agosto 2019
"Eles, pobres da sociedade, mas também fiéis justos, celebram, unindo-se idealmente à voz de Maria e através de um septenário de aoristos gnômicos gregos, às escolhas excêntricas de Deus que, ao contrário das lógicas sócio-políticas, não privilegiam o poderoso, mas o último e o pária, invertendo assim as hierarquias históricas".
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 11-08-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Festas cristãs. No dia 15 de agosto, a Igreja católica celebra a festividade solene da Assunção, na qual é tocado o admirável cântico, musicado pelos maiores mestres de todos os tempos. Era na tarde do dia de Natal de 1886, em Paris. Vagando pelas ruas do centro, Paul Claudel, com dezoito anos - que se tornaria um dos mais renomados poetas franceses, então agnóstico e indiferente -, tinha escolhido fazer uma parada sob o portal da Notre Dame, a grandiosa catedral profundamente ferida pelo incêndio de 15 de abril último. Naquele momento, a pureza monódica do canto gregoriano subia pelas abóbadas da catedral em arranjos de melismas sonoros. O Magnificat estava sendo cantado, um texto evangélico obrigatório na liturgia das Vésperas. Claudel, como ele mesmo confessaria, saiu daquela experiência transformado, destinado a tornar-se agora o cantor da fé cristã conhecido por todos (quem não conhece, por exemplo, seu drama Annonce fait à Marie?).
Anos mais tarde, em 1913, confessaria: "Naquele dia, acreditei com tamanha força de adesão, com tamanha elevação de todo o meu ser, com uma convicção tão forte, com tanta certeza, com tamanha ausência de dúvida que mais tarde nem os livros, nem as argumentações, nem as sortes de uma vida agitada conseguiram abalar a minha fé”.
Na próxima quinta-feira, 15 de agosto, os calendários continuam a marcar a data como a festa da "Assunção de Maria", a mãe de Cristo, apesar da classificação secularizada predominante de "Ferragosto". Pois bem, se um não crente cruzasse o limiar de uma catedral ou mesmo de uma modesta igrejinha de montanha ou de praia, ele ouviria proclamar na língua local e não mais em latim justamente aquele Magnificat. Infelizmente, não correria o risco de experimentar algum arrepio de emoção pela beleza e harmonia, porque é difícil que sejam convidados um solista e um coro para cantarem aqueles versos do Evangelho que a liturgia propõe precisamente na Missa da Solenidade da Assunção.
No entanto, eles foram durante séculos uma das bases fundamentais sobre as quais foram entretecidas as partituras de obras-primas musicais. Mas, antes de olharmos para tal horizonte artístico, é necessário fazer ecoar justamente o texto: é o hino que entoa Maria, grávida de Jesus, enquanto visita a parente Isabel, grávida de João Batista. Isso é relatado pelo evangelista Lucas (1,46-55) e é o único momento em que as palavras da mãe de Cristo se alongam (são 102 palavras no grego original, incluindo, artigos, pronomes, partículas). Todas as outras vezes - e são apenas cinco - suas frases são curtas e quase truncadas (por exemplo, em Caná durante o casamento ao qual participa com o filho: "Eles não têm mais vinho" e "O que vos dizer [Jesus], fazei-lo”). Vamos então seguir o fluxo poético dessa salmodia mariana tecida em um palimpsesto de alusões bíblicas. Idealmente o canto é para solista e coro.
O primeiro movimento, de fato, é entoado pelo "eu" de Maria: "Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito; exulta de alegria em Deus, meu Salvador, porque olhou para sua pobre serva. Por isto, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações, porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo". (1: 46-49). Neste ponto, poder-se-ia idealmente dar voz a um coro em cujo meio também a soprano Maria se insere. São os cristãos que se alinham com a multidão dos anawîm, isto é, “os pobres” do Antigo Testamento. Literalmente, o termo hebraico significa "aquele que é curvado", não apenas sob a opressão do poderoso, mas também na humildade da adoração diante de Deus, superando assim a soberba do orgulhoso.
Eles, pobres da sociedade, mas também fiéis justos, celebram, unindo-se idealmente à voz de Maria e através de um septenário de aoristos gnômicos gregos, às escolhas excêntricas de Deus que, ao contrário das lógicas sócio-políticas, não privilegiam o poderoso, mas o último e o pária, invertendo assim as hierarquias históricas. Aqui estão os sete verbos (símbolo numérico de plenitude) que marcam o segundo movimento coral do hino: "Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos. Acolheu a Israel, seu servo" (1,51-54).
O aoristo "gnômico" grego quer lembrar que a escolha de Deus obedece a uma lógica constante, "proverbial", que Cristo repetirá várias vezes, afirmando que "os últimos serão os primeiros e os primeiros, últimos" e que "quem se exaltar será humilhado e os que se humilham serão exaltados”. É sob essa luz que o próprio Lutero, em 1521, compôs um intenso libreto intitulado O Magnificat traduzido para o alemão e comentado. E é nesse ponto que teremos que fazer irromper a música. Imediatamente, entretanto, se sentiria uma sensação de vertigem, porque seríamos jogados em um oceano de notas. Quem tiver a possibilidade de acessar uma biblioteca e procurar o fundamental Dicionário Enciclopédico Universal de Música e dos Músicos editado por Alberto Basso, na série de livros dedicados a "títulos e personagens" (Utet, Turim 1999, vol. II, pág. 295 -298) se depararia com a sequência interminável dos Magnificats registrados nesta lista.
Basta lembrar que só Orlando de Lasso (séc. XVI) compôs 101 deles; Tomás L. de Victoria (séc. XVI) 18; o Palestrina (séc. XVI) 35; Pachelbel (séc. XVII) 13; Charpentier (séc. XVII) 10 e assim por diante. Mas é fácil ser conquistados pelo encanto de alguns Magnificats, como o de Bach (BWV 243): podemos nos deixar levar, por exemplo, pela imponente fuga que, com efeito teatral, acompanha as vozes que cantam o versículo Fecit potentiam in brachio suo ("Manifedtou o poder de seu braço") para explodir na final com a trombeta que aclama a vitória divina sobre os soberbos. E depois há as duas joias de Monteverdi em seu Vespro della Beata Vergine (1610). Para ficar nas Vésperas que, como já foi dito, têm seu ápice no cântico de Maria, eis aqui Mozart com suas Vésperas de Domingo em Dó maior (K 321) e as Vésperas solenes 'de Confessore' em Dó maior (K 339).
Aqueles que amam a música também devem ter pelo menos um dos Magnificats de Vivaldi em sua coleção (RV 610 e 611) e depois ampliar sua escolha em um horizonte com os nomes principais, além daqueles já mencionados, como Purcell, Marcello, Scarlatti, Albinoni, Cherubini, Schubert, Donizetti, Mendelssohn, Bellini, Bruckner, Penderecki, Pärt e até o brasileiro Villa-Lobos com seu breve Magnificat-Aleluia, Luciano Berio (1949) com um original e intenso testemunho e, inesperado, inclusive um mestre de jazz como Giorgio Gaslini (1963).
Pessoalmente não posso esquecer - por conhecimento, ainda que mediado por diálogos telefônicos - Goffredo Petrassi, que morreu quase centenário em 2003, com seu admirável Magnificat infelizmente muito raro na execução, marcado por uma orquestra que também inclui saxofone e, sobretudo, a pureza da voz de Maria, "soprano solo leggero", como o autor precisava, capaz de levitar suavemente acima do coro misto.
Rendendo-nos a esse infinito filão musical que atravessa os séculos, e que acompanha a voz desta modesta mulher da Galileia, que se tornou a mais alta do universo feminino (seu nome hebraico Myriam provavelmente significa "a elevada"), poderíamos colocar sobre seus lábios um maravilhoso verso do grande poeta elisabetano John Donne (1571-1631): "Ó Senhor, eu mesma serei a tua música!"
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O dia do ‘Magnificat’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU